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A chegada dos bilhões

Como resultado das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, os municípios adquirem papel central no apoio à cultura

Nova feição. O grupo Serenata d’Favela, de Vitória, abriu o evento que reuniu centenas de administradores municipais, 22 secretários estaduais e as ministras Margareth Menezes e Cármen Lúcia – Imagem: Erika Piskac e Filipe Araújo/Ministério da Cultura
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Anderson Nascimento, diretor-presidente da Fundação Municipal de Cultura, Esporte e Lazer Garibaldi Brasil, de Rio Branco (AC), só não perdeu a abertura do Encontro Nacional de Gestores de Cultura, na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), porque o evento começou atrasado.

Nascimento, um dos mais de 400 administradores municipais convidados para o encontro realizado na segunda-feira 14 e na terça-feira 15 em Vitória (ES), passou 27 horas em trânsito para estar no mesmo lugar onde estiveram também a ministra da Cultura, Margareth Menezes, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, e 22 secretários estaduais.

O presidente da Fundação que faz as vezes de Secretaria em Rio Branco assumiu o cargo não pela relação com a cultura, mas pela carreira política. Há 120 dias no posto, ele, que tem 30 anos, se diz fascinado pelas descobertas a respeito do potencial da área. “Hoje, vejo que a saída econômica para a nossa região passa pelo setor cultural”, diz, sem destoar em nada de muitas das falas do evento.

Até 2020, segundo Nascimento, o Fundo Nacional de Cultura local tinha um orçamento de 300 mil reais anuais. Este ano, afirma, o prefeito Tião ­Bocalom, de um partido de direita, o PP, aumentou os recursos para 2 milhões de reais. Além disso, o município receberá 4,2 milhões de reais da Lei Paulo Gustavo e outros 3,5 milhões da Lei Aldir Blanc.

A falta de segurança jurídica e de estrutura para a execução de orçamentos antes inimagináveis inquieta alguns dos gestores

Rio Branco espelha uma realidade que, a partir deste ano, tende a mudar as feições da gestão cultural no Brasil: a descentralização dos recursos e das tomadas de decisão. Esse processo é fruto de três leis gestadas durante a emergência pandêmica: Aldir Blanc 1 (2020), Paulo Gustavo (2022) e Aldir Blanc 2 (2022).

De acordo com o Ministério da Cultura (MinC), 5.465 municípios aderiram à Paulo Gustavo, que foi regulamentada em maio e já começou a liberar os investimentos de 3,8 bilhões de reais. Em 2020, 4.746 municípios haviam aderido à Lei Aldir Blanc 1, que mobilizou 3 bilhões de reais. A Aldir Blanc 2, por sua vez, prevê a destinação de 15 bilhões de reais aos estados e municípios entre 2023 e 2027.

Ao mesmo tempo que traz muitas possibilidades, tal volume de recursos, vultoso e impensável até pouco tempo, carrega consigo uma série de desafios e riscos. A falta de segurança jurídica para a execução orçamentária é um deles. Haverá de fato uma governança capaz de garantir o bom uso da verba pública nessa triangulação entre os três entes federativos?

Diversas cidades não possuem sequer um organograma para a área cultural. Muitas estruturas têm sido montadas com funcionários comissionados, não raro sem especificações técnicas para as áreas nas quais vão atuar. Já pipocam, aqui e ali, relatos de editais ou concursos lançados de forma pouco consistente. O uso político dos recursos é outra preocupação que, embora não tenha sido verbalizada no palco da Ufes, era ouvida no zunzunzum ao redor da mesa do café servido nos intervalos.

Aquilo que, em alguns discursos, foi chamado de “pauta municipalista” da cultura inclui a criação de um marco regulatório dos municípios para sua inserção no Sistema Nacional de Cultura. “Estão aqui representadas mais de 400 cidades, onde vivem 64% dos brasileiros, e 18 fóruns de cultura”, disse, em sua apresentação, Eliane Parreiras, presidente do Fórum Nacional de Secretários e Gestores de Cultura das Capitais e Municípios Associados.

