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Conflitos de interesse

O CNJ vai decidir se limita as palestras remuneradas e os presentes dados por empresas a juízes

Apoio. Rosa Weber, presidente do STF, deu aval ao ministro do TST para apresentar o conjunto de regras – Imagem: Arquivo/TSE
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Em 5 de dezembro de 2022, o órgão especial do Tribunal Superior do Trabalho julgou um processo antigo, de 2007, a opor uma empresa portuária e um sindicato. É um caso didático sobre uma iniciativa surgida em Brasília nos últimos dias para acabar com a farra de juízes em eventos privados e muitas vezes pagos para palestrar nessas ocasiões. Por 8 a 4, o TST deu uma liminar que permitiu ao Terminal de Granéis do Guarujá, o TGG, contratar trabalhadores sem passar pelo órgão gestor de mão de obra, entidade que recruta, treina e cadastra empregados nos portos públicos. O chamado Ogmo tem participação sindical, daí ser capaz de proporcionar salários acima da média do mercado de trabalho em geral. Ao tentar driblá-lo, o TGG queria pagar menos. Documentos do processo no TST mostram que, em setembro de 2019, o terminal oferecia 1.971,90 reais por vaga. À época, outra empresa, a Santos Brasil, pagava 4.013, 47 reais, enquanto uma terceira, a Brasil Terminal Portuário, 3.236,67.

O sindicato dos trabalhadores em portos paulistas havia vencido a disputa em 2016 no TST, mas o TGG apresentou recursos. O julgamento de dezembro de 2022 tratou da alternativa de adiar a aplicação das regras. O tribunal liberou o terminal para não cumprir a sentença até o Supremo Tribunal Federal se pronunciar. A liminar foi incomum por duas razões. Não é costume o TST aceitar a suspensão de uma decisão à espera do STF. Além disso, é pacificado na Corte trabalhista que os terminais portuários devem contratar exclusivamente via Ogmo, regra estabelecida pelo artigo 40 da Lei de Portos, de 2013. Razões que levaram um dos quatro julgadores derrotados, o ministro Luís Philippe Vieira de Mello Filho, a comentar na sessão: “Sei que esse tema tem sido debatido em grandes congressos recentemente (…), mas tecnicamente só o Supremo poderia afastar essa decisão (contra o TGG)”.

“A transparência pode ser o melhor antídoto para o tráfico de influência”, diz Luís Philippe Vieira de Mello Filho, autor da proposta

Na semana anterior, havia sido realizado por três dias em Foz do Iguaçu, no Paraná, um Congresso Nacional da Magistratura Trabalhista. É o “congresso” ao qual aludiu Vieira de Mello. Não se perca pelo nome: há juiz do TST que não vê representatividade no evento, promovido então pela primeira vez. O encontro acontecera no Bourbon Cataratas do Iguaçu, hotel cinco estrelas. Dos atuais 26 ministros da Corte trabalhista, 11 estiveram no hotel, presumivelmente com as despesas pagas. Um deles era Guilherme Caputo Bastos, participante de um debate em 1° de dezembro intitulado “Temas Contemporâneos de Direito Portuário: Adicional de Riscos, Negociação Coletiva e Exclusividade/Prioridade”. Quatro dias depois, votava no TST a favor do TGG e teorizava: apesar do que está escrito na Lei 12.815, não se deveria impor “exclusividade” na contratação via Ogmo. Tese propalada pelo setor privado em Foz do Iguaçu.

Bastos poderia estar no julgamento do caso TGG? O advogado da empresa é Marcelo Kanitz. No fim do ano passado, Kanitz montou a Academia Brasileira de Direito Portuário e Marítimo. Um integrante dessa entidade, o advogado Ataíde Mendes da Silva Filho, mediou o painel com Bastos em Foz do Iguaçu. Sediada em Brasília, a “academia” tem Kanitz como administrador perante a Receita Federal. Na base de dados do “Leão”, quem figura, no entanto, como presidente é Bastos. CartaCapital questionou o juiz, via assessoria de imprensa do TST, sobre o eventual conflito de interesses na causa, mas não houve resposta até a conclusão desta reportagem. A propósito, no fim de 2019, os advogados do sindicato paulista dos trabalhadores portuários foram a outro juiz da Corte, Alexandre Ramos, entregar um “memorial” sobre o processo contra o TGG, algo comum nos tribunais. Aproximava-se um julgamento sobre um recurso da empresa. Ramos chamou Kanitz para participar, convite incomum. O magistrado também esteve no congresso em Foz do Iguaçu.

Dedo na ferida. Vieira de Mello levou o assunto ao CNJ – Imagem: G.Dettmar/Agência CNJ

Por trás do evento estava a Academia Brasileira de Formação e Pesquisa. Apesar do nome, a “academia” é meio obscura. Na Receita Federal, consta a fundação em 2001, em Brasília. Seu dono é Zilmar Santana de Assis, com interesses no setor portuário privado. Segundo dados da Receita, Assis integra o conselho de administração da Teconap, empresa criada em 2021 para movimentar contêineres no porto do Amapá. Outro ramo de Assis é o financeiro, início de um novelo que o ligará a Gilmar Mendes, o juiz do Supremo sócio do Instituto Brasiliense de Direito Público, o IDP, promotor de eventos frequentados por magistrados, advogados e empresários, o mais recente em Lisboa, em junho.

