Justiça

Del Roio e Amelinha Teles recebem Prêmio de Direito à Verdade

Os homenageados têm sido imprescindíveis na denúncia permanente das violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura militar

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“Há os que lutam por toda a vida, estes são imprescindíveis”.

Estes versos do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) foram escritos há mais de 60 anos, mas poderiam ter sido inspirados num dos três homenageados desta terceira edição do Prêmio de Direito à Memória e à Verdade Alceri Maria Gomes da Silva. O troféu principal e duas menções honrosas foram entregues pela Prefeitura de São Paulo na última quarta-feira (12/12).

Cada um à sua maneira, os homenageados deste ano têm sido imprescindíveis na denúncia permanente das violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura militar (1964-1988) e também na corajosa resistência contra as medidas de exceção que, com impressionante frequência, voltam a assombrar nossa frágil democracia. Na véspera do aniversário de 50 anos do Ato Institucional número 5, canetada de triste lembrança deflagrada por Costa e Silva contra o povo brasileiro, é oportuno registrar um pouco da trajetória e da inspiração desses três gigantes.

José Luiz Del Roio (Prêmio Alceri Maria Gomes da Silva 2018)

José Luiz Del Roio, um dos premiados. Foto: Instituto Vladimir Herzog

Del Roio está aí para mostrar que o sentimento cívico e o compromisso com a resistência não conhecem fronteiras. E que, muitas vezes, tornam a vida real mais agitada que muitos roteiros de cinema. Socialista de Bragança Paulista, Del Roio militava no Partido Comunista por ocasião do golpe de 1964. A partir de 1968, quando a repressão fechou o cerco contra os movimentos sociais e os partidos de oposição, o então dirigente do PCB e estudante da USP optou pela luta armada e, ao lado de Carlos Marighella, participou da fundação da Ação Libertadora Nacional (ALN) em 1968. Sua esposa na época, a também militante Ísis Dias de Oliveira, também caiu na clandestinidade e desapareceu pouco depois. Ísis teria sido executada pela repressão em 1971. Após a execução do líder baiano numa emboscada na Alameda Casa Branca, em novembro de 1969, Del Roio exilou-se no Peru e em seguida no Chile, onde trabalhou no governo de Salvador Allende e testemunhou seu segundo golpe militar. Fugiu de Pinochet rumo à Argélia, ainda em 1973, e de lá zarpou para Moscou, onde retomou contato com Luiz Carlos Prestes em 1975.

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Nos anos seguintes, Del Roio envolveu-se numa arriscada operação orquestrada por Prestes e que consistia em recepcionar documentos históricos do PCB embarcados sigilosamente para a Europa e reuni-los num acervo com o apoio de uma fundação da Itália. Esse material serviu de base para o Arquivo Histórico do Movimento Operário Brasileiro, organizado por Del Roio em Milão, onde ele fixou residência, contraiu dupla cidadania e se casou com uma professora suíça. Del Roio voltou ao Brasil após a Anistia de 1979 e manteve desde então um pé aqui e outro na Itália, onde foi eleito senador pelo Partido da Refundação Comunista pela Lombardia em 2006. A busca por uma resposta oficial sobre o paradeiro de sua primeira mulher o acompanha desde a volta ao Brasil. Nos últimos anos, Del Roio tem sido também uma presença intensa e muito ativa na defesa das comissões da verdade e na elaboração de acervos e testemunhos sobre os anos de chumbo. É autor de diversos livros sobre a ditadura, entre os quais uma biografia de Ricardo Zarattini, um dos 15 presos políticos soltos em troca da libertação do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969, e “As capas desta história”, uma jornada pela história da imprensa alternativa através das capas dos jornais.

Amelinha Teles (menção honrosa)

Doze dias antes de Jair Bolsonaro ser eleito presidente do Brasil, o rosto de Maria Amélia de Almeida Teles invadiu milhares de residências por todo o país. Em cadeia nacional de televisão, Amelinha contou detalhes da violência que sofreu no início dos anos 1970, no DOI-Codi, centro de tortura comandado por Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo do presidente eleito. Convidada pela campanha de Fernando Haddad, Amelinha fez o que julgava necessário: sem meias palavras, alertou para o risco à democracia representado pela consagração nas urnas de  um projeto autoritário conduzido por alguém que elogia a ditadura, afirma ser favorável à tortura, homenageia torturador, diz que o erro dos militares foi ter poupado a vida da maioria de seus opositores quando deveria ter matado todo mundo e, sem hesitar, anuncia de cima de um palanque sua disposição em “fuzilar a petralhada” e banir os “marginais vermelhos”. Minutos depois, começaram as perseguições. Muitas. Terríveis. Devastadoras.

