Economia

Lei cambial dá ‘cheque em branco’ para o Banco Central, diz Nelson Barbosa

Ex-ministro da Fazenda critica possível permissão generalizada de contas em moedas estrangeiras e cita risco de dolarização informal

O ex-ministro da Fazenda e do Planejamento, Nelson Barbosa. Foto: José Cruz/Agência Brasil
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A combinação entre dois projetos de lei aprovados na Câmara divide economistas: a autonomia do Banco Central e a nova lei cambial. O primeiro já passou pelas duas Casas do Congresso Nacional e segue para sanção do presidente Jair Bolsonaro. O segundo ainda precisa ser votado no Senado.

 

Órgão ligado ao Ministério da Economia, o Banco Central tem como objetivo controlar a inflação, ou seja, buscar a estabilidade dos preços de produtos que nós compramos. Também funciona como agência reguladora dos demais bancos, públicos e privados, oferecendo créditos, fiscalizando e intervindo em decisões.

Antes do projeto que lhe deu autonomia, o Banco Central tinha submissão maior ao presidente da República, ou seja: nomeados pelo chefe do Executivo, os dirigentes do órgão poderiam ser demitidos a qualquer hora. Com a nova lei, o presidente da República segue escolhendo a direção, mas essa cúpula tem mandatos fixos de quatro anos e não pode ser demitida com uma justificativa qualquer. Além disso, o presidente do Banco Central toma posse no terceiro ano de gestão do governo federal, ficando no poder até o governo seguinte, mesmo que seja outro.

Defensores acreditam que o projeto afasta o Banco Central de pressões políticas. Do outro lado, críticos dizem que o órgão, ao se tornar autônomo, está mais vulnerável à influência do mercado financeiro.

Votado logo depois, o novo marco cambial tem o objetivo, em tese, de simplificar transações financeiras que envolvem moedas estrangeiras, especialmente o dólar. Os defensores da proposta argumentam que a legislação brasileira tem dispositivos muito antigos e pulverizados em diferentes leis e decretos, o que representaria insegurança jurídica para, por exemplo, importadores e exportadores que dependem da troca de moedas entre um país e outro para negociar seus produtos.

Porém, despertou a atenção de economistas um trecho que dá ao Banco Central, agora autônomo, o poder de regulamentar a abertura de contas em moeda estrangeira no Brasil, por pessoas físicas e jurídicas que moram no país, em bancos que operam no território nacional. Não foram informados critérios, apenas que o processo ocorreria de forma “gradual e prudente”.

“Compete ao Banco Central do Brasil regulamentar as contas em moeda estrangeira no País, inclusive quanto aos requisitos e aos procedimentos para sua abertura e sua movimentação”, diz o item IX do Artigo 5 do texto, de autoria do Palácio do Planalto, relatado pelo deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA).

O prédio do Banco Central do Brasil, em Brasília. Foto: Leonardo Sá/Agência Senado

Em momentos de crise econômica e desconfiança sobre o real, dizem os críticos, a facilidade em abrir contas em dólares poderia gerar uma “corrida bancária”, levando à desestabilização da nossa moeda. Para especialistas, a circulação de duas moedas na nossa economia deveria ser tratada, portanto, no Congresso Nacional, e não em um regulamento escrito por um órgão com dirigentes que não foram eleitos.

Ex-ministro da Fazenda e do Planejamento do governo Dilma Rousseff (PT), Nelson Barbosa diz ver qualidades no texto aprovado, por reduzir custos de transações financeiras e, com isso, ter potencial para melhorar o funcionamento do mercado. No entanto, a nova lei ainda é um “cheque em branco”, porque, em vez de definir condições claras em itens importantes, como o referente à abertura de contas em moeda estrangeira, deixa nas mãos do Banco Central o poder de determiná-las. Sem conhecer as decisões futuras, é difícil calcular os riscos.

“A gente não sabe como vai ser. O que o Banco Central está pedindo com essa lei é um grande cheque em branco: confie em mim, eu vou regular isso. Ao mesmo tempo, ele disse para a população brasileira: me dê autonomia, que eu não vou ficar subordinado às pessoas que vocês elegerem por quatro anos”, assinala o ex-ministro, hoje professor de Economia na Universidade de Brasília.

Caso haja permissão generalizada para a abertura de contas em dólar no Brasil, diz ele, há risco de aumento na “volatilidade cambial”, isto é, maior frequência na oscilação dos preços para comprar e vender moedas, o que impacta, por exemplo, nos preços dos produtos.

