Economia

Autonomia do Banco Central pode agravar o impacto econômico da pandemia

Em entrevista a CartaCapital, Maria de Lourdes Mollo explica o que fundamenta a discussão do tema em votação no Congresso Nacional

O prédio do Banco Central do Brasil, em Brasília. Foto: Leonardo Sá/Agência Senado
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Parado há mais de trinta anos no Congresso Nacional, o projeto que dá autonomia do Banco Central renasceu sob a égide de Jair Bolsonaro e pode ser aprovado nesta semana. O texto, que passou pelo Senado em novembro passado, ganhou prioridade na Câmara, agora sob a batuta de Arthur Lira (Progressistas-AL). “Um grande sinal de previsibilidade para o futuro da economia brasileira. Um grande sinal de credibilidade para o Brasil perante o mundo”, escreveu Lira, na segunda-feira 8, ao anunciar acordo para votação.

A bandeira une bolsonaristas e liberais. Seu rol de apoiadores vai de extremistas como o pastor Marco Feliciano (Republicanos-SP) e a deputada Bia Kicis (PSL-DF) a moderados como Rodrigo Maia (DEM-RJ) e João Amoêdo (Novo). A oposição no Congresso protesta, com o argumento de que o tema não foi devidamente debatido em comissões na Câmara.

A discussão, entretanto, divide economistas. Hoje, o Banco Central está subordinado ao presidente, que decide quem manda no BC e por quanto tempo. A mudança garante a prerrogativa da nomeação, mas obriga o presidente a justificar a demissão desses diretores antes dos quatro anos de mandato.

A proposta também altera a data de início e do fim dos mandatos. O presidente do Banco Central passaria a tomar posse no 3º ano de gestão do presidente da República, permanecendo no poder pelos próximos quatro anos. Já a nomeação dos diretores seguiria uma escala ao longo dos quatro anos de gestão do governo federal.

De um lado, defende-se a maior autonomia do Banco Central em relação ao poder Executivo, porque o trabalho da entidade deve, supostamente, estar longe da pressão política.

De outro lado, críticos apontam que o Banco Central não pode ser “independente”, pois deve seguir a agenda econômica eleita nas urnas.

Prédio do Banco Central do Brasil, autarquia ligada ao Ministério da Economia. Foto: Raphael Ribeiro/Banco Central

Outro alvo desse debate é o papel do Banco Central.

Desde que foi criado, em 1964, o Banco Central é ligado ao Ministério da Economia

Atualmente, sua função é controlar a inflação, ou seja, buscar a estabilidade dos preços dos produtos que, por exemplo, compramos no supermercado. Com inflação alta, paga-se mais pelo que se compra. Para evitar esse aumento, portanto, o Banco Central regula a estabilidade do real, controlando taxas de juros e de câmbio.

Defensores da autonomia, em geral, creem que o papel do Banco Central deve ser, somente, controlar os preços dos produtos e perseguir sua estabilidade. Já os críticos creem que deve ser também função do Banco Central trabalhar pelo desenvolvimento econômico e pelo combate ao desemprego, aliado às políticas do governo eleito.

Para Maria de Lourdes Rollemberg Mollo, professora de Economia da Universidade de Brasília e especialista em Economia Monetária, o que está em jogo é o papel do Estado.

Os defensores da autonomia do Banco Central, aponta ela, são em maioria adeptos do enxugamento do Estado e da autorregulação do mercado. Já os críticos, sobretudo progressistas, requerem maiores poderes ao Estado sobre a economia – dar autonomia ao Banco Central, portanto, seria retirar do governo eleito a capacidade de interferir no processo de desenvolvimento.

“A autonomia do Banco Central pode, com certeza, dificultar a saída da crise”, considera Maria de Lourdes. “Como há essa divergência teórica entre os economistas, os governos mais progressistas ficam numa camisa de força.”

Confira a entrevista a seguir.

A autonomia do Banco Central tira dos governos a possibilidade de utilizar um tipo de política, que é a política monetária, para os objetivos aos quais ele se propôs na eleição.

CartaCapital: O que fundamenta a defesa da autonomia do Banco Central?

Maria de Lourdes Mollo: O que inspira os pedidos de a autonomia do Banco Central é uma teoria dominante na economia, segundo a qual a política monetária é incapaz de estimular o crescimento de forma duradoura. A política monetária só conseguiria administrar a inflação ou o nível geral de preços. Conseguiria, no máximo, empurrar um pouco o crescimento, mas não a longo prazo.

Essa tese supõe que a moeda é neutra, ou seja, que a moeda não afeta a capacidade produtiva. Os defensores da autonomia não creem que reter a quantidade de moedas, por exemplo, ou aumentar a taxa de juros (que diminui a quantidade de moedas), sejam medidas que afetem de forma danosa a produção real e o emprego.

Sob a visão neoliberal, o Banco Cental deve ser independente para que não sofra pressões do governo – que são vistas como pressões eleitoreiras, que querem estimular o emprego transitoriamente. Se for independente, portanto, poderá perseguir apenas o controle de preços.

Nem todos os economistas compartilham dessas ideias.

