Entrevistas

‘A cor da pele não pode sustentar argumentação para abordagem policial’

Para Juliana Borges, da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, o STF julga evidência de perfilamento racial difícil de ser coletada em processos

Juliana Borges, articulista do Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas. Foto: Rodrigo Trevisan
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O Supremo Tribunal Federal prossegue, nesta quarta 8, o julgamento sobre a reivindicação de que sejam anuladas as provas colhidas durante abordagens policiais realizadas com base na cor, na raça, na descendência, na nacionalidade ou na etnicidade do alvo.

O julgamento ocorre a partir de um caso registrado no município de Bauru, em São Paulo, em maio de 2020, quando agentes da Polícia Militar prenderam Francisco Cícero dos Santos Júnior, de 37 anos, com 1,53 grama de cocaína. Em depoimento sobre a abordagem, os policiais mencionaram que o indivíduo era negro.

Três ministros já manifestaram o entendimento de que não houve racismo nesse caso e votaram contra o pedido de habeas corpus: André Mendonça, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli. Apenas o relator, ministro Edson Fachin, votou a favor do homem preso. O julgamento teve início na semana passada.

O homem foi condenado à pena de sete anos, 11 meses e oito dias de reclusão, em regime fechado, por determinação da 1ª Vara Criminal de Bauru. Seu recurso ao Tribunal de Justiça de São Paulo foi negado. Em nova apelação, ao Superior Tribunal de Justiça, a Sexta Turma reduziu a sua pena, mas não concedeu a sua absolvição.

No parecer do ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso no STJ, descreve-se o depoimento do policial militar que conduziu a abordagem. Segundo o trecho, o policial afirmou que “avistou ao longe um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que ele estava em pé, junto ao meio fio da via pública, e um veículo estava parado junto a ele como se estivesse vendendo/comprando algo”.

O policial então, segundo o depoimento, disse que “o indivíduo, ao perceber a aproximação da viatura policial, mudou o semblante e saiu andando sorrateiramente, jogando algo no chão”, e que “o veículo que estava parado teve marcha iniciada repentinamente, e o motorista saiu do local”.

Além disso, sustentou que “aquele local é conhecido ponto de tráfico de drogas e, ainda nesta data, durante a madrugada e ainda pela manhã, houve a prisão de vários indivíduos traficando drogas naquele local”.

O agente disse ainda que “acabou abordando o indivíduo e o reconheceu por sempre estar naquela localidade, sabendo que é um participante em crimes de tráfico naquele local” e que, em revista pessoal, foram localizados cinco pinos de cocaína e 80 reais em seus bolsos.

O ministro Edson Fachin, relator do processo no STF. Foto: Sergio Lima/AFP

O relator no STJ entendeu que a cor da pele “despertou a fundada suspeita do policial militar, a justificar a busca pessoal no paciente” e que o policial militar indicou a cor negra como “elemento concreto indiciário da fundada suspeita”, ainda que haja um contexto maior.

Para Juliana Borges, articulista política do movimento Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, as provas do caso devem ser anuladas. Ela também defende a criação de uma regulamentação para as abordagens policiais que permitam o controle social da atividade e evitem casos de racismo.

Segundo um informe do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, divulgado em 2022, 46% das pessoas negras entrevistadas pela pesquisa disseram que já ouviram referências explícitas à sua raça/cor durante abordagens policiais. Somente 7% das pessoas brancas afirmaram o mesmo.

Tanto a Iniciativa Negra como o Instituto de Defesa do Direito de Defesa acompanham o processo como amicus curiae, junto a outras seis entidades designadas para fornecer subsídios às análises dos ministros.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

CartaCapital: O ministro Sebastião Reis Júnior escreve: “a meu ver, a cor da pele foi o fator que, primeiramente, despertou a atenção do agente de segurança”. Os policiais disseram que consideraram a pessoa suspeita porque ela era negra? Ou isso foi um entendimento do ministro?

