Diversidade

A ofensiva de estados e municípios contra a linguagem neutra é, além de ilegal, ineficaz

Pelo menos 34 propostas legislativas pautam a proibição da variação linguística na educação, na administração pública e no setor cultural. Especialistas criticam

(Ilustração: iStock)
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Em outubro passado, Rondônia se tornou o primeiro estado do País a aprovar uma lei proibindo o uso da linguagem neutra na grade curricular e nos materiais didáticos de instituições de ensino – públicas ou privadas. A imposição, no entanto, durou pouco. No mês seguinte, em novembro, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, a suspendeu em caráter liminar. A decisão do ministro será submetida a referendo do Plenário.

O esforço autoritário do governo de Roraima foi o prenúncio de um movimento ainda maior. Um levantamento da Agência Diadorim, feito em outubro do ano passado, contabilizou 34 propostas legislativas que pautam a proibição da variação linguística. A maioria mira a educação e a administração pública, mas também há propostas que ambicionam censurar até mesmo produções culturais. De todos projetos, 13 são de parlamentares eleitos pelo PSL, ex-partido do presidente Jair Bolsonaro. E quase todos foram escritos por homens, oito deles deputados militares – mas também um pastor e um “apóstolo”.

A linguagem neutra, ou inclusiva, reivindica a utilização de pronomes neutros, como forma de romper com o binarismo masculino/feminino na língua. Também prevê a substituição de adjetivos binários por alternativas neutras e de sujeitos: como, por exemplo, pela expressão “pessoas” (“pessoas bonitas”, “pessoas amigas”) como forma de se dirigir a coletivos.

Especialistas ouvidos por CartaCapital afirmam que as leis contrárias ao uso da linguagem neutra, além  inconstitucionais, são ineficazes. Afinal, é impossível legislar sobre a língua e suas formas de expressão. 

“A língua é fruto do seu contexto de uso. Ainda que existisse uma lei para legislar sobre ela, não pegaria, as pessoas não falam uma língua porque está na lei”, explica Fabiana de Lacerda Vilaço, doutora em Letras pela USP e professora do Instituto Federal de São Paulo. “A linguagem é uma construção humana que vem se moldando ao longo dos anos a partir da necessidade de expressar. Coisas, sentimentos, impressões. E também de comunicar.”

“Você pode gostar ou não que uma pessoa diga ‘amigue’ mas afirmar que isso está fora da língua é um absurdo”

Então, por que investir contra a linguagem neutra?

Os incômodos acerca da linguagem neutra precisam ser avaliados para além do campo linguístico. É impossível não levar em conta que esta é uma reivindicação dos grupos transgêneros e não-binários por mais representatividade: a língua portuguesa ainda é demarcada pelos gêneros feminino e masculino, e com maior predominância do último.

“O que está colocado é uma reflexão sobre como a linguagem pode permitir que nos expressemos sem representar somente os valores hegemônicos da nossa cultura, marcada pelo patriarcalismo”, observa Fabiana Vilaço. “É daí que vem a predominância do masculino genérico na linguagem, isso diz sobre essa sobreposição do homem, do gênero masculino na sociedade. Isso é ideológico e acaba nos dizendo sobre o lugar reservado à  mulher na sociedade, enquanto outros são reservados para homens”.

O professor de língua portuguesa e literatura João Cerdeira, mestre em Literatura pela UNIFESP, vê a linguagem neutra como exemplo da insuficiência social da lógica binária. “O binário não vem dando conta de representar a individualidade e a identidade das pessoas”, reflete, ancorando as reivindicações pela linguagem neutra na teoria queer, um dos seus campos de estudo. 

“A teoria queer rejeita o policiamento das identidades, é contra essa ideia de regulá-las normalizando apenas homens e mulheres”, avalia. “As pessoas têm direito ao seu reconhecimento em todos os campos. E o linguístico é um deles.”

