O Mundo É uma Bola

A visão de Luiz Gonzaga Belluzzo sobre esporte e sociedade

O Mundo É uma Bola

Um brinde a Ademir da Guia

Filho de Domingos, o Divino, Ademir deslizava pelo campo, sempre livre e de cabeça erguida

Ademir da Guia. Foto: Divulgação/ Palmeiras
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Lembro-me que, no começo dos anos 60, o escritor e são paulino Antônio Olavo Pereira insistiu para que o acompanhasse ao Pacaembu para ver um jogo entre as seleções de novos de São Paulo e do Rio de Janeiro. “Vai jogar o filho do Domingos da Guia”, argumentou, diante da minha hesitação.

Não tive tempo, nem razões para me arrepender. Jogando pela seleção do Rio, o filho de Domingos, o Divino, deslizou pelo campo, sempre livre, cabeça erguida. Insistentemente visível para os companheiros, parecia invisível para os adversários. Escorados nesta onipresença imperceptível, os cariocas bateram os paulistas. Do placar não me recordo mais. Lembro-me, sim, do gol do garoto elegante. Driblou o zagueiro adversário com o corpo e colocou gentilmente a bola nas redes, como que pousa um beijo no rosto da amada.

Saímos, Antonio Olavo e eu, assombrados. Mas não podia imaginar que durante dezesseis anos, entre 1961 e 1977 , os deuses dos estádios me concederiam a graça de ter no meu time  aquela figura renascentista do futebol. Digo renascentista porque Ademir construía o espaço do jogo como Da Vinci desvendava as possibildades da perspectiva.

O tempo passava e eu cada vez mais convencido de que a família da Guia pertencia, sem dúvida alguma, à estirpe do grande Leonardo. Da Guia, Da Vinci. Os jovens palmeirenses de hoje sofrerão pela eternidade a saudade do Ademir que não puderam ver.  Não há consolo por não ter visto Ademir num jogo contra o Botafogo no Pacaembú.  Recebeu um passe á altura da meia lua, tres jogadores do adversário à sua frente. Não havia espaço senão para passar a bola para trás. Não havia espaço para os seres comuns, naturalmente. Ademir enfiou o pé por debaixo da bola, encobriu a barreira humana, e serviu o centro avante Dario que com um sem-pulo, fez o gol.

Os defensores do Botafogo pareciam hipnotizados. Acordaram com os gritos da torcida. Na verdade eles passaram alguns segundos tentado descobrir o caminho da bola. Para quem assistia o jogo das arquibancadas, ela havia descrito uma parábola, em câmara lenta. Para os jogadores do Botafogo, ela havia simplesmente sumido, como desaparecem os objetos nas mãos dos mágicos. Desaparecem para reaparecer logo ali, nos lugares mais inesperados.

Ademir era assim. Muitos comentaristas da época diziam que ele era lento. Mas João Cabral de Melo Netto em seu famoso poema  descobriu que a lentidão de Ademir apodrecia o adversário por dentro, corroía as entranhas do inimigo até deixa-lo prostrado, sem forças.

Na famosa decisão de 1974, quando o Corinthians buscava o título depois de vinte anos, Ademir e seu eterno companheiro Dudu, juntos, imobilizaram a garra corintiana, enredando a fúria nas armadilha da ansiedade do gol que não saía e depois, na apatia e no desalento. Rivelino, um craque de talento também indiscutível, nunca mais jogou no Corinthians, numa destas injustiças que só o futebol pode preparar.

Anos depois, Zé Maria, o grande lateral direito do Corinthians, confessou-me que nunca havia visto, nem sentido, com tanta força, a onipresença emoliente daquele prestidigitador de largas passadas “ Era incrível”, contava, “mas a bola parecia não querer sair dos pés dele  e nós desesperados para ganhar o jogo. Não conseguimos”

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