Juliana Borges: O que faz chamar atenção para esse caso é justamente por que eles descrevem que avistaram um indivíduo negro. Por que isso não é usual. A necessidade de explicitar que esse suspeito é negro é o que faz com que o ministro Edson Fachin acabe aceitando a alegação da Defensoria Pública e dos amici, de que ali há uma evidência de filtragem racial por parte dos policiais para a motivação das abordagens.

Essa é a grande questão em relação ao caso específico. Por que a necessidade dessa descrição? Quando, na verdade, a descrição sobre a cor das pessoas é uma informação coletada já na delegacia para a inclusão dos autos do processo?

CC: Então, a reivindicação é de que os policiais não mencionem a cor da pele na justificativa da abordagem?

JB: Uma pesquisa feita pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa que aponta que 46% das pessoas negras abordadas pela polícia relatam que há alguma referência à sua cor no momento. O que esse caso traz de diferente? Em geral, quando você vai coletar o depoimento desses policiais ou averiguar o motivo da abordagem, não se tem a descrição dessa característica. Portanto, as pessoas não têm como provar que o policial as chamou de qualquer caracterização pejorativa ou estereotipada por conta da raça.

O diferencial desse processo é que não é comum se ter esse tipo de descrição do que motivou essa abordagem. Por isso, esse caso é visto pelo próprio ministro [Sebastião Reis Júnior] de que ali há uma evidência de filtragem racial difícil de ser coletada em autos de processo. Até porque, quando esse indivíduo é abordado, ele já é logo caracterizado como traficante, sendo que ele portava uma quantidade muito pequena da substância e se declara usuário.

Então, por que definir que esse suspeito negro seria evidentemente o traficante? Por que ele estava em pé, no meio fio? O indivíduo que está no carro não pode ser o traficante? Quais são as questões da necessidade de apontar que esse suspeito era negro e, num segundo momento, já definir que ele estava na situação de tráfico, quando ele se declara usuário e portava uma quantidade ínfima de substância?

CC: Por que você é favorável à anulação das provas obtidas dessa abordagem?

JB: O que as organizações da sociedade civil que entraram como amicus curiae estão demandando nesse caso é que a gente tem uma evidência que pode definir uma série de normativas e de controle social da ação policial. A gente não pode ter como sustentação de argumentação para uma abordagem a cor da pele das pessoas. No direito penal, a gente não pode achar que os fins justificam os meios.

O que está sendo argumentado é de que há uma evidência de que o suspeito estaria portando uma substância ilícita. Mas a gente questiona: se, por conta dessa infundada suspeita dos policiais, tenha-se obtido uma prova, vamos considerar que os fins justificaram os meios?

É preciso ter um controle social da atividade policial. Essas motivações precisam ser mais objetivas e normatizadas.

CC: É possível dizer que esses policiais agiram com prática de injúria na abordagem e no relato?

JB: Não discuti com os pares dos amicus curiae, nem na Iniciativa Negra, mas, no meu entendimento, não. O que a gente está discutindo nesse processo é que, na verdade, ele evidencia um problema que é estrutural da corporação policial.

Esse caso é uma prova substantiva de uma série de pesquisas e denúncias feitas há muitos anos por pessoas abordadas pela polícia. Quando vamos para a discussão sobre injúria racial, fica o caso de uma ofensa individualizada. Não é esse o debate, e não me parece também que seja o entendimento do ministro Fachin.

CC: Como explicar, então, que três ministros entendam não houve racismo no caso concreto?

JB: O que eu tenho entendido do voto dos outros ministros é que seria preciso separar a discussão de racismo e política de drogas. Eles dizem abertos a debater a tese de perfilamento racial na Corte, mas acham que esse caso não seria o ideal para tratar de perfilamento racial. Do nosso ponto de vista, com muito respeito às interpretações dos ministros, há uma problemática porque a guerra às drogas é um dos principais argumentos para a reprodução da violência em periferias e contra as pessoas negras. Não há como separar essa discussão. Há uma problemática, seja pela quantidade de substância que esse indivíduo portava, seja por como a gente entende a guerra às drogas como mecanismo de discriminação da população negra.

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