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O banco de dados Metamemo compila todos os ditos e desmentidos do clã Bolsonaro nas redes sociais

O ex-capitão titubeou na reação ao ataque de Jefferson contra agentes da Polícia Federal - Imagem: Clauber Cléber Caetano/PR e PF-RJ
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A animada recepção com direito a disparos de fuzil e lançamento de granadas proporcionada à Polícia Federal pelo bolsonarista e colecionador de armas Roberto Jefferson deixou por algumas horas a família Bolsonaro sem rumo nas redes sociais. Na manhã do domingo 23, quando diversos grupos bolsonaristas ainda propagavam a falsa narrativa de que o ex-presidente do PTB havia “somente reagido”, após policiais terem atirado contra sua casa, o vereador Carlos Bolsonaro postou suas habituais críticas ao STF e à ação “arbitrária” ordenada pelo ministro Alexandre de Moraes. Mas, com o desenrolar do episódio e o evidente desgaste trazido à campanha de seu pai, Carluxo mudou o tom e sentenciou: “Não se atira em polícia”. A senha para a mudança do filho Zero Dois foi dada pelo próprio Jair Bolsonaro, que ao longo do dia também hesitou sobre qual postura adotar, mas acabou optando por atirar Jefferson aos leões: “O tratamento a quem atira em policial é o de bandido. Presto minha solidariedade aos policiais feridos no episódio”, disse o ex-capitão.

Ajustado “na régua” pelo marketing político da campanha, o lacônico pronunciamento foi gravado em vídeo e postado pouco depois das 22 horas nas redes sociais. Até então, Bolsonaro mantinha uma posição dúbia em relação ao inesperado acontecimento, uma granada que lhe caiu no colo a uma semana das eleições, como prova outra mensagem, postada às 16h40, na qual condena a conduta do aliado ao mesmo tempo que reitera as críticas ao Supremo: “Repudio as falas do senhor Roberto Jefferson contra a ministra Cármen Lúcia e sua ação armada contra agentes da PF, bem como a existência de inquéritos sem nenhum respaldo na Constituição e sem a atuação do Ministério Público”. A hesitação de Bolsonaro também se fez notar com a escalação do ministro da Justiça para servir como mediador e “acompanhar o andamento deste lamentável episódio”, o que soou como um claro privilégio a Jefferson. Horas depois, Bolsonaro mudou a versão e passou a dizer nas redes que a presença de Anderson Torres ao lado do ex-deputado se deu somente para garantir a prisão. “Como combinei com o ministro da Justiça, Roberto Jefferson acaba de ser preso”, postou.

A plataforma foi montada a partir de servidores baseados fora do Brasil, uma forma de evitar interferências do governo

Acredita em Bolsonaro quem quiser, mas renegar Jefferson não é uma tarefa simples para o ex-capitão e seu clã. Pelo menos não no que depender do banco de dados Metamemo, ferramenta de busca e pesquisa criada para reunir todas as publicações de Jair e seus três filhos parlamentares nas seis redes sociais mais utilizadas no Brasil. Bastam alguns cliques para que salte aos olhos a boa relação que sempre uniu o ex-deputado à família presidencial. No ano passado, foram várias as postagens em defesa de Jefferson, que então ainda não era “bandido”, mas tratado como um herói antissistema: “Direitos humanos só servem para beneficiar verdadeiros bandidos. Quando quem precisa de um atendimento médico é um desafeto do sistema, daí a história muda. Roberto Jefferson, de 68 anos, deve ser atendido pelo seu médico, que já o conhece”, postou em 31 de agosto de 2021 o deputado federal Eduardo Bolsonaro, preocupado com a saúde do aliado, após a primeira prisão determinada por Moraes. O filho Zero Três é o mais assíduo nas 38 postagens em que o nome de Jefferson foi diretamente citado pela família nas redes desde 2014.

O namoro é antigo. Em 3 de abril de 2016, o ex-capitão revelou nas redes ter votado contra a cassação do colega pela Câmara dos Deputados: “A votação foi secreta, mas adiantei ao Jefferson como votaria em seu caso. Sem ele, o Mensalão não teria chegado ao nosso conhecimento, assim como o Petrolão. Há males que vêm para o bem”. De “amigo” a “bandido”, a narrativa dos Bolsonaro sobre ­Jefferson é uma das tantas contradições da família reveladas com o auxílio do Metamemo, instrumento montado a partir de servidores baseados fora do Brasil. Como também são revelados os ataques à democracia e a sistemática disseminação de notícias falsas pelas redes. Nestas últimas semanas de campanha, por exemplo, o foco recaiu sobre alguns temas ligados à pauta de costumes, com destaque para a falsa discussão sobre a instalação de banheiros unissex nas escolas públicas em caso de vitória de Lula.

