Esporte

Moralismos futebolísticos

A história dos ciclos financeiros pode ser contada em duas versões: uma para colégio de freiras, outra para freqüentares de ambientes adultos

O Palmeiras no Paulistão de 1993. Foto: Divulgação/AI Ferroviária
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“É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal”Sigmund Freud O Mal Estar da Civilização

Na terça-feira 31 de outubro, emprestei meus olhos à leitura do artigo de  Juca Kfouri. Na peça jornalística estampada no UOL, Kfouri entregou-se às suas habituais invectivas antipalestrinas.

Compreendo os incômodos futebolísticos do Juca. Os desassossêgos antipalestrinos nascem de uma saudável rivalidade entre seu clube de coracão, o Corinthians, e o meu Palmeiras. No mundo das paixões pelo jogo da bola, os sentimentos acolhedores frequentemente se transmutam em ressentimentos perigosos.

O artigo de Juca acusa a Crefisa de realizar empréstimos consignados de forma fraudulenta e faz increpações contra o acordo Palmeiras-Parmalat. Recomendo ao irado colunista que busque nas redes as instituições financeiras habilitadas oficialmente a gerar créditos consignados para seus clientes. São mais de duas dezenas. Mas a matéria do Juca insinua que apenas a Crefisa foi beneficiada por favorecimentos indevidos.

Quanto ao acordo Palmeiras-Parmalat, o agastado colunista acusa a empresa de “lavar dinheiro” no Brasil. Já escrevi em nossa brava CartaCapital a respeito do acordo Palmeiras-Parmalat, suas proezas e vicissitudes.

Entrego a palavra ao UOL. No dia 20 de junho de 2022, o portal registrou o aniverário do acordo de cogestão celebrado 30 anos antes.

“Em 7 de abril de 1992, Sociedade Esportiva Palmeiras e Parmalat assinaram contrato e começaram, juntas, a comandar o futebol do clube.

A parceria que tinha dois anos de duração inicialmente foi três vezes renovada para se encerrar com oito anos e 11 títulos: Copa Libertadores (1999), Campeonatos Brasileiros de 1993 e 94, Copa do Brasil (1998), Copa Mercosul (1998), Campeonatos Paulistas de 1993, 94 e 96; Torneios Rio-São Paulo de 1993 e 2000 e uma Copa do Campeões (2000).

Sob protestos e com conselheiros literalmente chorando porque o Palmeiras estava ‘se vendendo’, a aprovação levou um tempo para acontecer. Clodoaldo Antonângelo, Luiz Gonzaga Belluzzo e Paulo Nicoli trataram do tema com várias esferas do clube, como por exemplo as torcidas uniformizadas. A ideia era explicar e desmistificar a ideia de entreguismo e mostrar o tamanho do benefício.”

Nos alvorecer dos anos 2000, o acordo de cogestão não foi renovado. Nesse momento, espoucaram escândalos empresariais na economia global. Vou cometer a ousadia de reproduzir o que escrevi naquela ocasião:

Depois da Enron, WorldCom, Adelphia, Tyco, Cirio e Xerox, chegou a vez da Parmalat e da Adecco. A sucessão de escândalos empresariais e financeiros parece não ser fruto de malfeitorias isoladas, mas o resultado lógico e sistêmico da globalização, ou seja, da abertura e desregulamentação dos mercados de capitais e de crédito. Foi a chamada a globalização financeira que impulsionou, conjuntamente, a nova estratégia de internacionalização multi-mercados e multi-moedas da grande empresa produtiva, os circuitos de dinheiro mal-havido no mundo do crime organizado e a espantosa ampliação do papel dos paraísos fiscais na intermediação das transações.

