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A luta das mulheres que perderam seus filhos no Massacre de Paraisópolis

Após quase quatro anos da ação que matou nove jovens, fórum inicia audiências que podem levar PMs a júri popular

Foto: Camila da Silva/CartaCapital
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“Viver isso é uma tortura”. A definição é de Maria Cristina Quirino, 43 anos, que há três anos e sete meses busca a resolução do Massacre de Paraisópolis. Uma das vítimas é o filho dela, Denys Henrique Quirino da Silva, de 16 anos. 

Nesta terça-feira 25, Quirino depôs na primeira audiência de instrução sobre o caso. Ao todo, o juiz Ricardo Augusto Ramos, do Fórum Criminal da Barra Funda, deve ouvir 25 testemunhas de acusação contra os policiais militares nos próximos meses. O dia também foi marcado por um ato contra o massacre.

Denys saiu na noite de 31 de novembro de 2019 para se divertir no tradicional baile funk da DZ7. Ele e outros oitos jovens foram mortos na Operação Pancadão da PM paulista, destinada a “prevenir ocorrências de conflitos e outras consequências negativas adversas”.

Entre 1h a 3h42 da madrugada de 1º de dezembro, os agentes iniciaram a patrulha para dispersar os jovens e logo começaram a lançar bombas de gás lacrimogêneo e a atirar. 

Cerca de 31 oficiais foram deslocados para a atuação. Os becos do local que possibilitaram a saída das pessoas foram bloqueados por barreiras físicas e por policiais que agrediram os frequentadores com bastões ou barras de ferro.

Com o cerco, a dinâmica de fuga ficou impossibilitada. Muitos foram baleados ou feridos e os nove jovens, conforme comprovou a necropsia, morreram por asfixiaUma das vítimas ainda morreu por traumatismo na coluna vertebral. Após aguardar 30 minutos pelo resgate, todos chegaram ao hospital sem vida.

Nos autos do processo, aos quais CartaCapital teve acesso, os relatos dão conta de que não era possível sequer se mexer, devido à quantidade de pessoas no local.  Na entrada de um dos becos, houve súplicas: “eu não estou respirando”, “me ajuda, tô morrendo” e “deixa eu passar, senhor”.

As respostas, de acordo com a versão das testemunhas, vinha aos gritos de PMs: “vai morrer todo mundo”, “vai morrer, vai conhecer o demônio mais cedo” e “vai embora, caralho”. 

Morreram na ação:

  • Marcos Paulo de Oliveira dos Santos (16 anos);
  • Denys Henrique Quirino da Silva (16);
  • Dennys Guilherme dos Santos Franco (16);
  • Gustavo Cris Xavier (14);
  • Gabriel Rogério de Moraes (20);
  • Mateus dos Santos Costa (23);
  • Bruno Gabriel dos Santos (22);
  • Eduardo da Silva (21);
  • Luara Victoria de Oliveira (18). 

As mães e familiares das vítimas do Massacre de Paraisópolis — Foto: Camila da Silva/CartaCapital


Do outro lado, a corporação indica que o uso da força só aconteceu diante de tiros disparados por dois rapazes que estavam em uma motocicleta.

Segundo o depoimento do PM João Paulo Vecchi Alves Batista na investigação policial, as equipes comandavam a operação para dispersar a movimentação do baile e para prestar apoio a uma ocorrência de “averiguação a um veículo Celta preto”, quando ocorreu o suposto ataque de motoqueiros.

Os dois teriam se dirigido ao baile e sido seguidos pelos oficiais, enquanto a troca de tiros continuava. Por isso, mais agentes teriam sido chamados para o reforço. 

Ao todo, segundo o relatório final de investigação, participaram da operação: 

  • a equipe do Comando da Força Patrulha;
  • duas equipes da Força Tática (preparadas para eventual ação de controle de distúrbios de multidão);
  • três equipes de ROCAM, que se destinavam à realização de patrulhamento nas principais vias do entorno da comunidade;
  • embora não participassem da Operação Pancadão, as viaturas da 1ª CIA destinavam-se também ao atendimento de ocorrências no território de Paraisópolis. 

Ao final do depoimento, o PM argumenta que as vítimas foram pisoteadas no meio do tumulto e que a equipe só reagiu, pois além dois tiros, foi atacada com garrafas e outros utensílios. Em relatório, a Corregedoria da PM também sustentou legítima defesa na ação dos policiais. 

Os esclarecimentos das investigações 

As versões sobre o episódio contestam os argumentos da PM. Câmeras de segurança nas ruas pelas quais os agentes passaram, por exemplo, não mostram troca de tiros com motoqueiros. Há outro ponto sem nó: entre a chegada da PM ao baile e o fim da operação, os rádios dos policiais ficaram em silêncio por 21 minutos, o que não é comum.

O filho de Cristina Quirino é um dos jovens que a corporação alegou serem vítimas de pisoteamento. No entanto, o motivo da morte no laudo médico é asfixia.

Em depoimento à polícia, uma das médicas que atenderam Denys no hospital afirmou não ter notado lesões corporais aparentes que justificassem a morte, apenas uma escoriação na fronte esquerda. Ela acrescentou que, devido à ausência dessas características, considerou estranha a hipótese de pisoteamento. 

“A polícia montou uma operação, sabia que a operação descumpria os protocolos e que poderia chegar a mortes, então ela assumiu o risco. Por isso, devem ser levados a júri por homicídio doloso”, argumenta Dimitri Sales, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, responsável pela Comissão Especial de Paraisópolis. A entidade acompanha o caso com as famílias, promove articulações e define ações prioritárias para a resolução na Justiça.