Indiferente à fome no Brasil, Bolsonaro costumava chamar o Bolsa Família de “esmola“ e “farelo“. Agora, surfa no fictício “plano petista” de instalar banheiros unissex nas escolas públicas – Imagem: iStockphoto e Fábio Teixeira/Anadolu Agency/AFP

A questão foi mais uma vez levantada quando a oposição passou a tachar Bolsonaro de pedófilo, após ele ter admitido que “pintou um clima” com adolescentes venezuelanas em Brasília: “Só que isso não cola. São eles que defendem que criança toque em homem pelado em museu e aprenda sexo nas escolas, são eles que apoiam liberação do aborto até o sexto mês de gestação, são eles que têm o apoio do narcotráfico, foram eles que mataram cinegrafista num ato violento”, postou o ex-capitão em 16 de outubro. Usado pelos bolsonaristas como fetiche de tudo que consideram atentatório aos bons costumes, o termo “ideologia de gênero” aparece em pelo menos 206 postagens do clã desde 2014, segundo a base de dados do Metamemo. Ele pode ser encontrado nas publicações em associação a outros termos como “homossexualismo” (sic), “sexualização precoce”, “promiscuidade” e “pedofilia”. Eduardo Bolsonaro foi o que mais utilizou “ideologia de gênero” em ­suas redes (116 vezes), seguido por Carlos (37), Jair (33) e Flávio (20).

A mudança de narrativa bolsonarista chama atenção também no caso do auxílio emergencial: “O Bolsa Farelo vai manter essa turma no poder”, postou o ainda ­deputado Jair em 1º de abril de 2010, quando se consolidava a candidatura de Dilma Rousseff para a sucessão de Lula. Termos como “farelo” e “esmola” aparecem diversas vezes associados às 216 postagens sobre o Bolsa Família publicadas pelo clã. O “mito” é o campeão de postagens na fase de críticas ao programa social: “Kit-gay, Bolsa Família, auxílio-reclusão, bolsa-crack… o eleitorado do PT cresce e o trabalhador de verdade é taxado e tachado”, publicou em 24 de janeiro de 2014. Em 20 de março daquele ano, Carluxo postou seu orgulho por ter sido “o único vereador a votar contra a criação do Bolsa Família municipal” no Rio de Janeiro.

A defesa da cloroquina prevaleceu nas redes sociais da família durante a pandemia

O discurso mudou a partir da consolidação da candidatura de Bolsonaro à Presidência da República em 2017. “A crítica não é para o Bolsa Família, a crítica é para as fraudes, pois o programa se tornou eleitoreiro”, publicou Eduardo em 17 de março, sinalizando uma nova preocupação com a modulagem da narrativa bolsonarista sobre o auxílio. Curiosamente, o Metamemo revela que o ex-capitão se absteve de publicar ou replicar postagens sobre o tema durante dois anos, só voltando a fazê-lo em 9 de outubro, dois dias após o segundo turno em 2018: “O PT é o partido da demagogia! Manteremos o Bolsa Família e combateremos as fraudes para possibilitar o aumento para quem realmente precisa”. Foi a primeira vez que Bolsonaro se comprometeu publicamente a reforçar o programa.

Após a chegada ao Palácio do Planalto, a família adotou de forma gradativa um discurso comparativo entre o programa executado pelos governos do PT e as supostas melhorias trazidas por Bolsonaro. As postagens intensificaram-se com o início da campanha eleitoral de 2022. “Lula manteve os pobres na miséria, dava apenas 192 reais em média de Bolsa Família. Bolsonaro paga no mínimo 600 reais de Auxílio Brasil e ainda concede financiamento e qualificação para que consigam emprego de carteira assinada”, postou Flávio Bolsonaro em 29 de agosto. Em março, o novo tom era novamente dado pelo patriarca. “Graças ao maior programa assistencial que o mundo já viu, milhões de brasileiros não passaram fome (…). Em 2020, o valor disponibilizado foi equivalente a 15 anos de Bolsa Família”, postou o presidente.

O termo “Amazônia“ está presente em 522 publicações, quase sempre negando a devastação – Imagem: Bruno Kelly/Amazônia Real

Bolsonaro “esqueceu-se” de contar, no entanto, que naquele ano, no auge da pandemia, seu governo lutou para que o valor do auxílio emergencial fosse de apenas 200 reais, e não de 600, como foi aprovado pelo Congresso Nacional. “Figurões da esquerda, após sabotarem ações econômicas importantes, agora querem posar de líderes, cobrando agilidade do Executivo, como se o governo nada tivesse feito e eles tivessem que cobrar”, queixou-se Carluxo em postagem feita em 1º de abril de 2020. Em 30 de abril, foi a vez de Flávio comemorar a liberação da primeira parcela do auxílio com o valor que o clã na verdade não queria: “Mais de 46,2 milhões de brasileiros já tiveram a primeira parcela de 600 reais do Auxílio Emergencial creditada em suas contas, o que representa a liberação pelo governo federal de 32,8 bilhões. O total de contemplados supera as populações de países como o Canadá”.

