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Mundo de imagens

A Mostra de São Paulo, além de uma tradicional vitrine de filmes, tornou-se o espaço em que ideias e projetos são gestados

Muitas mãos. Os longas-metragens brasileiros Pedágio e Sem Coração tiveram bem-sucedidos percursos internacionais antes de desembarcar por aqui – Imagem: LuxBox/ParisFilmes e Maya de Vicq
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Quem nasceu com a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo está hoje na meia-idade. O festival, criado por Leon Cakoff (1948-2011), em 1977, chega à 47ª edição abraçando, como uma grande família, avós, tios e tias, mães e pais e os bebês do cinema mundial.

O evento, que foi aberto na quarta-feira 18 e segue até o dia 1º de novembro, ocupando 17 espaços de São Paulo, reúne passado, presente e futuro, demonstrando como essas camadas do tempo não são sinônimos de ultrapassado, moderno e promissor.

A retrospectiva completa do italiano Michelangelo Antonioni, por exemplo, permite identificar a atualidade de uma obra do século XX. Já os exemplares do “slow cinema”, como Deriva (Anthony Chen), Ervas Secas (Nuri Bilge Ceylan) e Sonhando e Morrendo (Nelson Yeo), trazem em seu DNA modos de percepção que Antonioni injetou no cinema 80 anos atrás e ainda se mostram vitais.

Reencontrar autores, obras e conhecidos (nas filas) é um hábito que a Mostra renova a cada ano. Descobrir novos nomes, confirmar promessas e concordar ou discordar das premiações nos principais festivais é outro costume que o evento consolidou.

Como todos os grandes festivais, a Mostra tornou-se também espaço de estímulo para criadores, com discussões sobre o funcionamento do mercado de cinema, no III Encontro de Ideias, e servindo de vitrine para projetos que foram gestados em incubadoras de projetos e em outros eventos do gênero.

Sim, porque, se o lema glauberiano “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” teve algum sentido quando o cinema era feito em modo de guerrilha, hoje esse ideal deu lugar a formas mais efetivas de criação colaborativa.

O brasileiro Tia Virgínia é fruto do Brasil CineMundi, evento de coprodução promovido pela CineBH, de Minas Gerais. O segundo longa-metragem do diretor goiano Fabio Meira, depois do delicadíssimo As Duas Irenes, retoma o universo da família para sondar seus amores e rancores no reencontro de três irmãs vividas por Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso.

O BRLab é outra iniciativa cujos frutos alimentam o recorte da Mostra que se atenta ao novo. Nascido em 2011, o evento combina mercado e formação, permitindo viabilizar projetos e amadurecer ideias num laboratório criativo. Três títulos maturados em edições anteriores do BRLab serão exibidos na Mostra.

A conexão incerta entre corpo e espírito durante o despertar sexual de um menino está no centro de Almamula, estreia do argentino Juan Sebastián Torales. O realismo fantasmagórico dá as caras em O ­Estranho, filme da dupla Flora Dias e ­Juruna Mallon, no qual o arcaico emerge no presente de modo inquietante. A descoberta de um passado submerso perpassa as perambulações de um jovem que retorna às origens em Represa, de Diego Hoefel.

O Projeto Paradiso é outra iniciativa que, além de formação, amplifica propostas e resultados por meio de uma rede de parcerias nacionais e internacionais. Entre os títulos da Mostra que receberam apoio do Paradiso está o aguardado Estranho Caminho, do cearense Guto Parente, vencedor de quatro prêmios, incluindo o de Melhor Filme, no Tribeca Festival.

Também foram gestados no Paradiso e podem ser vistos na Mostra: Sem Coração, da dupla alagoana-pernambucana Nara Normande e Tião, que participou do Festival de Veneza, e O Dia Que Te Conheci, terceiro longa-metragem do mineiro André Novais Oliveira, vencedor do Prêmio do Júri no Festival do Rio.

Os festivais, hoje em dia, tendem a funcionar também como laboratórios para a criatividade

O conceito de incubadora não é, exatamente, uma novidade. Ele surgiu como estímulo à renovação, um aspecto que os festivais incorporaram para assegurar seu papel de identificar e promover talentos. O fundo Hubert Bals, um dos pioneiros, foi criado em 1988 pelo Festival de ­Roterdã. Na esteira vieram o Torino Film Lab, o Open Doors do Festival de ­Locarno, o Talents Lab do Festival de Berlim, o ­Tribeca All Access, e o Cinéma de ­Demain do Festival de Cannes, entre outros.

Pedágio, segundo longa-metragem de Carolina Markowicz, depois do impactante Carvão, foi desenvolvido em diferentes etapas em Torino, Berlim e Tribeca. Isso favorece não apenas a produção, mas também a circulação, pois os resultados são exibidos no circuito internacional de festivais e adquiridos por distribuidores para exibição em múltiplos mercados.

Além do passado e do futuro, a Mostra não deixa também de estar atenta ao presente. A seleção deste ano ecoa a sensação de perigo crescente nas fronteiras entre o humano e a natureza, entre as identidades ensimesmadas.

A relação inviável de Israel com os palestinos sobrecarrega de tensão cada plano do formidável Água Salgada, assim como o controle imposto pela teocracia iraniana torna criminosos mesmo os gestos inocentes dos personagens de Aquiles e de Parvin.

Embora a contaminação biológica pareça estar sob controle, os protagonistas do argentino Conversas Sobre o Ódio e do belga As Crianças Perdidas seguem trancafiados em casas-mausoléus, como se o temor do outro fosse a sequela mais persistente da pandemia.

O medo do envelhecimento, interpretado como perda e degradação, aparece na forma de fábula cruel no finlandês ­Palimpsesto; de cerimônia do adeus no chileno A Memória Infinita; de outra face do esquecimento no iraniano Aziz; de priapismo burlesco no peruano A Ereção de Toribio Bardelli.

Prefere a sabedoria de antigos autores em plena forma? Wim Wenders contempla as ruínas como quem aprendeu demais com os desastres no retrato de ­Anselm Kiefer em Anselm – O Barulho do Tempo. Aki Kaurismaki indaga por que nos debatemos tanto em busca de mais sofrimento no amargoso Folhas de Outono. E Victor Erice ressurge de um longo silêncio com Fechar os Olhos, filme que promete proporcionar os mais intensos orgasmos cinematográficos desta Mostra. •

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mundo de imagens’

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