Educação

Os dilemas do programa do governo contra a fuga de cérebros na ciência brasileira

O governo Lula está empenhado em trazer de volta mestres e doutores brasileiros que atuam no exterior. Os entraves, porém, superam a oferta de boas bolsas

Fotos: Agência Brasil e Divulgação
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Desde o ano passado, o governo brasileiro tem se dedicado a construir um projeto que reduza a diáspora científica — quando pesquisadores com alta qualificação, mestrado, doutorado ou pós-doutorado que deixam o Brasil para estudar e não retornam ao país. 

A estimativa é que ao menos 35 mil cientistas brasileiros estejam vivendo no exterior, segundo o Ministério da Ciência e Tecnologia. A maioria reside nos Estados Unidos, Portugal, Alemanha e Reino Unido, os destinos mais procurados por esses profissionais.

Com foco em reverter esse cenário surgiu o embrião do Programa Conhecimento Brasil, também chamado de ‘Repatriação de Talentos’. O lançamento está previsto para este mês, conforme adiantou o presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor Ricardo Galvão, em entrevista a CartaCapital.

A ideia é estimular o retorno desses pesquisadores para a produção da ciência em solo nacional através de três frentes:

  • Oferecer bolsas de até 13 mil reais mensais por até cinco anos para pesquisadores com mestrado e doutorado.;
  • Criar um fundo de até 400 mil reais para a instalação de laboratórios, para a instalação de laboratórios, com o objetivo de formar redes de pesquisa entre cientistas no Brasil e no exterior;
  • Firmar parcerias com empresas, por meio do programa Nova Indústria Brasil, para reter mão de obra qualificada.

O que move a ‘repatriação’ dos cientistas?

No ano passado, uma pesquisa revelou um forte desejo de retorno entre a diáspora científica brasileira: 44% dos doutorandos, 51% dos pós-doutorandos e 40% dos professores e pesquisadores com contratos temporários no exterior expressaram que voltariam ao Brasil se houvesse boas oportunidades de emprego.

A pesquisa, conduzida por Ana Maria Carneiro, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e explorou essas trajetórias de migração.

O desejo dos pesquisadores em retornar é consistente, mas há obstáculos à volta. Entre eles estão a burocracia no reconhecimento de diplomas, as complexidades na contratação e a falta de estabilidade e atratividade na carreira científica no Brasil.

Simplificação é a palavra da vez nas universidades brasileiras – seja para os processos de pesquisa, seja para a contratação

O ímpeto de retorno às origens cai drasticamente, por exemplo, entre pesquisadores com contrato estável no exterior. Este é o caso do professor Tiago Ventura, que ​​leciona Ciências Sociais Computacionais na Escola de Políticas Públicas da Universidade de Georgetown, em Washington, nos Estados Unidos

Natural de Belém (PA), Ventura cursava o primeiro ano de doutorado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, quando tomou a decisão de estudar fora do Brasil. 

“Eu queria aprofundar meu conhecimento em Ciência Política aplicada, especialmente no uso de modelos computacionais e estatísticos. A oferta de programas era melhor nos Estados Unidos do que no Brasil”, relembra. “O contexto já incluía o impeachment da Dilma, além de algumas preocupações políticas. Tinha a impressão de que o espaço para crescimento na carreira acadêmica seria muito restrito.”

Após a conclusão do doutorado na UERJ, em 2018, ele ingressou no doutorado em Ciência Política pela Universidade de Maryland, College Park e na sequência fez pós-doutorado no Centro de Mídia Social e Política da Universidade de Nova York.

A oportunidade de obter uma posição efetiva em uma universidade norte-americana foi o ponto de virada para sua decisão de permanecer no país.. Nos EUA, o processo de contratação acadêmica é uniformizado e totalmente online, facilitando a aplicação em diversas instituições simultaneamente. Em contraste, no Brasil, os processos seletivos ocorrem em datas alternadas, exigindo concursos presenciais específicos para cada universidade. Isso implica custos extras com transporte, estadia e alimentação, além da dificuldade logística de participar de múltiplos concursos.

