Editorial

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A pantomima patética e caríssima

Enquanto se alarga o risco de uma guerra nuclear, o Brasil parece habilitado a escapar da desgraça

Malaquias foi mensageiro do futuro de destruição no mesmo instante em que os homens provavam sua vocação para o castigo - Imagem: Emiliano LaSalvia/AFP, Redes sociais, iStockphoto e Kirill Kudryavtsev/AFP
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Papa Francisco, reformador da Igreja Católica, acaba de escrever uma carta de demissão. Pergunto aos meus espantados botões: está doente ou percebe o acerto das profecias de Malaquias? A cavaleiro dos dois milênios depois de Cristo, o monge irlandês formulou sua mensagem profética a respeito do destino de todos os papas, de Roma e do mundo. Último pontífice seria o 112º, ou seja, papa Francisco, ­pastor et nauta, pastor e navegador. No último ato do Apocalipse, desapareceria juntamente com Roma e o mundo, a bola de argila a girar elipticamente em torno do Sol.

Enquanto isso, a liderança de Lula atinge o seu nível máximo e precipita confiança no futuro. O Brasil anda na contramão do mundo, a viver no fio da navalha o risco de um conflito nuclear. O exército do novo czar Putin desfere uma guerra para se afastar da Europa e agride a Ucrânia com o intuito de se apossar das margens do Mar Negro. A Ucrânia, agredida, resiste em solidão. O Ocidente envia ao governo de Kiev dinheiro, armas, mantimentos, apoio moral, embora, na prática, se limite ao papel de observador de uma derrocada inevitável.

A dinheirama destinada a cofres diversos implora pela vingança do destino – Imagem: Polícia Federal da Bélgica

Em vão cogitou-se de uma mediação chinesa e Putin se apressou a também rejeitar a intervenção do papa. Seu exército avança, chega a transpor as fronteiras da Polônia e redobra seus ataques. Para alguns povos, o fim do mundo já começou. Temo que o papa esteja convencido da inutilidade dos seus apelos à paz, como se a palavra final coubesse a Malaquias.

Quando falo da Irlanda, refiro-me à maior porção da ilha, não incluída a força dentro dos confins do Reino Unido. É uma terra de literatura esfuziante, de Jonathan Swift, inventor de Gulliver e das suas viagens extraordinárias, e James ­Joyce, que condensou a vida do seu Ulysses em um único dia. Faço questão de acentuar que a Irlanda é pátria também da melhor cerveja preta do mundo, ideal para noitadas alegres que não são as de agora.

Todo exibicionismo de uma ditadura que tortura os pobres para favorecer os ricos – Imagem: iStockphoto

De todo modo, as profecias de ­Malaquias, já contemplado pela hagiografia católica e proclamado santo, ao longo dos séculos revelaram-se certeiras. E ninguém como Francisco sabe disso. Valente e sagaz, Francisco já venceu a sua primeira batalha contra a Cúria Romana nascida à sombra de João Paulo II, tolerante em relação a inúmeros pecados, entre os quais figuram a atuação devassa do cardeal Paul Marcinkus e a lavagem de dinheiro mafioso por parte do IOR, Banco do Vaticano. Mesmo assim, Francisco levou o confronto de vencida com a expressão mais plácida estampada no rosto. Agora, a refrega envolve um mundo cada vez mais doente.

Mesmo o campeonato mundial de futebol, independentemente da qualidade excepcional de jogadores do porte de Lionel Messi e Kylian Mbappé, mergulha novamente na corrupção, já praticada pela quadrilha de ­Havelange, Teixeira e Blatter. O sucessor, o suíço Infantino, não é CEO de uma grande multinacional, é um monumental vendilhão do Mundial aos príncipes do Catar, dados irresistivelmente a desrespeitar os direitos humanos, torturadores exímios de quem protesta. E ainda vale acrescentar o comportamento do presidente da França, Emmanuel ­Macron, que precipitadamente se desloca para Doha na qualidade de torcedor fanático da seleção derrotada. Penoso desempenho de um jovem afoito.

Imagem: Giuseppe Cacace/AFP

SIM, A FRANÇA NÃO É A PÁTRIA DO FUTEBOL, EM VÃO MACRON TORCEU DESESPERADAMENTE PELOS DERROTADOS

Surge nos vídeos uma maleta cheia de dinheiro até a borda, símbolo de uma tramoia a provar a corrupção esportiva que também é social, política e moral. Jornalistas italianos demonstraram que o dinheiro chegou às mãos de parlamentares europeus, entre eles cidadãos da península. À luz de uma visão objetiva da situação mundial, vale dizer, como os locutores de antanho, que somos obrigados a assistir a uma formidável “melée na área”. Atacantes e defensores se aglomeram diante do gol ameaçado, cada qual envolvido na tentativa de cumprir o compromisso a que foi chamado. Cada um a seu modo, há mesmo quem finja um esforço muito superior à sua vontade, no aguardo das trajetórias que a bola será capaz de tomar. De antemão, sabe-se que ela é por demais caprichosa.

Notável discrepância manifesta-se entre o Brasil e o mundo. Sorte nossa, ganhamos, subitamente, razões bem-postas de confiança no futuro, no mesmo momento em que o mundo caminha no sentido oposto, com todos os riscos que o rumo encerra. ­Recomendava­ ­Spinoza, o filósofo judeu que se salvou ao fugir de Portugal e dos autos de fé para se refugiar na Holanda e afirmar a sua lição de vida: “Nem fé, nem medo”. Preciosa recomendação que nos leva a evitar a palavra esperança, a qual, por si, não esconde a dúvida. Preferimos confiança, a afirmar um sentimento surgido da convicção.

O medo origina-se da nossa fragilidade confrontada com a eternidade de um universo sem-fim, onde tempo e espaço, invenções do ser humano para justificar a si próprio, não existem. Certo é viver a vida como ela é. No nosso caso, na contramão de uma crise mundial, preferimos confiar do que esperar. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A pantomima patética e caríssima”

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