Educação

No estado mais rico do País, milhares de crianças ainda frequentam escolas de lata

Nos dias mais quentes, as escolas de lata transformam-se em verdadeiras ‘saunas’. O MP paulista aponta segregação social e pede soluções ao governo

Fachada da Escola Estadual Jardim Maria Dirce III, na periferia de Guarulhos, na Grande São Paulo. Créditos: Reprodução
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Nos dias de calor extremo, cada vez mais frequentes devido às ondas que varrem o País, o professor César Lopes Barreto sai de casa sem saber se conseguirá cumprir seu trabalho. Ele e seus 35 alunos batalham contra o calor insuportável na escola do Grajaú, em São Paulo. Ventiladores, quando funcionam, mal amenizam o calor e agravam a acústica já precária.

Essa realidade não é incomum na rede pública brasileira. Na escola do professor César, porém, a situação é ainda pior. O motivo? A escola é feita de lata, com tetos e paredes feitos de chapa de aço.

Nos dias mais quentes, as escolas de lata transformam-se em ‘saunas’. Nos mais frios, em geladeiras. “Não tem meio termo, a depender da temperatura, ou as salas de aulas são muito quentes ou muito frias”, relata o professor, que dá aulas há 10 anos no local.

O drama do professor César e dos alunos do Grajaú está longe de ser um caso isolado na rede estadual de São Paulo. No estado mais rico do país, ainda persistem 65 ‘escolas de lata’ em funcionamento. O Ministério Público de São Paulo estima que 65 mil estudantes sejam atendidos por elas.

Além do invólucro metálico, as salas de aula são distribuídas em dois pavimentos feitos de assoalho de madeira, revestidos de piso tátil emborrachado. As interferências sonoras são muitas.

“É horrível, se você pisa, fala um pouco mais alto, arrasta uma carteira, a escola inteira ouve”, aponta o docente.

A reportagem de CartaCapital mostrou os vídeos do interior da escola do Grajaú à arquiteta e urbanista, Beatriz Goulart, pesquisadora especializada em arquitetura escolar. Ela apontou que os vídeos mostram uma clara falta de conforto ambiental, que é essencial para o desenvolvimento humano. No entanto, Beatriz observou que essa realidade infelizmente é comum na maioria das escolas públicas do País.

“E por que isso acontece? Porque não há um projeto pensado, que dialogue com a questão das mudanças climáticas, dos recursos finitos. Nós continuamos utilizando os mesmos materiais há dois séculos. As salas de aula seguem com proporção de 7 x 7 há mais de cem anos, um padrão inquestionável. Há, com isso, uma naturalização da barbárie, de um óbvio que faz mal para as pessoas”, reflete.

Há uma grande concentração dessas escolas na zona sul da capital e também no município de Guarulhos, na região metropolitana, que sedia 14 das unidades.

Um grupo de pais da Escola Estadual Jardim Maria Dirce III, em Guarulhos, têm reivindicado à Secretaria da Educação a construção de escolas de alvenaria para melhorar as condições de ensino. Eles também denunciaram ao Ministério Público a situação, resultando na abertura de um inquérito civil pela Promotoria de Justiça Cível de Guarulhos, focada em questões da Infância e Juventude.

“Estamos falando do direito desses estudantes de estudarem em condições dignas. Semana passada eu tive que buscar a minha filha que não estava passando bem na escola. Ela reclamava de tontura, dor de cabeça, pressão baixa”, relatou à reportagem Eliane Martiniano de Souza, mãe de uma estudante que cursa o oitavo ano na unidade. “Infelizmente essa é uma situação comum a outras famílias.”

Grupo de pais e estudantes protestam em frente à Secretaria de Educação de São Paulo. Créditos: Reprodução

Chamadas de ‘padrão Nakamura’ pela Secretaria de Educação, em referência ao fabricante do material, essas escolas começaram a ser construídas na rede em 1998, ainda sob o governo de Mário Covas (PSDB), sob a premissa de serem transitórias. Os governadores tucanos José Serra e Geraldo Alckmin, em gestões subsequentes, também prometeram, mas não cumpriram, a eliminação das escolas de lata.