Barbosa cita ainda possível “dolarização informal” na economia.

Segundo a Lei do Plano Real, de 1995, é obrigatório que transações financeiras em território nacional ocorram com a moeda brasileira. O Banco Central diz que não quer mudar isso, reforça o ex-ministro, mas um futuro regulamento pode abrir brecha para, por exemplo, “contratos de gaveta”, ou seja, acordos de compra e venda de produtos e serviços firmados em segundo plano, com valores ajustados à moeda americana.

Em último caso, assusta o que ocorreu em países como a Argentina. O ex-ministro lembra a era de Carlos Menem (1989-1999), que igualou o peso argentino ao dólar. Assim, a população poderia fazer depósitos com dinheiro nacional e, posteriormente, sacar em moedas americanas. Com a crise cambial, os argentinos tiveram suas economias confiscadas, porque os bancos não tinham dólares para honrar os saques.

“O Banco Central diz que não quer fazer isso. Temos que acreditar na intenção das autoridades ao que está escrito”, pondera Barbosa. “Mas a lei aprovada na Câmara permite uma ampliação generalizada. Não acho que é tão imediato, mas, infelizmente, a gente não pode dizer que o risco não existe. Ele existe.”

Confira a entrevista a seguir.

Basta reescrever bem. Do jeito que o projeto está, pode se tornar um grande problema, mas eu não sei qual a regulação que o Banco Central vai fazer.

CartaCapital: Há qualidades na nova lei cambial?

Nelson Barbosa: Há virtudes. Como os próprios representantes do Banco Central colocaram, nossa legislação cambial está dispersa em vários instrumentos. Tem decretos, leis, alguns dispositivos bens antigos. Isso cria dificuldade de interpretação e incerteza regulatória e jurídica. É bom consolidar tudo para a nova realidade da economia mundial. A simplificação pode ser usada para bons objetivos. O PL reduz custos de transação e pode melhorar bastante o funcionamento do mercado.

A questão é que, no processo de simplificar e unificar, também se abre portas para o risco de volatilidade cambial e até de adoção de contratos em dólares domesticamente. Do jeito que está, o projeto de lei é bem geral. O Banco Central tem dito que tudo vai ser definido no regulamento. Regulamento de quem? Do Banco Central, que agora se tornou autônomo. Então, na verdade, deu-se um cheque em branco para o Banco Central definir o regulamento cambial, a partir de dirigentes que, uma vez indicados, terão mandato e autonomia por pelo menos quatro anos.

Uma das coisas a ser feita nesse projeto é deixar claro qual o papel do Banco Central no regulamento e qual o papel do Congresso Nacional, do Conselho Nacional Monetário e do governo. Cabe ao governo e ao Congresso legislar, e ao Banco Central, implementar. Assim, as diretrizes da política cambial continuariam sendo dadas pelo Conselho Monetário Nacional, ligado ao Ministério da Economia, e pelo Congresso Nacional. No entanto, o projeto de lei é ambíguo. Diz que o Banco Central estabelecerá o regulamento de acordo com as diretrizes do Conselho Monetário Nacional e da legislação em vigor, mas não está claro o que é regulamento e o que é lei. 

O texto também permite que residentes tenham contas em dólares no Brasil. O projeto de lei diz que isso vai ser restrito a quem faz comércio exterior ou intermediação com o resto do mundo. Mas tem lá: e em outros casos definidos pelo regulamento. Se é definido pelo regulamento, é definido pelo Banco Central. Eu acho que isso deveria ser uma atribuição do Conselho Monetário Nacional. Então, não está claro qual é a divisão do trabalho entre o Banco Central e o governo.

Uma das coisas que se falou para dar autonomia ao Banco Central é que ele ia ser o agente de execução da política definida pelo governo. Pois bem, na política cambial não está muito claro quem define o quê.

CC: Quais os possíveis efeitos práticos da abertura de contas em dólar no Brasil?

NB: Não está clara qual é a contrapartida. Hoje em dia, qualquer um pode aplicar em dólares. A diferença é que você aplica em reais e saca em reais. É uma aplicação indexada à moeda estrangeira, mas feita e liquidada na moeda nacional. Com a nova lei, quando eu tiver depósitos em moeda estrangeira no Brasil, vai ser na forma do regulamento. Mas como vai ser?

Por exemplo, eu quero abrir uma conta em dólar. Vou no banco e digo: quero comprar cem dólares, então, vou depositar o equivalente em reais. Dessa forma, eu vou depositar reais e tirar dólares, e aquele banco vai ter uma obrigação em dólares comigo.

