Observatório da Economia Contemporânea

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Missões de política industrial nos limites da reindustrialização possível

Em um cenário em que a produção global se organiza em redes, até a tradicional complementaridade do setor produtivo brasileiro ao capital internacional se modifica

Foto: EBC
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Como em todo início de governo, as últimas semanas têm sido pródigas em disputas em torno da composição de alianças e da acomodação de divergências entre os integrantes da chamada frente ampla que buscou refrear a escalada rumo à autocracia bolsonarista.

Para além da retórica e do discurso econômico, tais disputas também eclodiram de maneira intensa no núcleo do empresariado industrial brasileiro, personificado na Fiesp. A destituição do presidente Josué Gomes – cujo pai foi vice-presidente da República durante os oito anos do Governo Lula – é o estopim de um processo de disputas em torno do alinhamento político da instituição, como denotam as críticas internas à assinatura do presidente no manifesto pela democracia em meados de 2022.

Para além destes fatores, também se abre espaço para interpretar tal levante como a sinalização de um descontentamento latente da elite industrial paulista com uma suposta proximidade excessiva de seu presidente a um governo que tenha orientações políticas e de estratégia de desenvolvimento distintas daquelas defendidas pela maioria dos industriais paulistas. Nesse episódio nem mesmo o apoio de Lula, Alckmin e Michel Temer foi capaz de dar sustentabilidade a Josué Gomes.

Sintomas iniciais desse descontentamento já haviam aparecido recentemente na imensa dificuldade de se atrair para o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio um nome de peso entre os grandes empresários nacionais. Some-se a esse fato, ainda durante o processo eleitoral, a dificuldade da candidatura Lula de angariar apoios entre as lideranças industriais.

Para além da disputa política conjuntural e do alinhamento ainda que velado de parcela da elite econômica ao bolsonarismo, o levante na Fiesp parece enfim desnudar as consequências políticas de uma mudança estrutural na dinâmica industrial brasileira. Após décadas de desindustrialização, os grandes empresários brasileiros reorganizaram as estratégias concorrenciais e de acumulação de suas empresas. Essa reorganização deu origem a um fenômeno que denomino em diversos artigos acadêmicos de Doença Brasileira.

Em um cenário de desindustrialização marcado pela Doença Brasileira, tem-se observado nas últimas duas décadas o surgimento de estratégias que garantem a rentabilidade do capital alocado na esfera industrial com um grau de desvinculação crescente do desempenho estritamente produtivo. Essas opções seriam baseadas numa lógica concorrencial orientada a uma reação defensiva e regressiva, com busca permanente pela redução de custos – trabalhistas e tributários por exemplo – desvinculada do incremento do investimento, da produtividade e da inovação.

Tais estratégias seriam potencializadas por uma nova forma de associação ao capital internacional, por meio da qual as empresas industriais locais acrescentariam a seu portfólio a realização de serviços complementares às multinacionais, como representação comercial local e até financeira. Também fazem parte desta lógica de  associação via importação e tropicalização de peças, componentes e até de produtos finais para revenda no mercado local com vistas a terem benefícios tributários e cumprirem requisitos de conteúdo nacional.

Ou seja, em um cenário em que a produção global se organiza em redes, até a tradicional complementaridade do setor produtivo brasileiro ao capital internacional se modifica. Agora, ao se inserir em elos destas redes a partir de uma lógica financeira e baseada em uma espécie de maquila introvertida (com aumento do coeficiente importado e simplificação do conteúdo doméstico para venda no mercado interno), a indústria local prescinde crescentemente da dimensão produtiva.

É exatamente neste contexto que a pergunta retórica do título deste artigo se coloca. Dados os traços definidores da ideologia econômica dominante entre o empresário industrial brasileiro e as atuais características da dinâmica de acumulação das grandes empresas industriais, quais são as possibilidades para se construir uma coalizão industrialista? Em outros termos, seria necessária uma estratégia de reindustrialização para garantir a rentabilidade do capital industrial brasileiro dada sua atual lógica de concorrência e acumulação?

Trabalhos acadêmicos clássicos sobre política industrial como os de Chalmers Johnson e Ha-Joon Chang já nos mostraram a importância da economia política para a construção de uma coalizão de sustentação de um objetivo amplo de desenvolvimento nacional a partir da transformação da estrutura produtiva. Peter Evans, de maneira complementar, salientou a condição essencial para o sucesso de qualquer estratégia dessa natureza: a capacidade de autonomia da burocracia pública ao formular tal estratégia e, ao mesmo tempo, o grau de inserção/aceitação (embeddedness no original) das políticas formuladas entre a sociedade local (inclusive entre sua elite empresarial).

No atual contexto brasileiro, como o levante na Fiesp nos mostra, tais condições parecem estar longe das ideais. Tal fato dificulta sobremaneira a formação de uma coalizão que sustente, nos termos do saudoso Prof. Fábio Erber, uma convenção de desenvolvimento cujo eixo central seja a reindustrialização. Isso porque as tradicionais políticas industriais parecem ser cada vez menos funcionais à lógica de acumulação do capital industrial nacional dado o cenário de Doença Brasileira.