Estas foram, sem dúvida, as condições propiciatórias de comportamentos e práticas financeiras que, ademais de ousadas, se revelaram viciosas. Quem acompanha o noticiário econômico sabe que a malfeitoria generalizada não poderia prosperar sem o concurso de alguns protagonistas e suas circunstâncias. Vamos aos principais: 1) a promiscuidade entre empresas de auditoria e seus auditados, 2) a conivência dos bancos de investimento que passam os papéis- mico de empresas mal avaliadas para a rafaméia desinformada, os poupadores-trouxas e 3) a irresponsabilidade e muito freqüentemente, a incompetência das agências de avaliação de risco.

O ex-presidente do Banco da Itália Tommaso Padoa-Schioppa, tratando do Parmacrack, em entrevista ao jornal econômico Il Sole 24 Ore, foi claro: “os bancos implicados são em sua maioria não-italianos, a agência de rating é estrangeira, o mesmo vale para o auditor, assim como as emissões não foram feitas na Itália”.

Na verdade uma fraude de 10 bilhões de euros seria impossível sem o concurso dos bancos e outros agentes internacionalizados. Senão vejamos: das emissões totais de bônus realizadas pela Parmalat, os bancos estrangeiros foram responsáveis por 76%, assim distribuídos: J.P Morgan 21%, Merril Lynch 11%, Morgan Stanley 11%, UBS 8%, Paribas 7%, Barclays  5%, Sssb 4%, Deustche Bank 4%, Nomura 2%, Bear Stearns, Csfb 1%. As agências e bancos encarregados da auditoria e da avaliação de risco e de crédito não foram capazes ou não quiseram explicar – como assinalou com espanto o jornalista Eugênio Scalfari – a coexistência entre uma liquidez superabundante (os balanços auditados registravam um depósito – inexistente – de mais de 4 bilhões de euros no Bank of América) e um super-endividamento.

A história dos ciclos financeiros pode ser contada em duas versões: uma para colégio de freiras, outra para freqüentares de ambientes adultos. A versão bem comportada ensina que nas etapas de euforia, a confirmação das expectativas otimistas leva os possuidores de riqueza a apostas mais arriscadas. A caminhada dos investidores em direção à zona de maior risco está sempre amparada na expansão do crédito bancário. Podem, assim, os apostadores assumir posições que são um múltiplo de seu aporte de capital próprio, na esperança de ulteriores elevações dos preços que promovam a mega-valorização de seu estoque de riqueza. No embalo da confirmação dos ganhos fáceis, os mais prudentes fazem suposições improváveis sobre o crescimento da receita líquida dos empreendimentos. Não satisfeitos, usam taxas panglossianas para descontar este fluxo inflado.

Já na versão apimentada, os espertos cuidam de criar holdings nos paraísos fiscais e enfeitar seus balanços com receitas fictícias, ativos supervalorizados ou simplesmente inventados, enquanto escondem os passivos nas subsidiárias da periferia. O contubérnio entre agentes poderosos, controladores da riqueza alheia, sobrevive à custa da ignorância dos investidores de menor porte que estão obrigados a “comprar” como boas as informações e avaliações de um grupo de administradores dotados de grande influência sobre a “opinião dos mercados”. Eles podem manter, exacerbar ou inverter tendências. Podem até mesmo inventar “novidades”, manipular preços de ativos e engambelar a clientela.

A frouxa supervisão das autoridades incumbidas de fiscalizar os mercados financeiros vem abrindo as portas para fraudes de todo o gênero. A revista The Economist, em uma de suas edições de dezembro de 2003, indignada com a sucessão de escândalos, pergunta: “Não há mercados financeiros honestos nos Estados Unidos?”. Na seção Buttonwood, responde: “Todos estão ganhando dinheiro, menos os clientes”. “Os Bancos de Investimento”, continua, “tratam de se desvencilhar das ações que seus analistas recomendam publicamente”.

Nos 90, as proezas do capitalismo destrambelhado foram cantadas em prosa e verso. Urbi et orbi, a euforia nos mercados financeiros, especialmente nas bolsas de valores, parecem confirmar o milagre do enriquecimento fácil e ilimitado. Os tempos não podem ser mais benfazejos para os vigaristas, encantadores de serpente, pitonisas e oráculos de todo o gênero.

