Diversidade

O que o patriarcado nos ensina sobre as mentiras de Bolsonaro

Se a narrativa é fantasiosa, é compreensível que mentiras e manipulação sejam fundamentais para sua manutenção

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Nazismo de esquerda: O absurdo virou discurso oficial em Brasília”. Esta manchete de matéria publicada há pouco mais de uma semana pela Deutsche Welle e por CartaCapital condensou bem um significado do verbete surrealpolitik que, conforme propus em outros textos (aqui, aqui e aqui), é um jeito útil de sintetizar nosso lamentável cenário.

A matéria sobre as declarações estapafúrdias do chanceler Ernesto Araújo acerca da localização político-ideológica do nazismo foi publicada antes mesmo que o presidente Jair Bolsonaro contundentemente confirmasse o delírio, e situa a origem da vazia polêmica na produção de Olavo de Carvalho.

Quando publiquei o termo pela primeira vez, ainda em 2016, expliquei que se realpolitik é a palavra que conceitua o emprego de práticas políticas coercitivas, surrealpolitik seria um desdobramento adequado para a política institucional dos nossos tempos e pagos, já temperada na mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia, e sendo forjada pelo desligamento proposital com qualquer traço de realidade.

São de conhecimento público algumas das técnicas características desta fase do acirramento acelerado de um projeto transnacional de poder, que soa como fascismo e tem forma de patriarcado. Falo de coisas como análise de big data aplicada ao emprego das redes sociais para pulverização personalizada de fake news e firehosing, por exemplo. Soa sofisticado, e é mesmo, porém, os termos não deixam de ser uma “gourmetização” das boas e velhas mentira e manipulação de massas.

Agindo conforme o legado do gênio da propaganda nazista Joseph Goebbels, muitos dos corpos masculinos e brancos correntemente (e constantemente, e nunca não) ocupando os assentos mais valiosos da política institucional vêm manipulando opinião pública com a repetição de mentiras até que estas se tornem verdades. Esta é uma tática tão velha como parafrasear Nietzsche dizendo que tudo está sujeito a interpretação, e que a que prevalece resulta do poder e não da realidade.

Uma forma notória que o poder tem de manipular e mentir para impor verdades é a propaganda, este termo técnico da teoria da comunicação que nomeia o conjunto de dispositivos simbólicos que implantam ideais como discurso.

Leia também: As mentiras espalhadas por Bolsonaro que o próprio governo desmentiu

Política é disputa, o material da política é o simbólico, e na surrealpolitik estão em jogo sobretudo significados.

Ideologia de gênero, kit gay e mamadeira de piroca foram apenas três das muitas mentiras que fomentaram o sem-fim de fake news que sustentaram e ainda sustentam a surrealpolitik em que estamos metidos desde antes que qualquer ideal de democracia tenha sido triturado pela institucionalização, e por eleição, de sujeitos que se valem de mitologia patriarcal para estarem no poder. Terra plana, vacinas causando autismo, globalismo, a doutrinação marxista nas escolas – claramente um resultado do comunismo no Brasil, onde tampouco houve uma ditadura militar – aquecimento global ser invenção, ciência e opinião terem o mesmo valor: foram muitas as mentiras que precederam e moldaram nosso atual estado de coisas.

Bolsonaro parece ainda estar em campanha. Não assume a responsabilidade básica de um chefe de estado, que é governar para todo povo, e ao invés disso fomenta animosidade nas redes sociais entre brasis fabricados. Parece presidente de mentirinha, e mentir ele mente: levantamento do Aos Fatos demonstra que ele deu 132 declarações falsas ou distorcidas nos três primeiros meses de governo.

Não abraço a narrativa de que estamos passando vergonha internacionalmente, não por isso não ser verdade, nem porque não somos os únicos (Brexit is ever so embarrasing, after all), mas porque vergonha é o sentimento mais irrelevante que me atravessa nestes tempos em que a catástrofe anunciada é generalizada e veloz. Um salve, então, para nossa competência em fazer a narrativa ao menos soar tragicômica, como no 1º de abril, quando uma das trending topics do Twitter nacional era #BolsonaroDay.

Bolsonaro não mente, no entanto, sobre sua devoção ao mentor yankee, outro mentiroso e international embarrassment. O mesmo Donald Trump que, num passado não tão distante, exigiu publicamente um certificado de nascimento de Barack Obama, esta semana mentiu descaradamente ao dizer que o pai, cria do Bronx, nasceu na Alemanha.

Leia também: No Dia da Mentira, #BolsonaroDay é o assunto mais citado nas redes

Eles não são tontos. Podem ser psicopatas ou narcisistas, mas este diagnóstico deixo para especialistas. O que se pode ver, por estar patente como técnica, é a propaganda que empregam para desestabilizar consensos sobre a realidade. Este tipo de tática é comum às instituições patriarcais, precede a surrealpolitik, e nem sempre é lida como propaganda – mas minha hipótese é de que é assim que se dá a difusão de valores patriarcais.

A construção narrativa da bruxa, para dar apenas um exemplo, eclipsou a realidade destas serem mulheres independentes e detentoras de saberes medicinais e agrícolas com, digamos, fake news medievais sobre seres diabólicos operando forças ocultas. E é próprio do pensamento feminista tratar a heterossexualidade e a monogamia não como naturais nem essenciais, mas como criações culturais para a manutenção do poder dos homens, ambas como garantia da manutenção da propriedade pela garantia genética. (E aqui me sinto compelida a fazer uma ressalva: por serem construções culturais, é escorregadio discuti-las pelo viés do desejo, onde são tão válidas quanto outros arranjos de sexualidade consentida e organizações individuais de vida e afeto, mas isso abre outra conversa.)

A base da surrealpolitik, assim como a base do patriarcado, é fantasiosa. A sustentação de ambos não requer compromisso com a realidade. Pelo contrário: é absolutamente indispensável algum desligamento dela.

Mentiras e manipulação sobre quem vive realidades diferentes de qualquer que seja a narrativa de interesse do poder são excelentes modos de justificar sua aniquilação.

Se a narrativa é fantasiosa, é compreensível que mentiras e manipulação sejam fundamentais para sua manutenção. Existe uma lógica aí. É perversa, mas é uma lógica. Por exemplo, se a fantasia é que “lugar de mulher é no lar”, a mentira naturalizada é de que a culpa é dela se sofrer consequências de não estar no lar. Se a bruxa é maligna, fica justificado livrarmo-nos delas. Se o nazismo é de esquerda, tudo bem aniquilar esquerdistas.

O absurdo argumento de que nazismo é de esquerda é como a fantasiosa sugestão de que bruxas voam em vassouras: são proferidas como discurso oficial para efeitos de manipulação da realidade. É surrealismo, e como o surrealismo tende a ser, é fabricado.

Na surrealpolitik, tanto ou mais do que disputar verdades sobre sentidos, é importante compreender os jogos onde o sentido é a própria essência da disputa. Alguns jogos não se jogam. Mais vale revelar seus tabuleiros, identificar seus players e interceptar suas regras injustas. Por enquanto eles venceram. Mas o sinal não está fechado para abrirmos o jogo.

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