Os heterodoxos acreditam no contrário: a política monetária pode, sim, afetar a economia real. Uma política monetária muito estrita, portanto, pode provocar desemprego de forma duradoura, com custo social elevado. A pressão pela redução da quantidade de moedas ou pela elevação da taxa de juros, acreditam, criam muitos problemas sociais.

Para os heterodoxos, o Banco Central autônomo vai se dedicar apenas ao controle dos preços, e pouco ao crescimento econômico e ao combate ao desemprego. Dessa forma, a autonomia do Banco Central pode prejudicar toda a política econômica do governo voltada para o crescimento.

Tudo isso depende de premissas diferentes, entre a ortodoxia liberal, que pede a autonomia do Banco Central, e a heterodoxia.

 

CC: Qual o lugar do Estado nessa disputa?

MLM: Quando os governos são eleitos, têm determinados objetivos. Mas nenhum deles quer inflação. Nenhum governo, nem ortodoxo, nem heterodoxo, quer inflação. O que eles querem é poder estimular algumas coisas. Pode ser o emprego, o aumento da renda e o aumento da produção.

Se você dá autonomia ao Banco Central, o governo fica impedido de usar a política monetária conforme seus objetivos. O presidente da República pode ser liberal ou progressista, mas a operacionalização da política monetária dependerá do presidente do Banco Central, e ele não responde às propostas do governo.

Então, do ponto de vista político, a autonomia é absolutamente discutível, porque os governos não pensam da mesma maneira. Se um governo adota uma teoria que vê a política monetária como um instrumento para estimular o crescimento ou o emprego, ele não poderá usá-la para isso.

Nesse sentido, há uma observação verdadeira: a autonomia do Banco Central tira dos governos a possibilidade de utilizar um tipo de política, que é a política monetária, para os objetivos aos quais ele se propôs na eleição. Como há essa divergência teórica entre os economistas, os heterodoxos, que geralmente fundamentam a política dos governos mais progressistas, ficam numa camisa de força.

CC: As medidas apresentadas no projeto em tramitação são agressivas? 

MLM: São medidas que buscam tirar dos governos esse instrumento de política monetária. Mas a história já mostrou que isso não funciona sempre dessa maneira.

Por exemplo, o Banco Central mais independente do mundo, o banco alemão. Sempre que o presidente do Banco Central divergiu, a opinião do governo se impôs no final. Isso só mostra que a política monetária é importante, e de alguma maneira precisa ser operacionalizada pelo governo. 

Na verdade, o que está em jogo é o papel do Estado.

As teorias liberais não consideram o Estado, do ponto de vista econômico, importante. Acham desnecessário, porque o mercado tende a se regular melhor, e até nocivo, porque os governos são vistos com esse viés inflacionário. Essa é a razão básica.

Para a heterodoxia, o Estado deve interferir na economia e garantir crescimento, de emprego e de desenvolvimento. Nesse sentido, é importante ter instrumentos para a política econômica, em particular, a política monetária. 

A política que serve ao sistema financeiro e bancário nem sempre é a política que mais serve à população brasileira como um todo.

CC: A autonomia do Banco Central favoreceria o mercado financeiro?

MLM: Pode vir a acontecer. É uma outra coisa problemática. A política que serve ao sistema financeiro e bancário nem sempre é a política que melhor serve à população brasileira. Nem sempre os objetivos são os mesmos que o dos governos eleitos. Podem ser, mas podem não ser.

Numa democracia, a política do Banco Central precisa estar ligada aos governos eleitos. A independência do Banco Central tira esse instrumento do Estado. 

Nas visões heterodoxas, o Banco Central não é todo-poderoso, no sentido de conhecer tudo o que ocorre na economia, nem os detalhes do que vai acontecer ao longo do tempo. O Banco Central precisa, portanto, ter uma sintonia fina de saber onde e quando é necessário injetar dinheiro e créditos.

A autonomia, porém, quanto mais forte, mais regras fixas impõe, e isso impede essa operacionalização da própria política que foi traçada pelo governo eleito.

CC: Em relação ao exterior, o Brasil está seguindo uma tendência ou indo na contramão?

MLM: A visão de autonomia do Banco Central é dominante no mundo, porque as teorias que sustentam o pensamento neoliberal são dominantes. Mas, recentemente, mesmo teóricos neoliberais estão percebendo que é preciso do Estado para estimular a economia. Em momentos de crise, as regras estritas da política monetária e a autonomia do Banco Central dificultam a implementação de políticas anticíclicas. Nesse momento de pandemia, vencer essa crise pede instrumentos do governo, amplos e fortes, e a política monetária pode ajudar. 

CC: A autonomia pode piorar os prejuízos econômicos da pandemia?

MLM: Pedir a autonomia do Banco Central significa restringir um instrumento de política econômica que precisa estar nas mãos dos governos para atingir os objetivos que ele propôs. Retirar esse instrumento é retirar dos governos esse poder. É retirar do governo a capacidade de interferir no processo de desenvolvimento.

Então, com certeza, pode dificultar a saída da crise, porque vai impedir que o governo use a política monetária para movimentos que nos façam sair da crise.

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