Cultura
Os gritos do Ipiranga
Após ameaças feitas por bolsonaristas e muito bate-boca no Twitter, João Doria, sem cargo e com um discurso de “paz e harmonia”, reinaugura o Museu Paulista


Em março, pouco antes de deixar o comando da Secretaria Especial de Cultura para candidatar-se a deputado estadual por São Paulo, o ex-ator Mário Frias avisou: João Doria, que, à época, também estava prestes a deixar o Palácio dos Bandeirantes, não poderia entregar a obra do Museu do Ipiranga, em São Paulo, sem a sua permissão. Passados seis meses, lá estava Doria, afastado da política institucional, mas não das disputas simbólicas, para discursar na reinauguração do mais antigo museu da cidade.
Frias e Bolsonaro não puderam ir por serem candidatos, mas seus emissários, sim. O ministro do Turismo, Carlos Brito, o secretário Especial da Cultura, Hélio Ferraz, e a presidente do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Larissa Peixoto, participaram do evento que, tamanha a tensão gerada, foi remarcado de 7 de setembro para o dia 6.
Duas semanas antes, Brito e Ferraz haviam feito uma visita ao museu, ainda cheio de maquinário e terra. Na ocasião, foram recebidos, sob um clima amigável, pela equipe responsável pela obra e por representantes da Universidade de São Paulo. Eles chegaram a tirar fotos, com a bandeira do Brasil a tiracolo, ao lado de alguns trabalhadores da obra. Esta semana, o clima foi, no entanto, outro.
HÁ TEMPOS, O EX-GOVERNADOR E BOLSONARO DISPUTAM A “PATERNIDADE” DA REFORMA
Embora o ex-governador tenha pregado, durante o evento, “paz e harmonia” – “Chega de briga e confusão”, chegou a afirmar –, o secretário de Cultura e Economia Criativa do Estado, Sérgio Sá Leitão, não se conteve. Ao citar, em sua fala, a vacina contra a Covid-19 e os esforços do governo paulista para disponibilizar o imunizante, Leitão irritou o ministro bolsonarista.
“Você falou de vacina, nem era o momento para isso, mas gostaria de dizer que nenhuma vacina chegou a nenhum município que não fosse através do governo federal”, disse Brito, para então agradecer a Deus e citar uma suposta deflação no País.
Nesse momento, os convidados, encolhidos por causa do frio e da chuva, descruzaram os braços e começaram a vaiá-lo, sob gritos de “mentiroso” e “chega”. Apesar do momento tenso, o incidente pode ser considerado mínimo diante das confusões que antecederam a entrega da obra.
A disputa entre o PSDB paulista e o governo federal em torno do Museu do Ipiranga tem origem em dois fatos: a obsessão do governo Bolsonaro por velhos e empoeirados símbolos nacionais e o uso da lei de incentivo federal para o projeto de reforma. Na visão crítica da história, princípio básico do projeto, nenhum governo podia intervir, porque a gestão do espaço está a cargo da USP. Sobraram, então, as armadilhas orçamentárias.
Duas semanas atrás, o ministro Carlos Brito e o secretário Hélio Ferraz fizeram uma vistoria nas obras e posaram com a bandeira do Brasil – Imagem: Roberto Castro/MTur
O projeto do Museu, desde o nascedouro planejado para as comemorações do bicentenário da Independência, foi orçado em 235 milhões de reais, entre recursos públicos e privados. A captação de recursos via Lei Federal de Incentivo à Cultura, no valor de 187 milhões, foi a maior da história. Entre os patrocinadores, estavam BNDES, Bradesco, CSN, Banco do Brasil e Itaú. Ao ter acesso a essa informação, o governo Bolsonaro passou a ameaçar o governo paulista. Quando Doria, um ano atrás, anunciou a conclusão de 70% da obra, Frias escreveu no Twitter: “Tenta inaugurar a obra sem a minha permissão. Irei aplicar a punição prevista, reprovando as contas da reforma, forçando a devolução de todo investimento”.
Dois meses antes, a Secretaria Especial de Cultura havia publicado um decreto que modificava o Programa Nacional de Incentivo à Cultura (Pronac), a incluir, entre outros mecanismos, a Lei Rouanet. O texto previa a inserção das marcas do governo federal, da Secretaria Especial de Cultura e do Ministério do Turismo em obras ou projetos financiados pela Lei Rouanet e exigia que qualquer inauguração fosse previamente autorizada pela secretaria. Assim foi feito. E o fato é que, diante dos 14 mil metros de área construída do novo Museu do Ipiranga, todos ficaram pequeninos.
O governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, do PSDB, deixou de ir ao desfile em homenagem ao bicentenário da Independência na Avenida Dom Pedro I para visitar o Museu do Ipiranga no dia 7, acompanhado de alunos e professores da rede pública e de trabalhadores que, nos últimos três anos, participaram da obra.
O museu pertence à USP, vinculada ao governo paulista, e a reforma foi custeada com dinheiro privado via incentivos fiscais previstos na Lei Rouanet, do governo federal. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os gritos do Ipiranga”
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.