Amelinha está calejada. São quase 50 anos de militância. Primeiro, como militante do PCdoB enviada à Guerrilha do Araguaia. Depois, à frente de comissões de familiares de mortos e desaparecidos políticos em busca de revelações, documentos, reparação e justiça, uma luta que já dura 40 anos. Amelinha é irmã de Criméia Schmidt de Almeida, também ex-presa política obrigada a dar à luz na prisão, e mãe de Janaína e Edson Teles, que tinham 5 e 2 anos de idade quando foram conduzidos à sala de tortura e obrigados a testemunhar os maus-tratos aos quais sua mãe e seu pai, César Teles, eram submetidos. Em 2005, sua família ajuizou uma ação declaratória contra Carlos Alberto Brilhante Ustra por meio da qual requeria que a Justiça, embora impossibilitada de condená-lo pelo crime de tortura em razão do entendimento em voga da Lei da Anistia, declarasse sua responsabilidade pelos crimes de sequestro e tortura, o que ocorreu em 2008, quando a ação foi julgada.

Mais recentemente, Amelinha esteve como assessora e pesquisadora na Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, instalada na Assembleia Legislativa de São Paulo, e também na Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, onde tive a honra e o aprendizado de atuar a seu lado em 2016.

Memorial da Resistência (menção honrosa)

O edifício que abriga o Memorial da Resistência, projetado pelo escritório de Ramos de Azevedo e inaugurado em 1914 no Largo General Osório, já foi um dos locais mais cruéis e violentos de São Paulo. Entre 1940 e 1983, sediou o Departamento Estadual de Ordem Política e Social, o Deops, órgão responsável pela polícia política. Após o AI-5, a escalada de violência praticada pelo Deops foi brutal, sobretudo no período de 1968 a 1979, em que seu homem forte era Sérgio Paranhos Fleury, delegado que transformou a tortura em cortesia da casa e que ostentava em seu currículo ter comandado operações de captura e execução de opositores do regime como Carlos Marighella e Carlos Lamarca e participado do episódio conhecido como chacina da Lapa, em que foram mortos dois dos mais importantes dirigentes do PCdoB: Pedro Pomar e Ângelo Arroyo.

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Em 1999, o prédio passou da Secretaria Estadual de Justiça para a Secretaria Estadual de Cultura, e, em 2002, foi convertido em espaço cultural e de memória. Batizado inicialmente de Memorial da Liberdade, passou para a gestão da Pinacoteca do Estado em 2005 e, três anos depois, mudou de nome para Memorial da Resistência. As antigas celas foram reformadas e transformadas em local de visitação, com réplicas dos beliches e das grades, inscrições nas paredes e fones de ouvido que transmitem depoimentos de resistentes que estiveram presos no local. O Memorial da Resistência também é local de exposições temáticas relacionadas aos temas da ditadura e da redemocratização, além de promover cursos de educação em direitos humanos e funcionar como um centro de referência para pesquisas e projetos no âmbito da memória e da verdade.

O Prêmio

O prêmio de Direito à Memória e à Verdade da Prefeitura de São Paulo foi criado em novembro de 2016, na gestão de Fernando Haddad, para homenagear pessoas e instituições que se destacaram na promoção e na defesa dos direitos humanos, com ênfase no direito à memória e à verdade, e que atuem neste município. O nome da premiação, sugerido pela Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (também responsável por propor a criação do prêmio), homenageia a operária Alceri Maria Gomes da Silva. Mulher, negra, colaboradora da organização Vanguarda Popular Revolucionária, Alceri foi assassinada pela repressão aos 26 anos, em 1970, baleada dentro de casa por agentes da Operação Bandeirantes. Seu corpo foi deliberadamente ocultado, sendo enterrado de forma clandestina no cemitério municipal de Vila Formosa.

Desde 2016, um júri independente é formado a cada ano por cinco pessoas com notória atuação na área do direito à memória e à verdade com a responsabilidade de escolher os ganhadores de um prêmio principal e duas menções honrosas, uma para pessoa física e outra para pessoa jurídica. A cerimônia é realizada sempre na semana de 10 de dezembro, aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No primeiro ano, foram homenageados o jurista Fábio Konder Comparato, a cineasta Tata Amaral e o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp, responsável pela retomada das análises das mais de 1 mil ossadas encontradas em 1990 na vala clandestina do cemitério de Perus. Em 2017, o troféu — elaborado pelo designer e ilustrador Roberto Weigand — foi entregue à educadora Flávia Schilling. As menções honrosas ficaram com o jornalista Caco Barcellos e com a Agência Pública de jornalismo investigativo.   

Na mesma semana em que registramos o aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o aniversário de 50 anos do AI-5, é sempre um alento verificar que o prêmio Alceri foi mantido na atual administração e, mais do que isso, a competência dos jurados e a qualidade das pessoas escolhidas. Imprescindíveis.

Camilo Vannuchi é jornalista e escritor. Foi assessor parlamentar e membro da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo (2014-2016). Cursa um doutorado sobre Direito à Comunicação na USP. Seu email é [email protected]

Foto: Maurício Garcia

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