Qual é a contrapartida? Ele vai pegar esses reais e depositar no Banco Central? Aí vai ter uma obrigação do Banco Central para com o banco comercial, e do banco comercial para comigo? Ou o próprio banco privado vai abrir uma conta em dólares no exterior? Onde é que está a contrapartida das contas em dólares no Brasil? Vai ser um depósito no exterior, no Brasil, onde? No Banco Central, ou no próprio sistema financeiro? São coisas que não são triviais e, dependendo de como forem organizadas, podem dar mais solidez ou fragilidade ao sistema. Então, por isso esses detalhes precisam ser esclarecidos. O que deixa muita gente com o pé atrás é que pode ser qualquer coisa. 

Câmara dos Deputados aprovou autonomia do Banco Central e nova lei cambial. Foto: Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados

CC: A dolarização da economia é um risco próximo?

NB: A dolarização seria um passo a mais. Além de ter depósitos em dólar, é começar a fazer contratos em dólar. Isso é proibido por lei. A Lei do Real diz: os contratos têm que ser feitos em moeda doméstica. Então não posso fazer, por exemplo, um contrato de aluguel em que o pagamento é feito em dólares. Eu não posso indexar um contrato em dólares. Não posso cobrar mensalidade de plano hospitalar, educação ou colocar preço de supermercado em dólares. Isso não está acontecendo. 

Mas no momento em que você tiver contas em dólares, dependendo da situação macroeconômica, você pode estimular contratos de gaveta em dólares, ou seja, uma dolarização informal de algumas transações. É o que a gente viu na Argentina. As pessoas depositavam em pesos, mas tinham compromisso de sacar em dólares. Os contratos tinham que ser feitos na moeda argentina, mas, na prática, fazia-se contratos de gaveta, um acordo com transações indexadas ao dólar.

Estamos muito longe disso, para ser bem claro, muito longe. Não há risco imediato de dolarização da economia brasileira. A Lei do Real continua valendo, os preços e as transações têm que ser feitas em reais.

 

Mas essa lei cambial diz que o regulamento do Banco Central vai determinar que tipos de depósito podem ocorrer, que tipos de agentes podem realizá-los, como vai ser a contrapartida. Se for uma permissão generalizada para ter contas em dólar, pode  haver um movimento maior do público para fazer aplicações em dólares. Exemplo: assim como todo mundo pode aplicar na poupança, você pode criar uma poupança em dólar. 

O Banco Central diz que não quer fazer isso. Tanto que ele diz que vai ser muito restrito. Temos que acreditar na intenção das autoridades ao que está escrito. Mas, ao mesmo tempo, tem uma linha que diz “e outros casos”. Então, quando a gente faz uma lei, não pensamos somente em quem está no governo hoje. Fazemos uma lei pensando em todo mundo que vai usá-la. Por isso, acho que a permissão para a abertura de contas em dólares tem que ser muito bem definida, e tem que ficar claro quem vai regular isso.

O nosso Banco Central não emite dólar. Então, se for generalizado, pode gerar sim volatilidade cambial. Foi o que aconteceu na Argentina. Estamos distantes disso. O Banco Central diz que não vai ser assim. Mas a lei aprovada na Câmara permite uma ampliação generalizada. Então, há esse risco de volatilidade sim. Não acho que é tão imediato, mas, infelizmente, a gente não pode dizer que o risco não existe. Ele existe.

CC: Que problemas a volatilidade cambial pode trazer?

NB: Que problemas tiveram os países que fizeram isso? O exemplo mais claro e próximo é o da Argentina. Durante um período, foram permitidos depósitos em dólar no sistema financeiro nacional. Quando houve a crise cambial, as pessoas correram para sacar os seus dólares, e os bancos não tinham dólares o suficiente para honrar os saques. Então, houve uma espécie de confisco, você não podia sacar todos os dólares que tinha depositado.

Esse é um exemplo de má administração de contas em moeda estrangeira no seu próprio país. Tem outros países que têm contas em moeda estrangeira, mas só permitem que o banco aceite um depósito em dólar se ele tiver dólar em reserva. Então é “um para um”. Para cada depósito em dólar, ele tem que ter um dólar aplicado, de modo que, se tiver corrida para retirada, ele honra tudo.

Então, depende da regulação. A lei diz o quê? “Conforme o regulamento”. A gente não sabe como vai ser. Pode ser sólido, pode ser frágil. O que o Banco Central está pedindo com essa lei é um grande cheque em branco: confie em mim, eu vou regular isso. Ao mesmo tempo, ele disse para a população brasileira: me dê autonomia, que eu não vou ficar subordinado às pessoas que vocês elegerem por quatro anos. 