A ação judicial que tramita na 1ª Vara do Júri do Fórum Criminal da Barra Funda pode levar 13 PMs a júri popular  – outros 19 oficiais foram inocentados sob a justificativa de que não era possível individualizar as condutas. 

Os PM’s acusados por homicídio por dolo eventual são:

  • tenente Aline Ferreira Inácio;
  • subtenente Leandro Nonato;
  • sargento Joao Carlos Messias Miron 
  • cabo Paulo Roberto do Nascimento Severo; 
  • soldado Marcelo Viana de Andrade;
  • soldado Marcos Vinicius da Silva Costa; 
  • soldado Matheus Augusto Teixeira; 
  • soldado Gabriel Luís de Oliveira;  
  • soldado Luís Henrique dos Santos Quero; 
  • soldado Rodrigo Almeida Silva Lima; 
  • soldado José Joaquim Sampaio;  
  • soldado Anderson da Silva Gustavo.

José Roberto Pereira Pardim foi acusado de explosão por ter lançado bombas e responde por expor pessoas ao perigo. 

O primeiro passo para o julgamento foi dado nesta terça, com a audiência de instrução de nove testemunhas de acusação e uma testemunha comum. 

Foram ouvidas no Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães pessoas que estavam no baile, moradores e médicos que atenderam as vítimas. A expectativa é tomar o depoimento de 25 testemunhas de acusação nos próximos meses – a próxima oitiva está marcada apenas para 18 de dezembro.

“Claro que a gente gostaria que a justiça viesse mais rápido, principalmente por conta do anseio das famílias, mas tudo está andando de acordo”, aponta a defensora pública dos familiares das vítimas, Fernanda Balera

A projeção é que todas as testemunhas, de defesa e acusação, prestem depoimento em até dois anos, devido à complexidade do caso. Apenas depois de todos as oitivas é que o juiz deve determinar se os PM’s vão ou não a júri popular. À época, o governo de São Paulo chegou a pagar uma indenização às famílias — de valor não divulgado -, mas não há um apoio permanente.

Outras apurações sobre o caso tramitam em sigilo na Justiça Militar e na Secretaria de Segurança Pública.

“Um fato que tem gerado indignação é a Secretaria de Segurança Pública ainda não ter concluído os processos administrativos para apurar os desvios de conduta dos policiais, abuso de autoridade, lesão corporal e não cumprimento dos protocolos”, destaca Sales.

Procuradas, a Justiça Militar e a Secretaria de Segurança Pública ainda não responderam à reportagem.

Outro documento que reitera divergências entre a versão da PM e o relato das testemunhas é a análise conduzida pelo Centro de Arqueologia Forense da Unifesp em 2022, a pedido da Defensoria Pública. A série?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> publicada pela universidade remontou o cenário, a partir de fotos dos processos judiciais, laudos, depoimentos e imagens gravadas por câmeras de segurança e testemunhas. Representantes do estudo também devem ser ouvidos no Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães.

Mar de sangue e de lágrimas: A maternidade contra o genocídio

No ato que antecedeu a audiência de instrução, movimentos estudantis, organizações de direitos humanos e outros grupos de mães, como o Movimento Mães de Maio, marcaram presença.

Às vésperas da entrada no Fórum Criminal Ministro Mário Guimarães ou depois de discursos contra a impunidade, era visível o impacto sobre o corpo e a mente de cada uma: no tremor, no choro e na raiva.

“Não tenha medo”, reforçou Hilda Maria, das Mães de Maio, a Maria Cristina Quirino, antes da entrada no prédio para a audiência. 

Momentos antes da primeira audiência de instrução sobre Massacre de Paraisópolis — Foto: Camila da Silva/CartaCapital


“Com medo, mas estou continuando em frente, porque o que fizeram com meu filho é inaceitável”, desabafou Cristina a
CartaCapital. “É diferente de uma mãe que luta para tirar o filho do cárcere, das drogas. Antes eu sabia que meus filhos voltavam para casa, e hoje o meu Denys não volta. Quem deveria estar fazendo o papel que eu estou fazendo, de lutar pela justiça, é quem está defendendo quem matou meu filho.”

Cristina é mãe solo de quatro filhos e quase foi despejada após o assassinato de Denys. Sem condições para permanecer no antigo trabalho de vendedora, o foco virou a busca por justiça. Desde então, desempenha a função de pesquisadora no caso pela CONDEPE e no Movimento de familiares das vítimas do massacre em Paraisópolis. 

Ainda esteve presente a mãe de Lucas Lopes, de 23 anos, que veio de Sorocaba. O filho foi assassinado por policiais no mesmo ano do caso de Paraisópolis, também por ação contra bailes funk. 

É uma brutalidade você ter que lutar para provar que seu filho era inocente, não era criminoso. É uma brutalidade a gente vir hoje no Fórum, em uma audiência, para ficar de frente com os assassinos dos nossos filhos. A gente tem imagem, tem vídeo que mostra tudo que eles fizeram”, diz Cristina.  

Ao final, os representantes levantaram fumaça em preto e branco e leram um manifesto sobre o caso, que contou com mais de 100 assinaturas.

As mães e familiares das vítimas do Massacre de Paraisópolis em ato, antes da primeira audiência de instrução sobre o caso, iniciada três anos depois do ataque — Foto: Camila da Silva/CartaCapital

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