Na segunda-feira 7, Vieira de Mello mandou aos 14 colegas do Conselho Nacional de Justiça uma proposta destinada a coibir os conflitos de interesses no Judiciário vistos a partir de eventos e palestras em ambientes privados. O CNJ é o fiscal dos juízes, e Vieira de Mello representa o TST. Pelo artigo 5° da Constituição, a única atividade paralela permitida a um togado é dar aula. Ao longo dos anos, a autorização foi distorcida e liberou a remuneração por palestras em eventos privados. Uma resolução de 2007 do CNJ, a 34, alterada pela 226, de 2016, definiu, porém, certas regras. O juiz precisa informar ao tribunal de origem detalhes das aulas e das palestras: nome da instituição de ensino ou do evento, horário, temas, patrocinadores. A proposta de Vieira de Mello mantém essa obrigação e inclui o CNJ como destinatário das informações. O conselho criaria um sistema exclusivo para armazená-las e divulgá-las. Além disso, fixa prazo de dois meses para a corregedoria de um tribunal obrigar um togado a adequar-se às regras, caso as tenha desobedecido.

Falta controle dos eventos patrocinados e dos mimos enviados a magistrados

Mais: a proposta define como conflito de interesses o recebimento por palestras, obriga o juiz a expor publicamente sua agenda e limita a 100 reais o valor de um presente. Também restringe a 20% o patrocínio máximo de uma empresa a um evento. E impõe aos magistrados o dever de informar ao tribunal de origem qualquer variação patrimonial acima de 20% de um ano a outro. “As tentações são enormes” diante de um juiz, escreve Vieira de Mello na proposta. “A transparência pode ser o melhor antídoto para a corrupção, o tráfico de influências e os desvios disciplinares.” No CNJ, comenta-se, há caso de juiz que abriu empresa para receber por palestras. Em manifestações públicas, Vieira de Mello costuma citar um livro de 2008, intitulado Pilhagem – ­Quando o Estado de Direito É Ilegal, que teoriza como a lei e as decisões judiciais são moldadas pelo poder econômico.

Agora cabe à presidente do CNJ, Rosa Weber, também chefe do Supremo, colocar ou não em votação a proposta. Weber se aposentará até 2 de outubro e, segundo apurou CartaCapital, deu aval ao trabalho de Vieira de Mello. “Não basta que juiz diga ‘Fui a um evento privado, mas tenho independência’. Independência não pode ser uma decisão individual, mas resultado de controle externo”, afirma o cientista político Fabiano Engelmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estudioso da Justiça. A proposta será aprovada? “O CNJ nasceu (em 2005) para fazer o controle externo do Judiciário, mas com o tempo foi capturado pelas instituições do próprio Judiciário”, diz ­Engelmann. Detalhe: o conselho não tem poder sobre os ministros do STF.

Limites. O CNJ não tem jurisdição sobre o Supremo Tribunal Federal e encontra dificuldades para punir com rigor os demais juízes – Imagem: Rômulo Serpa/Agência CNJ

Da Corte Suprema, aliás, vem um “mau exemplo”, o fórum jurídico promovido periodicamente em Lisboa pelo IDP de Mendes. A edição deste ano, em junho, reuniu na capital portuguesa, entre outros, os irmãos Joesley e Wesley Batista, da empresa JBS/Friboi, e André Mendonça, do STF, no coquetel de uma entidade de lobby empresarial, a Esfera Brasil. Os irmãos Batista estiveram ainda em uma festa com outro ministro do Supremo, Luís Roberto Barroso, que assumirá o comando do tribunal e do CNJ após a aposentadoria de Weber. Barroso declara-se impedido de participar de julgamentos de causas bancárias, por ter advogado para bancos no passado.

E por falar em bancos, esta reportagem termina com os elos entre Mendes e Assis, aquele por trás da entidade promotora do evento portuário em Foz de Iguaçu. Assis é sócio do Banco Consultoria, fundado em 2010 em Cuiabá. Em seu site, a instituição lista como um de seus parceiros o IDP, de Mendes. Assis foi coordenador de eventos e projetos da União de Ensino Superior de Diamantino até a estatização da entidade. A Uned pertencia a Mendes e foi comprada em 2013 pelo governo de Mato Grosso, aquisição que o Ministério Público estadual quis investigar e a Justiça local impediu. Assis representa ainda o IDP em um conselho da Escola de Direito de Brasília, faculdade mantida pelo instituto de Mendes. Um magistrado que, em 2016, reclamava que o TST “desfavorece as empresas em suas decisões”. •

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

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