LGBTQIA+. Fillipe Catto, Gloria Groove e Johnny Hooker são alguns dos cantores a misturar arte e militância. Todos encontraram o sucesso por meio de caminhos paralelos aos das rádios – Imagem: Daguito Rodrigues, Redes sociais e Arthur Wolkovier

Para o doutor em Linguística e Língua Portuguesa, Adrián Pablo Fanjul, a incorporação de usos neutros na linguagem não prejudica o sistema linguístico.  “Você pode gostar ou não que uma pessoa diga ‘amigue’ mas afirmar que isso está fora da língua é um absurdo. O fato de deputados ou pais apresentarem projetos contra esses usos não tem absolutamente nada a ver com a defesa de uma entidade abstrata que seria a Língua Portuguesa”, acrescenta. “Como sistema, ela funciona com autonomia.”

Para Salomão Ximenes, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo e professor da UFABC, há ainda uma tentativa de cercear a liberdade de expressão e a autonomia das escolas.

“Tentar proibir o uso de determinada língua configura censura, a limitação da liberdade de expressão, do pluralismo de concepções pedagógicas, que fazem parte do processo educacional.”

Na análise de Ximenes, as propostas legislativas que versam sobre a proibição da linguagem neutra acabam atendendo aos grupos que já se articularam pela aprovação do Escola sem Partido.

“A ideia é muito semelhante: criar proibições genéricas sobre a conduta dos professores e das escolas para a partir disso abrir margem a censura, a perseguição, mas também para a autocensura, que é quando docentes e escolas, com receio, acabam evitando tocar no tema.”

Na análise de Ximenes, ainda que a decisão do ministro Fachin sobre a lei de Rondônia seja monocrática por ora, sem análise do Plenário, deve prevalecer um entendimento a favor da liberdade de expressão e das escolas, o que criaria um precedente jurídico para a suspensão de leis similares. Em janeiro deste ano, o governador do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja Silva (PSDB) aprovou legislação semelhante.

“A posição do STF contra a censura prévia nas escolas, nas temáticas de gênero e diversidade tem sido uma posição bastante coerente, e a expectativa é que isso se mantenha”, coloca, ao reconhecer que os grupos conservadores buscam um confronto mesmo cientes de uma posição majoritária do Supremo.

A Justiça tem se manifestado a favor da linguagem inclusiva

Fachin entendeu que a lei estadual tentou se sobrepor às diretrizes e bases da educação pactuadas entre os entes federativos. E lembrou que os parâmetros nacionais para a educação, e inclusive para a Língua Portuguesa, tem entre seus objetivos ‘combater o preconceito linguístico’. Registrou ainda que a lei, a pretexto de valorizar a norma culta, acaba por proibir uma forma de expressão, sendo, portanto, inconstitucional. 

No Judiciário, se acumulam outras manifestações contrárias à proibição. No fim de fevereiro, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão divulgou uma nota técnica em que reforça o repúdio às tentativas de cercear a linguagem neutra. A PFDC cravou o que a vedação ao uso da linguagem inclusiva, além de transbordar os limites das ciências sociais e linguísticas, “incorre em patente inconstitucionalidade e inconvencionalidade, por indevida censura prévia, cerceamento ao direito à igualdade e à liberdade, especialmente de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”.

No mesmo mês, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina suspendeu uma lei do município de Criciúma que proibia o uso da linguagem neutra na grade curricular, no material didático de instituições públicas e privadas e em editais de concursos públicos. 

Ainda assim, a pauta segue sendo mobilizada pelo presidente Bolsonaro que chegou a criticar a decisão de Fachin. “Que país é esse? Que ministro é esse do Supremo Tribunal Federal, o que ele tem na cabeça?”, disse, em janeiro, durante entrevista ao programa Morning Show, da Jovem Pan.

Para Ximenes, a manifestação não vem descolada do projeto de país defendido por Bolsonaro e seus apoiadores. “A crítica de Bolsonaro à incorporação da linguagem inclusiva não tem nada de vazia. Uma das vias de afirmação da hierarquia social é a linguagem, então essa ofensiva é absolutamente coerente com o programa bolsonarista. É coerente com esse plano machista, sexista, racista do governo”, completa. 

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