O Mundo É uma Bola
A visão de Luiz Gonzaga Belluzzo sobre esporte e sociedade
O Mundo É uma Bola
O futebol desperta as agruras da vida
Caminhamos, em nossos arroubos de carbonários, entre o delírio das conquistas inesquecíveis e a mais abominável depressão dos fracassos definitivos


A polêmica desatada após a derrota do Palmeiras diante do Chelsea mobilizou minha alma palestrina. Lançada pelas redes antissociais, a polêmica despertou o desejo de considerar episódios de nossa história. Para iniciar a caminhada, vou recorrer às palavras do mestre Ademir da Guia.
Nas comemorações do título brasileiro de 2022, Ademir concedeu uma entrevista de refinada sabedoria. Como faria em campo, o Divino driblou o zagueiro adversário com o corpo e colocou gentilmente a bola nas redes, como quem pousa um beijo no rosto da amada:
“Eu enxergo no Palmeiras atual a arte da Primeira Academia com a solidez da Segunda, jogamos para a frente, mas sem nos descuidarmos da retaguarda. Nossa força é o grupo num mundo onde o individualismo vem ditando as regras em diferentes setores da sociedade. O Palmeiras dá mais uma aula. Ensinamos desta vez sobre a importância da união. Mostramos que os objetivos coletivos estão acima dos objetivos individuais. Provamos que, quando o ego fica em segundo plano, o céu é o limite”.
O ósculo Divino na face do espírito coletivo sugere considerações a respeito do individualismo agressivo que repontou nas sociedades contemporâneas.
A polêmica deflagrada pela derrota suscitou aa lembrança das digressões de Elisabeth Roudinesco no Dicionário Amoroso da Psicanálise. Exímia em percorrer os caminhos perigosos da filosofia e da psicanálise, Roudinesco ausculta, na aurora do século XXI, rumores cochichados nos bastidores da sociedade contemporânea. Diz ela que estamos sempre nos indagando o que preferimos: as figuras mais puras, as maiores, as mais medíocres, os maiores charlatães, as mais criminosas? Classificar, ranquear, calcular, medir, colocar um preço, homogeneizar, este é o nada absoluto das investigações contemporâneas.
Certa vez, proclamei que o Palmeiras-Palestra não era um clube de futebol, mas uma ideia. Uma ideia que buscava construir a identidade coletiva dos imigrantes italianos. Nos anos 80 do século XIX, a Itália recém-reunificada e maltratada por uma crise econômica devastadora era apenas uma abstração política e geográfica. Era uma Itália à espera dos italianos. As vítimas da Grande Depressão deflagrada nos estertores do século XIX eram vênetos, napolitanos, calabreses, lígures, filhos do fracionamento político e econômico que antes da unificação vergastava a península submetida ao comando de espanhóis, austríacos e franceses.
No Brasil, a fundação do Palestra-Itália foi um gesto de ousadia destinado a inventar a italianidade dos imigrantes da Península. Esse ato fundador realizou na prática e na vida cotidiana dos ítalo-brasileiros a identidade nacional sonhada por Cavour, Mazzini e Garibaldi. Imagino que muita gente vá se engalfinhar com o conceito de invenção, mas ele é fundamental para a compreensão do caráter singular e incomparável da história desse clube que em sua trajetória gloriosa transfigurou-se em um clube brasileiro de origem italiana.
De norte a sul do Brasil, os estádios se cobrem das camisas verdes ornadas com o escudo do Palmeiras no lado esquerdo, o lado do coração. Desde 1914, os brasileiros de todas as origens se juntam para celebrar a arte de Heitor, Romeu, Villadonica, Valdemar Fiume, Oberdã Cattani, Jair da Rosa Pinto, Chinesinho, Ademir da Guia, Mazinho, Rivaldo, Djalminha, Alex. Várias gerações de craques refinados, artistas da bola, comparáveis na arte de criar a Leonardo da Vinci e Michelangelo. Os mesmos que ainda cuidam de esculpir os dribles de Dudu nas Oficinas da Eternidade.
Reza o nosso hino: “Por nosso alviverde inteiro, bem sabe ser brasileiro, ostentando a sua fibra!”.
