Editorial

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Em busca do antigo vigor

Em lugar de preocupar-se com a paz mundial, melhor seria se o presidente procurasse a paz aqui mesmo

Na Vila Euclides, o maior desafio à ditadura – Imagem: Arquivo/Folhapress
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CartaCapital manteve por bom tempo a tradição de uma festa de aniversário celebrada em lugar adequado para receber muitos amigos. A estes eventos comparecia uma autoridade que até poderia ser o presidente ou a presidente da República. Em 2004, em lugar de Lula veio o vice-presidente ­José ­Alencar, pessoa sábia e muito simpática. Na saudação que me coube dirigir ao hóspede ilustre me permiti dizer que, no Brasil, ainda não chegaram os efeitos da Revolução Francesa.

Mais tarde, enquanto desfrutávamos do simpósio oferecido logo após a cerimônia, o vice-presidente comentou: “Gostei do seu pronunciamento e meditarei a respeito do significado”. As ideias de liberdade e de igualdade Napoleão cuidou de espalhá-las mundo afora. Quanto à fraternidade, o general vitorioso deixou para lá. O significado buscado por ­Alencar: acentuar que estes valores são indispensáveis para a realização da democracia ainda não alcançada no Brasil, segundo país mais desigual do mundo.

Anos depois, em uma mesa-redonda em Salvador, na Bahia, da qual participava Gleisi Hoffmann, presidente do PT, também me permiti afirmar que o partido dela não cumpria suas promessas. Meu pensamento a respeito de tais questões, certamente fundamentais, não mudou. O vertiginoso abismo que, no Brasil, separa uma minoria rica de uma maioria extravasante de pobres, 30% deles esfomeados, enquanto mais 30% não sabem se jantarão à noite, nega exatamente os valores da Revolução Francesa. Sem contar as dezenas de milhões dos compatriotas que dormem nas calçadas ou debaixo de pontes.

Ainda estamos à espera do vigoroso líder que conheci faz 50 anos, quando comandava as greves gerais desfechadas a partir do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, de abril de 1978 até 1980, quando Lula foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Do ponto de vista dos graúdos uniformizados, a decisão tinha sentido: aquelas greves foram o maior desafio à ditadura invocada e apoiada maciçamente pela mídia nativa, a serviço da casa-grande sempre de pé. As consequências deste desastre manifestaram-se cada vez mais explícitas por 21 anos, até a saída, pelos fundos do Palácio do Planalto, do derradeiro ditador, João Figueiredo.

Ao papa o que é do herdeiro de Pedro – Imagem: Massimo Valicchia/NurPhoto/AFP

Os poderes da República pregados pelos democratas autênticos no Brasil funcionam até hoje como peças de uma engrenagem absolutamente desconectada. E o elemento mais ameaçador para o futuro do Brasil, mais do que o famigerado Jair Bolsonaro, é hoje o Congresso, dominado não por partidos conscientes da situação e caracterizados pela ideologia professada, mas por uma maioria de parlamentares a defenderem seus próprios interesses, como inimigos da nação que teoricamente representam. Já houve a época malfadada do Centrão, fiel praticante da sua clássica lei: é dando que se recebe. Até parece que o Centrão tomou o Congresso por inteiro.

Em lugar de partidos, certos ou errados na defesa de suas ideologias, temos hoje bancadas voltadas exclusivamente para suas conveniências. Ou seja, buscam dinheiro da forma mais volumosa, direta e rápida. O Congresso conta com bancadas em lugar de agremiações políticas. Destaca-se a bancada ruralista, especialista em queimadas para abrir espaço às boiadas e à soja, de sorte a confirmar a nossa vetusta vocação de país exportador de commodities, desde os tempos da borracha e do café. De quebra, a vitoriosa passagem pelo Brasil da droga destinada aos países europeus com a contribuição de um produto típico da nossa terra dadivosa, a maconha, também dita marijuana. As máfias, onde quer que existam mundo afora, agradecem sensibilizadas.

Do alto dos meus quase 90 anos, a serem completados logo mais, permito-me um conselho ao velho amigo mais moço, aquele que pendurava no seu sindicato um quadro célebre do pintor Pellizza da Volpedo, intitulado O Quarto Poder. Trata-se do poder dos trabalhadores, perfeitos representantes do povo. Não se preocupe em tirar o pão da boca do papa Francisco e com a paz do mundo. Cuide da paz aqui dentro das nossas fronteiras, do Oiapoque ao Chuí. Enfrente os seus inimigos onde quer que se manifestem. Faça as reformas necessárias para acabar de vez com a desigualdade, entrave fatal a uma verdadeira democracia. Esta é a indispensável tarefa que lhe cabe, a qual até hoje entendo que somente você pode cumprir. •

Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Em busca do antigo vigor’

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