Editorial

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O jogo do faz de conta

O chamado debate exibe apenas o atraso e a imaturidade do País na tentativa vã de decifrar a si mesmo

Bolsonaro confia, sobretudo, nas contribuições em dinheiro vivo do empresariado nativo - Imagem: Nelson Almeida/AFP
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Desde fevereiro de 1978, revistas dirigidas pelo acima assinado apoiaram incondicionalmente o comportamento de Lula, primeiro como líder sindical, depois como perseguido pela ditadura e, enfim, como presidente da República, de 2002 até o impeachment de Dilma Rousseff, apoiada para garantir a continuidade do governo.

Com esta definição clara da linha política, antes de IstoÉ, depois de ­CartaCapital, surgiu uma forte amizade inspirada pela admiração e pelo respeito da publicação e, finalmente, pelo afeto, conforme é do conhecimento até do mundo mineral. Esta orientação, aliás, me levou à demissão na IstoÉ, em agosto de 1993, motivada por desavenças com Domingo ­Alzugaray, que pretendia mudar a posição da revista. Graças ao meu sobrinho Andrea, que substituíra meu irmão Luís na direção de ­Vogue, e gostaria de lançar uma publicação chamada CartaCapital, destinada a cobrir eventos políticos e econômicos, voltei à prática do jornalismo que mais aprecio e tratei logo de confirmar a orientação já voltada ao apoio ao bem-sucedido metalúrgico Luiz Inácio da Silva.

Regressemos aos dias de hoje, quando o energúmeno demente, ex-capitão Jair Bolsonaro, eleito na ausência da sua candidatura, em 2018, deflagra a sua guerra santa. Pretende substituir a Constituição pela Bíblia, a qual serve a todos, católicos e evangélicos. Surge frequentemente no vídeo a cobertura de fluviais sessões religiosas promovidas pelos intérpretes solícitos da vontade divina. Mãos postas, rostos voltados para o céu, com as expressões hieráticas dos frades pintados por ­Zurbarán. Bolsonaro aposta neste gênero de fiéis entregues a orações constantes, genuflexos em adoração. É uma cruzada disposta a dispensar os anacoretas de mil anos atrás, para substituí-los por pingues “pastores” endinheirados, solertes cobradores de dízimos. E, sobretudo, confia no apoio do empresariado nativo representado por robustas quantidades de dinheiro vivo.

Até onde chega a demência de Bolsonaro e a do próprio País, inclinado ao jogo primário do faz de conta, como se viu no chamado debate entre o atual e o ex-presidente? Nem um nem outro, no segundo turno que pretendemos necessário como grei pronta a confundir, igual aos candidatos até agora na liça, a realidade com a imaginação marqueteira. No encontro do auditório da Band, domingo 16, em momento algum os contendores se referiram aos mais graves problemas do País e o clima não emergiu do figurino previamente traçado por Lula, segundo quem tudo não passaria de uma troca de ofensas na enésima rodada da atual pantomima política.

Os candidatos ignoram, impávidos, o verdadeiro problema do País, segundo mais desigual do mundo

Lula acusa o adversário de “caradura”, mas ele próprio não brinca em serviço na matéria. A sua imitação de ­Buster Keaton é de fato invulgar. Se o Brasil é o segundo país mais desigual do mundo, na odienta classificação que exibe em primeiro lugar a África do Sul, reino do apartheid, os demais africanos são menos desiguais do que nós. A passagem indispensável à compreensão da tragédia brasileira passa em branca nuvem. Tudo fica por isso mesmo na prática de um jogo a fingir a habitual, falsa normalidade.

E que país é este? Os dois não sabem dizer por que o Brasil carece da capacidade de julgar a si mesmo, a despeito de pensadores como Euclides da Cunha, ­Raymundo Faoro, Celso Furtado e Gilberto Freyre, largamente habilitados a analisar as razões do nosso atraso, da nossa eterna imaturidade. Enxergavam muito bem, enquanto os demais preferiam a cegueira diante da evidência, deliberadamente ou não, de consciência escancarada ou não.

Este debate, pomposamente apresentado pela mídia nativa, diria mesmo irresponsavelmente, é fator de elevadíssimos índices de audiência, propiciados pela mesma mídia sem deixar de representar o costumeiro engodo. E a maioria o engole por ignorância ou comodidade. Da mesma forma engole o debate inútil, às vésperas de um segundo turno a resultar ainda nos erros, empulhações, tergiversações e confusões cometidos pelos governantes, excluídos os timoneiros capazes de realizar a campanha das Diretas Já, único evento empolgante na história do povo brasileiro, pelo qual podemos e devemos nos orgulhar, ao ser capaz de lotar praças e avenidas de cidadãos esperançosos.

Tornou-se insuportável a dificuldade para quem deseja reencontrar o caminho da esperança. Se dermos ouvidos aos senhores da política e da mídia, só nos cabe aguardar o resultado do segundo turno já iminente. Na visão de CartaCapital, trata-se da vereda maligna que leva inexoravelmente a mais um desastre. Já compreendemos que os envolvidos no embate não pretendem mexer no status quo a perdurar desde o grandioso empenho dos timoneiros a habitar agora somente a memória.

E o País soçobra na sua própria incapacidade crítica, lacuna irreparável a incentivar a cegueira geral, salvo as exceções de praxe. A pagar pelos males acumulados por décadas e décadas, curar o país doente é tarefa para heróis no extremo limite do arrojo. Neste Brasil imerso no caos, 30% da população morre de fome e outro tanto duvida da refeição de amanhã.

Aumenta verticalmente a ­quantidade­ de brasileiros sem-teto, condenados a viver embaixo de pontes e viadutos, sem contar que 37% dos lares com crianças menores de 10 anos enfrentam insegurança alimentar grave ou moderada, segundo o Vigisan (Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil). A contar com a indiferença da casa-grande e o conformismo patético da senzala, com a contribuição decisiva da imprensa escrita, falada e televisionada, eternamente entregue aos interesses dos donos do poder. É fácil identificá-los em um país dividido sumariamente entre uma minoria desbragadamente rica e uma maioria avassaladora desbragadamente pobre. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O jogo do faz de conta “

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