“É por meio das cidades que a cultura se realiza de maneira mais próxima dos cidadãos. Mas, para que a lei seja executada, precisamos fortalecer as articulações em rede e criar metas”, afirmaria ela depois, em entrevista a CartaCapital. “Redes” é sua palavra de ordem.

Símbolos. O músico Aldir Blanc e o ator Paulo Gustavo, que dão nome às leis que terão disponibilizado mais de 20 bilhões de reais em sete anos, foram vítimas da Covid-19 – Imagem: Micael Hockerman e Redes sociais

Outras das palavras de ordem do evento podiam ser lidas, amontoadas, na camiseta de um gestor: samba, território, raí­zes, ancestralidade, identidade, direitos humanos. O Encontro Nacional de Gestores de Cultura teve, inclusive, ecos do que fora, 20 anos atrás, a posse dos secretários do primeiro Ministério da Cultura do governo Lula, comandando por Gilberto Gil.

Ao chegarem ao prédio da Ufes, os convidados foram recebidos pela Banda de Congo Panela de Barro de Goiabeiras, bairro de Vitória conhecido pela produção desse tipo de panela. E, antes do início das falas, houve a apresentação do grupo musical Instituto Serenata d’Favela, que atende 319 crianças e jovens moradores de diferentes morros de Vitória.

O maestro venezuelano Jesus ­Gavidia, responsável pela formação dos instrumentistas do conjunto, pegou o microfone para dizer: “A orquestra da favela é possível graças às leis de incentivo, que não existem em outros países da região”.

A Rouanet, a mais famosa delas, ficou, porém, pequena diante das leis de fomento direto que receberam os nomes de dois artistas mortos em decorrência da Covid-19.

Um exemplo da nova proporção entre o fomento indireto (aquele do incentivo fiscal) e o direto foi dado, recentemente, por Henilton Menezes, secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural do MinC.

Segundo ele, a Paraíba movimentou, entre 2018 e 2023, via Rouanet, 10,7 milhões de reais. Apenas pela Lei Paulo Gustavo, os 223 municípios do Estado receberão, este ano, 88,4 milhões de reais.

Levando-se em conta os tetos dos projetos e as próprias exigências previstas nos textos legais – relativas à acessibilidade e à inclusão, por exemplo –, os projetos beneficiados tendem a ser bastante diferentes daqueles viabilizados pela Lei Rouanet.

Parece haver também uma mudança no foco dos beneficiários, que deixam de ser as grandes instituições e produtores do eixo Rio-São Paulo, e passam a espelhar a pauta identitária. Na segunda mesa de debates do encontro, por exemplo, havia um indígena, um quilombola e um artista surdo.

Os beneficiários das leis deixam de ser as grandes instituições do eixo Rio-SP e passam a espelhar também as pautas identitárias

“Hoje, entendemos que, quando se fala em cultura, não basta pensar no acesso. O novo paradigma é a participação”, diz Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú, apoiadora do encontro. “É preciso garantir que as pessoas participem da produção cultural.” Cármen Lúcia, por sua vez, enfatizou a “dignidade cultural como um direito”, e Margareth Menezes, a “dimensão estruturante” da cultura.

Ouviu-se também, repetidamente, o enlace da palavra cultura à ideia de “desenvolvimento’. Mas não qualquer desenvolvimento, e sim aquele “inclusivo e sustentável”. Lembrou-se ainda ali que, a partir de 2030, a cultura passa a ser considerada, pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU), como um dos vetores para o desenvolvimento do País.

No Brasil, de acordo com o Observatório do Itaú Cultural, a cadeia produtiva da cultura envolve 7,5 milhões de pessoas e 130 mil empresas, correspondendo a 3,11% do PIB . Cabe lembrar que, embora não parecessem contempladas no encontro, atividades como games, design e software foram consideradas no cálculo desse PIB. •


*A jornalista viajou a convite da Fundação Itaú.

Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A chegada dos bilhões ‘

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