Alguns, entretanto, poderiam advertir de maneira correta que historicamente, no auge do período industrializante do segundo governo Vargas, essas contradições também se colocavam, como sugere o clássico debate entre o influente presidente da Fiesp Roberto Simonsen e Eugênio Gudin.

Apesar do justo paralelo, as situações parecem assimétricas, dada a menor capacidade atual do Estado de induzir o desenvolvimento devido à drástica redução de seu setor produtivo, à menor capacidade de influência sobre instrumentos tradicionais de política industrial em face das restrições dos organismos multilaterais, à menor margem de autonomia no manejo de preços macroeconômicos chaves como juros e câmbio, entre ouras restrições.

Assim, levar em consideração tais limitações (a economia política da política industrial e a lógica de concorrência e de acumulação da grande indústria brasileira) é um fator que, a meu juízo, deve ser central a qualquer proposta de política industrial brasileira. Dadas tais restrições, me parece que uma política industrial deva se concentrar em um conjunto muito bem definido e coeso de objetivos que sejam capazes de contornar as restrições dadas pela inexistência de uma convenção industrializante. Assim, sugerem-se missões que se sustentam no tripé:

  • legitimidade política nos diversos estratos da sociedade (o que inclui a elite empresarial);
  • viabilidade/exequibilidade no médio prazo, com resultados iniciais já sentidos em um ciclo político de quatro anos;
  • e aderência a uma visão moderna de política industrial, que tenha como objetivo fomentar a construção de uma economia orientada ao desenvolvimento tecnológico, ao aprendizado inovativo e à sustentabilidade.

Como combinação destes elementos, três missões parecem ser aquelas que atualmente poderiam nortear a estratégia de política industrial do governo que se inicia:

(1) aumento da produtividade industrial brasileira acima do ritmo de crescimento do PIB per capita;

(2) avanço substancial no desenvolvimento de todo um sistema de serviços públicos inteligentes (com ênfase em saúde, educação, mobilidade e segurança) e soluções destinadas ao agronegócio, ambos habilitados por tecnologias da Indústria 4.0.

(3) e fomento de maneira ubíqua às atividades econômicas e tecnologias voltadas à descarbonização.

A primeira missão teria um caráter mais horizontal e, portanto, com elevado potencial de sustentabilidade política. Como eixos norteadores das ações sugere-se a zeragem do IPI para máquinas e equipamentos produzidos no Brasil, bem como a redução proporcional da mesma alíquota incidente nos bens importados. Tais medidas reduziriam os custos de maneira isonômica de produtos nacionais e importados, contribuiria para aumentar a rentabilidade e o incentivo ao investimento, com impactos no aumento da produtividade dada a renovação dos bens de capital utilizados pela indústria local. Em termos de custos, as renúncias correspondentes à zeragem das alíquotas de IPI e IPI importação para os setores de máquinas e equipamentos elétricos (divisão CNAE 27) e máquinas e equipamentos (CNAE 28) somariam pouco menos de 4 bilhões de reais (tendo-se como referência o último ano com dados disponíveis – 2020).

Adicionalmente, sugere-se um conjunto de medidas para reduzir a heterogeneidade dos níveis de produtividade entre grandes empresas e pequenas e médias, que são as maiores empregadoras na indústria manufatureira e o elo mais frágil assolado pela desindustrialização. Para tal, iniciativas consagradas internacionalmente são aquelas voltadas a políticas de extensionismo produtivo.

Um exemplo interessante é o programa de extensionismo norte americano denominado Manufacturing Extension Partnership, criado nos anos 1980. Segundo avaliações empíricas, para cada 1.570 dólares de investimento Federal, é criado ou mantido um emprego manufatureiro (uma das maiores taxas de retorno entre os programas federais dos EUA).

Iniciativa similar no caso brasileiro recente foi o programa Brasil mais produtivo, direcionado principalmente a implementar técnicas de engenharia de produção em pequenas e médias empresas localizadas em arranjos produtivos locais espalhados por nosso território. Sob coordenação do MDIC, com participação de ABDI, SENAI, ApexBrasil, Sebrae e BNDES e tendo como alvo principalmente empresas em setores intensivos em mão de obra, o programa foi capaz de aumentar a produtividade em 52% nas linhas de produção das empresas atendidas, a um custo médio unitário extremamente baixo (15 mil reais). Tal qual observa-se em países como Japão e EUA, sugere-se o estabelecimento permanente de iniciativas como essa em escala capaz de atender um volume significativo da estrutura produtiva local.

Dada a dificuldade de acesso a condições adequadas de financiamento, sugere-se que o programa seja combinado com instrumentos que permitam a oferta de crédito voltados à aquisição de máquinas e equipamentos para que as empresas possam implementar as sugestões de melhorias nos processos produtivos. Esses poderiam ser operacionalizados em conjunto pela Caixa a partir de fundos do BNDES, o que contribuiria para aumentar a legitimidade política de sua atuação perante a sociedade a partir do incremento de fundos destinados a pequenas e médias empresas.