Uma vez nomeado, um diretor vai ficar quatro anos no cargo. E se ele adotar uma medida percebida como equivocada? Só depois de quatro anos que o governo vai poder indicar alguém para mudar essa política.

Nelson Barbosa é crítico à autonomia do Banco Central. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

CC: A autonomia do Banco Central aumenta a desconfiança sobre as intenções em relação à nova lei cambial?

NB: Não necessariamente. Eu sou favorável aos mandatos fixos, desde que haja separação de atividades, e desde que o Banco Central execute as diretrizes do governo. O melhor exemplo é a meta de inflação, que é definida pelo presidente da República. No caso da regulação cambial, você pode resolver na lei. Basta reescrever bem. Do jeito que ele está, pode se tornar um grande problema, mas eu não sei qual a regulação que o Banco Central vai fazer.

CC: Qual a avaliação do senhor em relação à aprovação da autonomia do Banco Central?

NB: A grosso modo, tem três problemas ali. Criaram dois problemas que não existiam. O terceiro já existia, mas eles não quiseram enfrentá-lo.

O primeiro problema. Colocou-se uma hierarquia entre os objetivos de política monetária. Ficou assim: primeiro, o Banco Central controla a inflação; depois, mantém a estabilidade financeira e suaviza flutuações no emprego e na renda. Só que tudo se judicializa no Brasil. Tem sempre um procurador do Ministério Público ou um auditor do TCU querendo criminalizar qualquer coisa, para ter seus quinze minutos de fama na imprensa. Ao colocar ordem de prioridades nos objetivos do Banco Central, você está convidando uma judicialização da política monetária. Vai aparecer alguém, em algum momento no futuro, dizendo que o Banco Central não seguiu exatamente o que estava na lei, que deu mais importância a uma coisa enquanto deveria estar em segundo lugar.

Se é para traçar objetivos, minha sugestão é colocar tudo igual, e quem define a prioridade é o decreto do presidente da República. Quando você coloca a prioridade na lei, você abre espaço para uma contestação jurídica posterior. Esse problema foi criado, não existia. Tentaram consertar o que não estava quebrado, e criaram um problema.

Segundo problema: os mandatos. Eu sou a favor dos mandatos fixos. Mas colocar o presidente do Banco Central no terceiro ano de gestão do governo federal é convidar problema político. A sugestão que eu fiz era: no primeiro ano, o presidente da República eleito nomeia o presidente do Banco Central e dois diretores. Da forma como ficou, colocaram o presidente do Banco Central no terceiro ano de gestão do governo federal.

Vamos imaginar a seguinte situação. Um governo ganha e, nos primeiros dois anos, indica quatro diretores. Continuam os outros cinco do governo anterior. Pode ser que esses quatro diretores pensem diferente dos outros cinco, haja divergência dentro do Copom numa votação. Isso vai criar incerteza e acusação de disputa política na determinação da taxa de juros. Dirão que esses quatro diretores estão contestando o presidente do Banco Central. Então, você jogou política para dentro do Copom. Em vez de blindá-lo, aumentou sua contaminação política. 

O terceiro problema, que eles resolveram não enfrentar, é a questão da porta giratória. No Brasil, é comum a pessoa sair do mercado financeiro, entrar o Banco Central, depois voltar para o mercado. Isso existe em todo lugar, nos Estados Unidos e na Europa. Mas, no exterior, você se preocupa com isso de duas formas.

Você pode impor uma quarentena mais longa. No Banco Central europeu, a quarentena é de dois anos, ou seja, após sair do Banco Central, ele fica proibido de prestar serviços ao sistema financeiro nesse período. [A lei aprovada na Câmara estabeleceu somente seis meses de quarentena.]

Você também pode indicar para o Banco Central pessoas de perfil sênior. Nos outros países, normalmente, o Banco Central é um final de carreira, para pessoas mais velhas. Os nomeados costumam se aposentar no cargo ou vão para outros cargos públicos, mas dificilmente voltam para um conselho de administração de um banco privado. No Brasil, a porta giratória é muito grande. Isso se chama risco de captura do Banco Central pelos bancos, do regulador pelos regulados. Esse projeto de lei poderia ter enfrentado isso, estabelecendo uma quarentena maior e trazendo requisitos que levassem pessoas de perfil sênior para o Copom. Eles preferiram não enfrentar isso. O problema permanece.

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