Torcedores da velha guarda, como eu, sabem que na alma palestrina ainda vibram os mesmos sentimentos que pulsaram no coração dos brasileiros quando o Palmeiras, bandeira verde-amarela acima do escudo, conquistou o primeiro campeonato mundial interclubes.
Ainda magoados com a decepção coletiva causada pela derrota para o Uruguai em 16 de julho de 1950, os brasileiros da antiga sabem que o empate contra a Juventus em 20 de julho de 1951 consagrou Palmeiras como o primeiro campeão mundial interclubes. Cento e sessenta mil torcedores celebraram a conquista no mesmo Maracanã da tragédia de 1950.
A nossa resposta ao “maracanazo” de 1950 foi conseguida com a dramaticidade que nossas conquistas exigem: o gol de Liminha foi, ao mesmo tempo, uma obra de arte e um gesto de redenção. Na viagem de retorno a São Paulo, o trem da vitória foi recepcionado em todas as cidades do trajeto, culminando com a chegada na Estação Roosevelt, no Brás, onde mais de 1 milhão de pessoas recepcionavam os campeões.
A ideia fixa dos adversários de hoje – “O Palmeiras não tem mundial” – ofende os historiadores que se escandalizam com a prática reiterada do vício do anacronismo, vício que aprisiona os engraçadinhos ignaros nas masmorras do presente para avaliar o passado.
A paixão palestrina não se confraterniza com gestos de conformidade. Francisco Serra, pai do meu amigo José Serra, costumava atirar contra a parede mais próxima o radinho de pilha quando o “seu” Palestra perdia jogos decisivos. O que vale um radinho, ou até mesmo a arca do tesouro, diante das tragédias esportivas que o “Verdão” apronta? Nenhum outro torcedor pode imaginar o significado das nossas derrotas trágicas. Não nos acode, nestas ocasiões, aquela pretensão de superioridade oligárquica dos são-paulinos, nem aquele alento da fé na força das maiorias que acomete os corintianos.
Vou tentar explicar a singularidade das nossas derrotas. É duro amargar a derrota diante do Chelsea, depois de estar perdendo por um a zero, conseguir o empate e sofrermos as agruras de um gol do adversário. Um amigo de muitas décadas teve impulsos de atirar a responsabilidade às costas do nosso bom goleiro Weverton. Mas, se conheço bem a “turma do Patriarca”, nenhum de nós tem a intenção de ferir de verdade os alvos ocasionais de nossos ataques. Eles são apenas encarnações da derrota, fonte de nossas frustrações momentâneas, que trazem sempre consigo aquela conflagração de sentimentos, angústias dos que foram obrigados a deixar a sua terra e encontraram nesta parte tropical da América um novo mundo, aberto ao sofrimento quase solitário do desterro e à esperança do progresso pessoal. Estamos, em nossos arroubos de carbonários, sempre caminhando perigosamente entre o delírio das conquistas inesquecíveis e a mais abominável depressão dos fracassos definitivos.
Quando o Palestra entra em campo não há presidente, nem ministro, nem juiz, nem delegado. Está lá a multidão dos Gianonni, dos Beni, dos Frugiuelli, dos Sandoli, dos Serra, dos Contursi, dos Facchina, dos Pellegrini, dos Raiola e tutti quantti.
Encerro com uma história familiar. Anos atrás, 1999, ainda na Era Parmalat, levava meu filho Carlos Henrique para o colégio. No dia anterior, o Palmeiras sofrera uma derrota. Minha memória apagou o nome do adversário. Perguntei ao garoto se ainda queria ver a final da Libertadores. Ele me respondeu enigmático:
- Só se você me der um estilingue de presente.
- Estilingue? O que você vai fazer com isso num jogo de futebol?
- Quero dar uma “estilingada” no barbudo que fica nos camarotes, xingando o Oseas.
Tentei explicar que o barbudo, à sua moda, tem o direito de torcer. O menino não se convenceu. Aí decretei: “Meu filho, cada palmeirense tem um barbudo no fundo da alma. Deixa o barbudo em paz”.
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