No quesito propagação de notícias falsas, o alvo preferencial dos Bolsonaro nos últimos anos foram mesmo as eleições, em um esforço contínuo do clã para minar a confiança de seus seguidores no processo democrático. Somados, os termos “STF”, “urna eletrônica” e “fraude” aparecem em 829 publicações postadas desde novembro de 2011. “Sem voto impresso, urna eletrônica é fraudável com chip de memória infectado. Fabricante de urna eletrônica nos EUA faz demonstração de como é fácil manipular o resultado de uma urna eletrônica quando não há a impressão individual de cada voto”, escreveu Flávio em 18 de junho de 2021. Semanas depois, em 12 de julho, seu pai postou: “A fraude nasceu para todos os maus intencionados (sic). Quem tem medo de auditar as urnas?”

Os ataques à Justiça Eleitoral e às urnas eletrônicas somam quase mil publicações do clã Bolsonaro

Outro ícone das fake news bolsonaristas, o termo “cloroquina” aparece 283 vezes nas postagens da família desde março de 2020. Em 12 de dezembro daquele ano, Eduardo convocava, entusiasmado, seus seguidores para ouvir os ensinamentos da médica Nise Yamaguchi, que se notabilizou pela defesa de tratamentos ineficazes: “Com décadas de medicina e milhares de vidas salvas, ela deu uma verdadeira palestra sobre pandemia, tratamento precoce, cloroquina e muito mais”. Já em 7 de maio de 2021, em plena CPI da Covid, Jair disparou nas redes: “Resposta aos inquisidores da CPI sobre o tratamento precoce: 1 – Uns médicos receitam cloroquina; 2 – Outros a ivermectina; 3 – O terceiro grupo (o do Mandetta) manda o infectado ir para casa e só procurar um hospital quando sentir falta de ar (para ser intubado). Portanto, você é livre para escolher com seu médico qual a melhor maneira de se tratar. Escolha e, por favor, não encha o saco de quem optou por uma linha diferente da sua, tá ok?”

O pódio da desinformação promovida pelas redes sociais da família Bolsonaro é completado pelo termo “Amazônia”, presente em 522 postagens desde junho de 2015. O tom da imensa maioria das publicações mistura o negacionismo acerca de problemas concretos como o desmatamento e as queimadas com a “denúncia” da ingerência internacional na floresta. “Nenhum desses que nos atacam possui autoridade para fazê-lo. Se queriam uma linda floresta para chamar de sua, que tivessem preservado as de seu próprio país. A Amazônia é e sempre será dos brasileiros. Nossa soberania está acima de tudo e com a vida nós sempre a protegeremos”, disse em 25 de agosto o presidente que dobrou as emissões de CO² no céu amazônico em três anos de governo.

O filho Zero Três espalhou a cascata de que um chip poderia manipular o resultado das urnas – Imagem: André Borges/AFP

As redes da família serviram também como plataforma para ataques aos inimigos. O termo “Lula”, por exemplo, aparece em 2.788 postagens desde maio de 2011, nunca de forma elogiosa. Ainda assim, a abordagem contra o petista foi mudando ao longo dos anos: “Lula aplaude filósofa que diz odiar a classe média. (…) O sonho dessa gente é nivelar todos por baixo, com pires na mão pedindo esmola ao Estado”, postou o então deputado federal Jair Bolsonaro em 24 de abril de 2014, em referência à filósofa Marilena Chauí. Em 16 de março de 2016, quando Dilma tentou nomear Lula para a Casa Civil, Eduardo postou, dando o tom adotado dali em diante por todo o clã: “Lugar de ladrão é na cadeia, não em um ministério”. No auge da Lava Jato, após o então juiz Sergio Moro determinar a prisão de Lula, o tom passou a ser de escárnio: “Ontem tinha mais gente no treino do Corinthians que no ato para atrasar a prisão de Lula. Sem falar que na Arena não teve mortadela nem cerveja de graça”, publicou Flávio em 7 de abril de 2018.

As consultas ao Metamemo, no entanto, revelam que o deboche do clã presidencial aparentemente foi vencido pelo medo de uma vitória de Lula no próximo domingo. Isso tem se refletido nas últimas ­duas semanas na publicação sistemática de postagens acusatórias sem lastro na realidade: “Todos sabem que em áreas dominadas pelo tráfico só entra em paz quem é amigo dos bandidos. Ao afirmar que visitou uma comunidade controlada por uma das maiores facções sem nenhuma proteção, coisa que nem a polícia consegue, Lula mostra mais uma vez que é o candidato do crime”, postou o ex-capitão em 17 de outubro, em referência à visita do petista ao Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Quatro dias antes, após as primeiras pesquisas para o segundo turno confirmarem a vantagem de Lula, Flávio lançou um apelo um tanto desesperado nas redes: “Não caiam na lábia da serpente”, pediu, talvez já sentindo o sabor do veneno. O banco de dados pode ser acessado no endereço: http://metamemo.info/. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Utilidade pública”

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