Para o deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL-SP) é vergonhosa a manutenção das escolas do modelo. “Essas escolas, a rigor, são antipedagógicas, pois agridem a dignidade de estudantes, professores e comunidades escolares”, critica o parlamentar, que é autor de um projeto de lei que prevê a substituição das escolas de lata por escolas de alvenaria.

O texto, protocolado em março deste ano, foi distribuído ao relator, o deputado Conte Lopes (PL-SP) na Comissão de Constituição e Justiça. A proposta prevê algumas regras para a transição, entre elas: que a construção se dê, preferencialmente, no mesmo terreno para evitar impactos aos estudantes; que as salas de aula sejam corretamente dimensionadas para receber máximo de 30 alunos; e que sejam garantidos espaços como biblioteca, laboratórios e quadra poliesportiva coberta.

A proposta ainda proíbe que a construção de paredes se dê em sobreposição à estrutura de lata, para que não haja apenas adaptações da estrutura. O PL ainda prevê um prazo máximo de três anos para que todas as escolas da rede sejam substituídas.

Giannazi, no entanto, vê ainda mais dificuldades de o governo dar solução ao problema das escolas de lata, dada a Proposta de Emenda à Constituição por Tarcísio à Alesp, em outubro, e que prevê a redução de investimentos na educação de 30% para 25%, com base na receita do estado. Em termos numéricos, essa redução de 5% poderia significar uma diminuição de até 9,6 bilhões de reais no orçamento estadual destinado à educação.

MP aponta ‘segregação social’

Em novembro, o Ministério Público de São Paulo fez uma recomendação, em caráter preventivo e cautelar, ao governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e ao secretário de educação, Renato Feder, para que garantam a matrícula de todos os alunos da rede estadual em escolas convencionais e de alvenaria.

Os promotores do Grupo de Atuação Especial de Educação (Geduc) também pedem a realização de estudos para identificar escolas convencionais que possam receber alunos das escolas de lata, e que novas escolas sejam construídas nos mesmos locais das escolas de lata. Além disso, destacam a necessidade de medidas de segurança urgentes nas escolas de lata até que todos os estudantes sejam transferidos.

Na documentação enviada ao governo paulista, os promotores destacam a má qualidade das estruturas das escolas de lata e lembram que até 2019, três delas – EE Professora Hilda Ferraz Kfouri, EE Recanto Campo Belo e EE Renata Menezes – foram destruídas por incêndios, uma situação considerada ‘alarmante’ pelo órgão.

“O estado caótico dessas estruturas, principalmente sob o aspecto do conforto térmico, indispensável para que alunos e professores atuem satisfatoriamente no desempenho do processo ensino-aprendizagem, é ainda mais dramático diante das atuais ondas de calor que assolam o Estado de São Paulo”, grafam os promotores.

Adiante, os promotores destaca que o modelo das escolas de lata tende a intensificar um processo de segregação social, aumentando o fosso da desigualdade social. Eles destacam que os alunos dessas escolas não têm as mesmas condições de aprendizado que os de escolas convencionais, devido a ambientes barulhentos, temperaturas inadequadas, falta de laboratórios, quadras esportivas e bibliotecas, além de riscos associados a instalações elétricas, de gás e esgoto deficientes. E que isso é particularmente grave para alunos com deficiência.

Não se pode afirmar que o estudantes das ‘escolas de lata’ gozam das mesmas condições materiais de acesso e permanência que os estudantes das escolas convencionais do sistema estadual de ensino”, pontuam. “Não há justificativa jurídica válida a sustentar o atual quadro que vulnera os alunos da rede pública paulista.”

O MP-SP deu um prazo de 30 dias deu um prazo de 30 dias ao governo estadual para responder se aceitará a recomendação e 120 dias para detalhar as ações emergenciais relacionadas à acessibilidade e conforto térmico nas escolas de lata, além de planos para transferir os estudantes para escolas convencionais.

A reportagem de CartaCapital perguntou à Secretaria de Educação de São Paulo se a pasta vai aderir às recomendações do Ministério Público, e se existe um plano de ação aos estudantes das escolas de lata a curto, médio e longo prazo, mas não obteve respostas.

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