Observatório da Economia Contemporânea

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Uma proposta de política industrial para o Brasil

Inspirando-se na abordagem de Mariana Mazzucato, nossa proposta é que a política industrial brasileira seja orientada por ‘missões’

A ideia é colocar a tecnologia a serviço do bem-estar social
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Definimos “política industrial” como a adoção de instrumentos de intervenção governamental destinados a privilegiar atividades ou segmentos, inclusive fora do setor manufatureiro, com elevado potencial de criar e difundir progresso técnico, sustentar o avanço da produtividade, gerar empregos qualificados e promover o desenvolvimento econômico da nação e de suas distintas regiões.

Para ser bem-sucedida, a política industrial deve ser concebida de forma sistêmica e articulada com as demais políticas públicas. Almeja, portanto, o mesmo objetivo geral dos planos nacionais de desenvolvimento.

Vale, porém, uma advertência: a política industrial dificilmente mostrará resultados promissores se não for coordenada com a política macroeconômica, sobretudo se esta se guiar por instrumentos recorrentes que mantêm as taxas de juros reais elevadas e a moeda sobrevalorizada por longos períodos de tempo.

Diagnóstico do caso brasileiro

Após registrar acelerado crescimento econômico e incremento da produtividade do trabalho entre 1950 e 1980, o Brasil amarga mais de quatro décadas de estagnação.

Entre 1981 e 2020, o crescimento do PIB, de apenas 2% a.a., foi inferior à taxa de crescimento mundial, de 2,7% a.a. A estagnação é confirmada pelo aumento médio anual quase nulo da produtividade do trabalho no período.

O Brasil não tem mais tempo a perder para recuperar sua capacidade de crescer e melhorar o padrão de vida de sua população

O debate econômico aponta diversas causas da estagnação, mas o principal fator estrutural é a vertiginosa desindustrialização prematura do Brasil nas últimas décadas, em que a perda de musculatura relativa do setor industrial se iniciou antes que o país tivesse alcançado nível de renda per capita avançado.

A participação do setor manufatureiro no PIB, que havia atingido o ápice de 21,4% em 1976, foi tendencialmente cadente após então, recuando para apenas 11,9% em 2020. O baixo dinamismo industrial ajuda a explicar o excepcional avanço de produtos primários nas exportações totais, de 17,6% para 45,1% entre 1990 e 2020, e a ampliação da dependência externa de produtos manufaturados, que, em 2020, já atingia 91,8% do total importado.

A Covid-19 realçou dois problemas sociais crônicos que as décadas de industrialização não conseguiram solucionar e a desindustrialização acentuou: a elevada informalidade do trabalho; e a acentuada desigualdade social e regional.

Segundo as Contas Nacionais, o trabalho informal representava quase metade (49,1%) do emprego total em 2018. E o grau de desigualdade social, medido pelo coeficiente de Gini, depois de ter atingido o ápice de 0,63 em 1989, reduziu-se para 0,49 em 2020 – ainda assim, considerado elevado – graças à retomada dos programas de transferência de renda após a pandemia.

A desigualdade se manifesta também no campo regional: embora abriguem 36% da população brasileira, as regiões Norte e Nordeste geravam, em 2018, uma renda per capita bem menor (US$9.174) do que a média do país (US$15.513, ambos em dólares PPP). Além da desigualdade de renda, há profundas desigualdades territoriais em termos de infraestrutura física, científica e tecnológica, escolaridade, saneamento e distribuição de atividades mais sofisticadas.

O diagnóstico dos principais problemas econômicos e sociais brasileiros deve ser complementado com duas tendências em curso da economia mundial: nova revolução industrial, capitaneada pela difusão de tecnologias digitais, como inteligência artificial, robótica, internet das coisas, big data, dentre outras; e emergência da chamada economia verde, em que os processos produtivos serão marcados pela substituição paulatina de tecnologias com alta emissão de dióxido de carbono (CO2) por tecnologias de baixa emissão.

Integrando objetivos econômicos, sociais e ambientais

Cabe reconhecer que estratégias puramente guiadas pelo livre mercado (laissez-faire) ou destinadas a corrigir falhas de mercado não são capazes de recolocar países que se encontram estagnados há várias décadas, como o Brasil, em trajetórias sustentáveis de desenvolvimento.

O desenvolvimento econômico requer acumulação de capital e progresso tecnológico para gerar crescimento e empregos de média e alta qualificação. Mas ambos dependem da efetivação de investimentos em capital físico, humano e em inovações tecnológicas, cujo retorno privado futuro é altamente incerto.

Os investimentos privados em inovações, particularmente, podem ser insuficientes para sustentar o desenvolvimento, porque, devido à concorrência com imitadores rivais, os inovadores não têm garantia de que conseguirão se apropriar totalmente do retorno dos investimentos pregressos em tecnologia e inovação. Essa é a principal justificativa para políticas públicas de estímulo à inovação tecnológica.

