Diversidade

‘A política neoliberal transformou a deficiência em mercadoria’

Para a ativista Mariana Rosa, o retorno de instituições exclusivas para pessoas com deficiência é uma releitura do apartheid, dos manicômios e dos hospitais psiquiátricos

Fundadora do Instituto Cauê, Mariana Rosa se considera “ativista por necessidade” (Foto: Divulgação)
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Fundadora do Instituto Cauê e “ativista por necessidade”, a mestranda em Educação da USP Mariana Rosa fala, nesta entrevista concedida à CartaCapital por chamada de vídeo, dos desafios na luta pelos direitos das pessoas com deficiência: “Tem sido muito difícil. É necessário um esforço muito grande para garantir o básico, para garantir o mínimo. O acesso à escola, à saúde, ao lazer, à tecnologia assistida, ao cuidado de qualidade…”, lamenta. “É uma luta cotidiana muito cansativa.” 

Esse cansaço se deve, em grande parte, aos inúmeros retrocessos ocorridos nos últimos anos em relação à cidadania das pessoas com deficiência – em um passado recente, aliás, o Brasil foi reconhecido internacionalmente como país comprometido com esta causa. “A política neoliberal transformou a deficiência em mercadoria”, diz.

O Brasil, destaca Mariana, sofre ainda os impactos do bolsonarismo na vida das pessoas com deficiência: “O bolsonarismo não nos percebe como sujeitos de fato e de direito, mas como pessoas que devem ser alvo de caridade, de benfeitoria, e eles se colocam no lugar de ‘salvadores’ dessas pessoas que são vistas como coitadas. Um modelo que imaginávamos já estar superado”.

Confira a seguir.

CartaCapital: Em 2008, o Brasil instituiu a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Qual balanço você faz desses 15 anos?

Mariana Rosa: Desde 2016, tivemos governos que não só não investiram nas bases da escola inclusiva, como também desmontaram aquilo que já existia. Há um projeto para enfraquecer a escola, para enfraquecer o que é público e jogar as pessoas com deficiência nas suas casas ou em instituições desarticuladas do entendimento do que seria uma vida em comum.

CC: A que você atribui esse retrocesso?

MR: É um retrocesso não só no campo do discurso, em que começam a dizer que as pessoas com deficiência não deveriam estar na escola. Há um retrocesso principalmente no campo do Legislativo também. Ainda que tenhamos conseguido tirar o Bolsonaro da presidência da República, o bolsonarismo persiste.

A pauta bolsonarista, que ocupa grande espaço nas Câmaras e no Senado, é muito conservadora e vê as pessoas com deficiência com uma perspectiva absolutamente assistencialista. Esse grupo não encontra forte oposição. É muito difícil encontrar parlamentares defensores do acesso incondicional do estudante com deficiência ao currículo na escola pública.

Há um projeto para jogar as pessoas com deficiência nas suas casas ou em instituições desarticuladas

CC: Recentemente, o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro disse ser ‘impossível a convivência’ com estudantes com certo grau de deficiência ‘atrapalham’. A quem interessa a retomada de escolas exclusivamente às pessoas com deficiência?

MR: Primeiramente, não se pode chamar essas instituições de escola. Escola implica uma vida em coletividade, em que a diversidade é contemplada em seus espaços. Essas instituições são uma releitura dos hospitais psiquiátricos, dos manicômios, do apartheid, na medida em que as pessoas com deficiência são vistas como corpos desviantes e, portanto, devem viver separadas da sociedade. Isso é vantajoso no Legislativo, pois parlamentares fazem disso uma espécie de curral eleitoral. É também vantajoso, para eles, porque as verbas destinadas a instituições filantrópicas são pouco fiscalizadas.

Além de seguir a lógica neoliberal de desonerar o Estado, que se exime da obrigação de transformar as escolas, os espaços, as relações, de investir na escola pública, no SUS, para que as pessoas com deficiência possam participar da vida pública em pé de igualdade com os demais cidadãos. É preciso se perguntar como no século XXI, com a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que no Brasil é uma emenda constitucional, com a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, ainda há defesa da segregação. Isso é crime. Está descrito na lei. 

CC: Na sua percepção, quais são os principais entraves para o ingresso e a permanência dos estudantes com deficiência nas salas de aula?

MR: As pessoas ainda pensam a deficiência como um desvio, como uma anormalidade, e não como uma característica do ser humano. Além disso, há a parte estrutural.

Ainda existe um número grande de escolas no Brasil que não têm condições mínimas de acessibilidade. Não têm banheiros com acessibilidade, não têm rampas, não têm uma impressora braile, não usam nenhum recurso de comunicação alternativa, não têm transporte escolar com acessibilidade para levar os estudantes. Às vezes, não têm nem água tratada, que dirá os recursos de tecnologia assistida. Não têm uma formação adequada para os profissionais de educação.

Não há uma formação para compreender a deficiência como aquilo que acontece no encontro entre o corpo com determinadas características e o mundo que não acolhe, que não abraça a diversidade humana.

CC: Qual avaliação você faz dos seis primeiros meses do Ministério da Educação no que diz respeito à promoção dos direitos dos alunos com deficiência?

MR: Acho que o MEC ainda precisa apresentar o seu planejamento, a sua proposta de retomada da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva. A retomada dessa política é o gesto mais importante que o MEC precisa ter neste ano, com o aprimoramento da participação das pessoas com deficiência.

Muitas vezes essas pessoas são alvo da política, mas não são consultadas, ou são consultadas, mas não são consideradas, não têm poder de decisão. Nós temos a oportunidade, neste terceiro mandato do governo Lula, de pensar a deficiência numa perspectiva interseccional, contemplando gênero, raça e classe na formulação de políticas públicas. 

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