A inflexibilidade e o modelo do processo seletivo acadêmico no Brasil também é empecilho para Marcos Vieira, cientista de Pesquisa Computacional na Universidade de Chicago. Vieira critica o modelo de contratação nacional, que parece ser desenhado para quem está desempregado no momento, exigindo disponibilidade para participar de concursos que duram vários dias. “Se você não puder comparecer naquele dia, está fora”, lamenta.

Vieira vive fora do Brasil desde 2014, quando concluiu o mestrado em Ecologia e Evolução na Universidade Federal de Goiás. Considera retornar ao país, mas esbarrou em outro problema, além do emprego: o reconhecimento do diploma. 

No Brasil, o processo de revalidação e/ou reconhecimento de diplomas estrangeiros é gerenciado pela plataforma Carolina Bori, vinculada ao Ministério da Educação. Esta plataforma é responsável por receber todos os pedidos e encaminhá-los à universidade brasileira escolhida para realizar a validação. Teoricamente, este processo deveria ser concluído em um prazo máximo de 180 dias. No entanto, no caso de Vieira, sua solicitação está em tramitação desde janeiro do ano anterior, totalizando mais de um ano e três meses.

“Se você imaginar um estrangeiro que queira, por acaso, fazer um concurso no Brasil, não há tempo suficiente entre a divulgação do edital do concurso e a posse para ter o diploma reconhecido no Brasil”, exemplifica. 

Uma pesquisadora fazem medição e coleta de tecidos de botos mortos em lago no município de Tefé, no Amazonas Foto: MIGUEL MONTEIRO/INSTITUTO MAMIRAUÁ

Para aqueles que já possuem algum nível de estabilidade no exterior, a possibilidade de colaborar com a pesquisa nacional por meio de parcerias entre cientistas e universidades torna-se uma alternativa mais atraente. Esse tipo de colaboração se enquadra no eixo II do programa Conhecimento Brasil, que visa facilitar a integração e o intercâmbio de conhecimento entre pesquisadores brasileiros e internacionais. Essas parcerias permitem que cientistas que enfrentam barreiras burocráticas, como a revalidação de diplomas,

“Essa colaboração pode acontecer de várias formas”, explica professor Tiago Ventura, da Universidade de Georgetown, citando como exemplos a formação de laboratórios conjuntos e a oferta de bolsas para professores visitantes que desejam passar um semestre no Brasil.

Cabe frisar, ainda sim, que a imposição de uma permanência obrigatória para pesquisadores externos no Brasil durante estes projetos colaborativos poderia criar um novo empecilho, desencorajando o interesse desses cientistas.

“Se a Administração Brasileira realmente deseja atrair pesquisadores internacionais para a academia brasileira, um passo fundamental é rever a carreira do magistério brasileiro, sobretudo o ingresso“, enfatiza Ventura. “Enquanto os concursos forem burocratizados desse jeito, qualquer outra medida para atrair pesquisadores internacionais, brasileiros ou não, será ineficaz, como enxugar gelo”.

‘Não é bom nem para quem está, nem para quem saiu’

Como destaca a pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica, Ana Maria Carneiro, a ciência brasileira carrega as cicatrizes dos cortes no financiamento à pesquisa durante a gestão Bolsonaro. Em 2020, houve uma redução de 8,2% nos investimentos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Nos anos seguintes, o número de doutores regrediu ao patamar de seis anos atrás, igualando-se ao de 2016. De 24,4 mil doutorados anuais em 2019, o número caiu para 20,1 mil em 2020 e 20,7 mil em 2021.

Em 2023, mesmo com o reajuste das bolsas de pós-graduação, a falta de estabilidade para o desenvolvimento científico seguiu como um problema. Segundo Ana Maria Carneiro, isso envolve não apenas o suporte financeiro, mas também os parâmetros técnicos para utilização dos recursos.