Os senhores da nova finança estão dispostos, acima de tudo, a utilizar quaisquer métodos para desqualificar as resistências aos seus anseios. Imobilizaram homens e mulheres nas teias do pensamento uniformizado e repetitivo: “não há alternativa”.

Em 2009, empenhei minhas parcas capacidades para responder às críticas de Juca Kfouri à minha gestão no Palmeiras. “Tenho poucas certezas e todas elas provisórias. Isso significa, é óbvio, que posso terminar a vida sem qualquer delas. Corrijo: sem qualquer delas, menos uma: cometi e ainda vou cometer muitos erros na administração do Palmeiras. Não consigo descobrir em mim o sentimento ‘oceânico’ que se abriga no espírito dos que pregam o ‘remodelamento delirante da realidade’”.

Pierre Bourdieu, em seu pequeno livro Sur la Television, cuidou de analisar os arroubos moralistas de âncoras, comentaristas e outros bichos de menor porte. “Gide dizia que com bons sentimentos se faz má literatura. Mas, com bons sentimentos se faz audiência. É preciso refletir sobre o moralismo das gentes midiáticas: frequentemente cínicos, eles propugnam por um conformismo moral absolutamente prodigioso. Os apresentadores de jornal televisivo, os animadores de debate, os comentaristas esportivos se transformaram em pequenos diretores de consciência, porta-vozes de uma moral tipicamente pequeno-burguesa. Dizem o que é preciso pensar sobre os problemas da sociedade.”

Hoje, com a internet e seus blogueiros, há uma inflação de diretores de consciência, fenômeno provavelmente mais perigoso do que a inflação de ativos tóxicos alimentada pelos créditos subprime.

Os fundadores do pensamento moderno – tanto os liberais quanto os democratas – acreditaram que a sociedade dos homens livres está condenada a construir pelo debate crítico as suas próprias condições de avaliação e julgamento.  Cito Cristopher Lasch: “a democracia requer um debate publico vigoroso, não apenas informação. É óbvio que a informação é importante, mas o tipo de informação exigido na democracia só pode ser gerado pelo debate. Não sabemos o que precisamos saber até que possamos formular as questões corretas e só podemos saber quais são as questões corretas se submetermos nossas próprias idéias sobre o mundo ao teste da controvérsia pública”.

Lasch e seus mestres ilustres imaginaram que a controvérsia razoável, mais do que racional, seria capaz de garantir os mortais diante das ameaças de condenações antecipadas, frutos de julgamentos autocráticos, pessoais e preconceituosos. Mas, os esgares dos “delirantes que não se reconhecem como tal” provam o engano: a violência na sociedade contemporânea não é apenas física, mas frequentemente decorre da tentativa de impor ao outro, mediante o ultrage moral, o seu próprio julgamento, impostado como uma referência absoluta e infalível, acima de qualquer crítica.

A indigência crítica abre caminho para a selfrightousness. A língua inglesa tem uma palavra precisa para designar o estado de espírito dos indivíduos isolados que se consideram bons e virtuosos, em meio “à vulgaridade e às bandalheiras da sociedade”: selfrighteousness. A estridência dos humanos direitos sugere que a selfrighteousness deixou de ser um vício individual para se transformar num fenômeno social retrógrado e antidemocrático. Nas manifestações dos moralistas transcendentais, vejo a auto-convocação dos soi-disant iluminados para substituir a onisciência divina e, nessa condição, desferir os ucasses irrecorríveis de Juízo Final, em contraposição aos humanos, os pobres diabos que se debatem para sobreviver aos ditames da falibilidade e da incerteza. Fico a imaginar como seria a vida dos humanos falíveis se os jurados do Juízo Final empalmassem o poder na moderna sociedade de massas, crivada de conflitos e contradições.  O mundo realizaria, se é que não está a realizar, as profecias de George Orwel em 1984 e de Aldous Huxley em Brave New World.

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