A segunda missão teria como instrumento o poder de coordenação e compras públicas para fomentar todo um ecossistema de agentes (empresas privadas, instituições de pesquisa, organizações públicas, start-ups, ONGs) capazes de desenvolver e prover soluções habilitadas pelas tecnologias da Indústria 4.0 para o provimento de serviços públicos inteligentes – porém não exclusivamente destinados ao setor estatal – bem como para o estímulo a soluções tecnológicas orientadas ao agronegócio.

Além do estabelecimento de compras públicas por meio de programas/chamadas coordenadas pelos respectivos ministérios e instituições de pesquisas públicas como a Fiocruz, um outro eixo de política industrial sugerido é o estabelecimento de um programa específico no BNDES com o intuito de financiar as empresas nesses projetos. Esse programa poderia se inspirar no bem-sucedido Prosoft/BNDES e teria como objetivo financiar todas as etapas do processo de desenvolvimento de tecnologia, comercialização, implementação etc. Também se sugere fortemente que um braço deste programa destine recursos em volume razoável ao financiamento de uma miríade de startups na área, bem como sua consolidação futura e internacionalização.

Em paralelo ao fomento financeiro às startups, a alocação de recursos na Embrapii em montantes condizentes com os desafios apresentados seria um elemento complementar para o fomento ao aprendizado inovativo nas empresas das referidas atividades.

Por fim, é vital para o sucesso de longo prazo das políticas dessa segunda missão o crescimento exponencial dos recursos humanos com capacitação em áreas centrais à habilitação de serviços inteligentes como cloud computing, big data e inteligência artificial. Para tal, sugere-se como meta em quatro anos a duplicação do total de ingressantes no ensino superior público em graduações como ciência da computação e áreas correlatas. Em 2021, o número de concluintes em tais cursos em instituições federais foi de 4.814, ou 3,7% do total de concluintes nas referidas instituições.

Dada a magnitude do desafio colocado, sugere-se ainda o direcionamento de 20% dos novos contratos do FIES e do PROUNI para tais áreas (estas áreas totalizaram apenas 7.707 bolsas concedidas pelo PROUNI em 2020, ou 4,6% do total, enquanto os cursos de Administração, Gestão em suas diversas modalidades e Direito totalizaram 41.200 bolsas).

Para a terceira missão, inicialmente sugere-se a replicação da iniciativa proposta de criação de um programa especial no BNDES, tal qual descrito nos parágrafos anteriores, com vistas a apoiar ao mesmo tempo o desenvolvimento de tecnologias, empresas e projetos que tenham como objetivo acelerar a transição energética e a descarbonização. Adicionalmente, sugere-se que a nova versão do programa Minha Casa, Minha Vida tenha como exigência em todos seus projetos a geração de energia solar fotovoltaica.

De maneira similar ao proposto na missão 1, o desenvolvimento de tecnologias com vistas à transição energética e à descarbonização deve se beneficiar de reduções tributárias para a produção local e para a importação de máquinas e equipamentos que componham os mais diversos projetos da área, como painéis solares fotovoltaicos, baterias, inversores, aerogeradores, naceles, turbinas etc.

Adicionalmente, dada sua relevância na matriz produtiva e energética nacional, caberia um papel importante à Petrobras como mais um agente em tais iniciativas. Essa participação seria coerente com a sustentabilidade da rentabilidade da empresa no médio prazo e seria semelhante à estratégia de grandes petroleiras internacionais, as quais tem aumentado seus investimentos em tecnologias orientadas à descarbonização.

Esses incentivos deveriam ser complementados com o restabelecimento de leilões para fontes alternativas de energia elétrica, tal qual no período de vigência do Proinfa. Sugere-se ainda que carros elétricos até 150 mil reais tenham o mesmo tratamento tributário atribuído a automóveis de até mil cilindradas, com vistas a acelerar a transição e que o BNDES financie, no âmbito do programa proposto, a aquisição de ônibus movidos por fontes energéticas alternativas destinados ao transporte público municipal.

Antes de concluir, vale destacar que as atividades associadas às duas últimas missões estão em estágio incipiente de desenvolvimento no território local e, assim, não apresentam bases tributárias da mesma magnitude que setores e regiões (como a ZFM) tradicionalmente incentivados como automobilística, petroquímica, eletrônica e até mesmo o agronegócio. Deste modo, as renúncias tributárias sugeridas não seriam incompatíveis com a busca pela estabilidade fiscal por parte do governo federal.

Além dos objetivos já descritos, espera-se que essa proposta de política industrial contribua no médio prazo para pavimentar a construção de uma nova convenção de desenvolvimento industrializante entre as diversas esferas da sociedade (inclusive entre a elite empresarial industrial).

Em síntese, uma convenção que aprenda com os erros – e também com os acertos – do passado, na qual a estratégia de industrialização seja permeada pela sustentabilidade social e ambiental e cuja busca pelo aumento da competitividade seja alicerçada no aumento da produtividade, do P&D, na busca constante pelo aprendizado inovativo e na internacionalização.

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