“A burocracia e a regulamentação da prática científica, especialmente em termos de integridade da pesquisa, introduzem obstáculos desnecessários, se comparados às práticas internacionais”, aponta a professora. “As comissões responsáveis por essas análises não dispõem de pessoal suficiente para processar os pedidos de maneira eficiente, e às vezes acabam atrasando a realização das pesquisas.”

A simplificação desses processos não é uma realidade distante. Um dos melhores exemplos práticos fveio durante a pandemia de Covid-19, quando os trâmites para pesquisa foram agilizados. “O Brasil tem uma experiência recente que pode ser aproveitada para revisar as práticas atuais”, destaca Carneiro.

Ricardo Galvão, presidente do CNPq (Foto: Reprodução/Instagram)

Ventura, aberto à ideia de retornar ao Brasil, destaca um ponto crítico: a greve nas universidades federais. “É importante observar que, em meio a uma greve, o governo lança um programa visando atrair talentos do exterior, ignorando os problemas internos das universidades”, aponta ele.

O cientista social e político é enfático ao criticar essa abordagem: “É um desrespeito à categoria acadêmica no Brasil. Não há como atrair talentos internacionais sem antes melhorar as condições internas de trabalho.” 

A avaliação ecoa entre pesquisadores que estão no Brasil. Para o cientista social Leonardo Rossatto, doutorando em Ciências do Sistema Terrestre no INPE, a proposta do governo, ainda que bem intencionada, “nasce com alguns defeitos muito difíceis de sanar”.

O principal deles é a decisão de oferecer bolsas de maior valor para pesquisadores brasileiros que estão no exterior, comparado aos que estão no país. “Isso cria uma desigualdade entre os pesquisadores”, critica ele. Ele alerta ainda que, ao oferecer incentivos financeiros superiores para atrair profissionais que estão no exterior de volta ao Brasil, o governo pode agravar as tensões já existentes.

“Essa presunção piora bastante a situação do governo com os profissionais que estão nas universidades, já bastante insatisfeitos.”

O que diz o CNPq

Embora reconheça a pertinência das preocupações levantadas, Ricardo Galvão, presidente do CNPq, diz que a comparação entre os incentivos oferecidos aos pesquisadores no exterior e aos que estão no Brasil não é apropriada. Galvão argumenta que a estratégia visa especificamente atrair talentos de volta ao país, e que a diferenciação não deve ser vista como uma injustiça, mas como uma medida necessária para alcançar esse objetivo.

“São coisas muito distintas. Nós estamos formando na ordem de 22 mil doutores por ano, não temos condições de dar bolsa para todos”, destaca Galvão. “Para os pesquisadores brasileiros que estão aqui, não é a bolsa que vai resolver, temos que executar outros programas que ofereçam empregos para eles.”

Segundo ele, há 10 programas estratégicos financiados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, como o Proinfa, focado em Fontes Alternativas de Energia, e a Iniciativa Amazônia+10, que apoia projetos científicos na região Amazônica.

“Os doutores que entram nesses programas, vão trabalhar nas unidades de pesquisa, nas empresas…”, explica. “Não se trata apenas de oferecer bolsas, mas de garantir que existam locais de trabalho, como empresas e novas vagas nas universidades, que possam recebê-los”.

Em relação aos pesquisadores brasileiros no exterior, Galvão ressalta a necessidade de bolsas de valor mais alto para atrair esses profissionais de volta ao Brasil. “Há uma questão de urgência, mandamos muitos alunos para fora e eles receberão ofertas para ficarem lá e, se estabilizarem com suas famílias, podem não voltar mais”, reforça. Ele enfatiza que a bolsa serve como um incentivo inicial para que o pesquisador possa aprimorar o conhecimento adquirido no doutorado, mas frisa que não deve ser vista como uma solução definitiva.

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