Inspirando-se na abordagem da renomada professora Mariana Mazzucato, nossa proposta é que a política industrial brasileira seja orientada por “missões” (“mission-oriented industrial policy”), em que o governo estabelece planos de desenvolvimento de longo prazo contendo metas, contrapartidas e instrumentos capazes de catalisar os investimentos e as inovações e engajar atores públicos e privados, a fim de alcançar objetivos econômicos, sociais e ambientais.

Com base nos argumentos teóricos e no diagnóstico do caso brasileiro, a política industrial deveria contemplar as seguintes missões:

1) reindustrialização;

2) promoção da inovação e criação de vantagens comparativas dinâmicas;

3) geração de empregos qualificados e formalização do trabalho;

4) redução das desigualdades sociais e regionais;

5) modernização produtiva via incorporação de tecnologias digitais;

6) substituição de tecnologias poluidoras por tecnologias mais sustentáveis e de baixa emissão de CO2.

Uma das missões prioritárias é reindustrializar a economia brasileira. É lícito perguntar: por que reindustrializar? A desindustrialização não é fenômeno que atinge todos os países. Pesquisas recentes passaram a avaliar a desindustrialização com base no desempenho do setor manufatureiro em nível subsetorial.

Os resultados mostram que não há evidências de desindustrialização, nem mesmo prematura, nos países em desenvolvimento que não se encontram estagnados, como China, Índia e outros asiáticos. Essas pesquisas registram que, embora tenha havido encolhimento relativo dos subsetores industriais intensivos em trabalho e em recursos naturais, o mesmo não aconteceu com os subsetores baseados em engenharia, ciência e conhecimento, como os de bens de capital, equipamentos de transporte, farmacêutica e a indústria de informática e computadores.

Faz sentido. Afinal, não obstante a ampliação dos segmentos de serviços high-tech na estrutura produtiva e exportadora mundial, as evidências não apontam uma “servicificação” radical das atividades produtivas. É apropriado pensar que a indústria de transformação, cada vez mais integrada com os serviços high tech, continuará operando como fonte principal de inovação e geração de progresso técnico, e, portanto, como motor do desenvolvimento.

Logo, a missão principal da política industrial é consistente com o objetivo tradicional de promover a inovação e o progresso técnico. Além disso, a estratégia de reindustrialização consiste não apenas em reestruturar o velho tecido industrial brasileiro (ou seja, fazer o upgrade tecnológico), mas também em aproveitar as janelas de oportunidade oferecidas para promover o avanço tecnológico da manufatura e do ecossistema de serviços a ela integrada (ou seja, fazer o salto tecnológico).

Cabe notar que as missões sugeridas possuem caráter abrangente, de modo que, integradas, podem proporcionar externalidades positivas para o sistema econômico como um todo. Por limitações de espaço, não é possível detalhar prioridades e instrumentos que deverão ser mobilizados para alcançar as missões sugeridas.

Pode-se apresentar, no entanto, um exemplo em que o Estado estimula as empresas a se engajarem em atividades que possibilitem a utilização de tecnologias verdes. Considerando que a base tecnológica mundial é ainda intensiva em CO2 e as condições iniciais são similares para empresas de países desenvolvidos e em desenvolvimento, abrem-se enormes janelas de oportunidade para as empresas brasileiras investirem em projetos que utilizem tecnologias verdes.

Assim, por exemplo, incentivos para gerar energia eólica e solar na região Nordeste podem atender, simultaneamente, às missões de promoção da inovação, fomento do emprego, redução das desigualdades sociais e regionais e incorporação de tecnologias com baixa emissão de CO2.

Uma vez que poupam trabalho, as tecnologias digitais podem coibir a geração de empregos, ao menos a médio prazo. No longo prazo, porém, esse processo de “destruição criativa” ensejará o aparecimento de novas atividades. Por isso, é essencial que o Estado coordene, junto ao setor privado, as políticas de incentivo à inovação digital, assegurando também a manutenção de investimentos em educação, treinamento e qualificação da mão de obra.

Embora a política industrial proposta contemple seis missões, isso não significa que não se deva pautar por critérios de prioridade e seletividade. Assim, não se pode dizer que nossa proposta seja excessiva; é o Brasil que, após mais de quatro décadas de estagnação, acumulou mais desafios a serem enfrentados. E o país não tem mais tempo a perder para recuperar sua capacidade de crescer e melhorar o padrão de vida de sua população.

Artigo baseado no “paper” “Industrial policy for prematurely deindustrialized economies after the Covid-19 pandemic crisis: Integrating economic, social and environmental goals with policy proposals for Brazil”.

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