O Joio e o Trigo

Apoiado por Bolsonaro, projeto agro em terra indígena no MT avança com atropelos e ilegalidades

Multa por desmatamento ilegal, atropelo da área técnica da Funai, arrendamento de terras públicas e falta de consulta à população marcam o Agro Xavante, iniciativa que nasceu com a bênção do Planalto

Bandeira do Brasil tremula em frente à lavoura do projeto Agro Xavante, na Terra Indígena Sangradouro Foto: Marcos Hermanson
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Por João Peres, Marcos Hermanson Pomar e Tatiana Merlino, de Primavera do Leste (MT)

À beira da BR 0-70, uma placa verde e amarela indica “Projeto Independência Indígena”. Ao lado, uma bandeira do Brasil tremula. O carro branco de marca Palio com adesivos do projeto entra na estrada de terra e avança sem dificuldades. No caminho, pequenas estradas com nomes na entrada indicam que há aldeias indígenas. Seguimos atrás do veículo por 30 minutos, até chegarmos a uma cancela com um sinal de trânsito vermelho: ‘Pare’.  

Foto: O Joio e O Trigo

À esquerda, há uma casa recém-construída. À frente, uma lavoura. Embora o cenário pareça o de uma fazenda, na verdade é uma terra indígena – Sangradouro, uma das nove terras da etnia Xavante.

Estamos na área de produção do projeto Agro Xavante, uma parceria de fazendeiros ligados ao Sindicato Rural de Primavera do Leste com os Xavante de Sangradouro, com apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do governo do Mato Grosso. E nosso anfitrião é Gerson Wa rãiwe, o presidente da Cooperativa Indígena Grande Sangradouro e Volta Grande. É ele quem dirige o Palio da cooperativa. Gerson usa uma camiseta da iniciativa: na parte da frente, há um cocar; à esquerda, o logo da Funai, à direita a bandeira do Brasil e a expressão “Agro Xavante”. Na parte de trás, há logos de empresas.

Num dos galpões da lavoura estão maquinários, tratores, colheitadeiras imensas e sacos de fertilizantes. Cada um dos quatro produtores “parceiros” dos indígenas tem um local como esse para guardar os equipamentos. “Esse é o do Nardes”, esclarece Gerson, referindo-se a José Otaviano Ribeiro Nardes, produtor de soja da região de Primavera e um dos maiores entusiastas do projeto. Os demais fazendeiros são Vitélio Furlan, Marciane Ferrari e Igor Fontinele de Alcântara.

Para conhecer a iniciativa chamada Independência Indígena e seus impactos entre os Xavante, de 9 a 18 de junho a equipe do Joio dirigiu 2.300 quilômetros e circulou por três terras indígenas dessa etnia, no Mato Grosso, onde entrevistou cerca de 30 pessoas. 

Essa investigação resultou na série “Os parceiros do Rio das Mortes”, que expõe quais são os argumentos a favor e contra o projeto, e quais têm sido as consequências da lavoura entre os Xavante. Essa série integra o projeto “Entre a soja e o Cerrado”, que investiga o avanço do agronegócio sobre terras indígenas.

‘Bolsonaro pediu esse projeto’

A assinatura dos primeiros contratos entre os fazendeiros e indígenas ocorreu em março de 2020, mas o projeto já era uma promessa de Jair Bolsonaro aos fazendeiros desde 2017, quando o então deputado federal esteve em Primavera do Leste. 

Aos gritos de “mito” e enrolado na bandeira do Brasil, o parlamentar assentava o caminho que os opositores, o jornalismo e a ciência política demoraram a entender – e as terras indígenas estavam em posição central nessa peregrinação. “Foi ideia do Bolsonaro. Ele pediu esse projeto. Nós compramos a ideia dele. Ele falou pra nós, ‘se eu for eleito presidente, meu sonho é a independência indígena’”, conta José Nardes, durante conversa na sede do Sindicato Rural. 

A participação ativa do presidente da Funai, Marcelo Xavier, também foi fundamental para a implementação das lavouras de milho e soja dentro das terras indígenas. Segundo o produtor, que diz ter sido apresentado ao delegado da Polícia Federal por Bolsonaro, “o projeto foi feito dentro da própria Funai, com ajuda dos funcionários” – informação que foi confirmada por servidores. Antes, conta, “o setor do agro não tinha acesso [ao órgão]. O Bolsonaro mudou 100% a Funai”. 

O plano, no entanto, além de ter criado tensões entre os indígenas, que se dividem entre apoiadores e críticos à lavoura mecanizada dentro de Sangradouro, está envolvido em uma lista de ilegalidades e irregularidades. 

“Na verdade, é tipo um arrendamento, mas eles estão dentro trabalhando, os indígenas. É a mesma coisa que um arrendamento, mas não pode falar que é arrendamento que o povo não aceita, entendeu?”, contou Agnaldo Santos, superintendente de Assuntos Indígenas do Mato Grosso. 

O povo, no caso, é a Constituição: a própria essência do projeto faz dele algo inconstitucional, pois, de acordo com o Artigo 231 da Carta Magna, os povos indígenas detêm o usufruto exclusivo sobre seus territórios, cabendo apenas a eles a exploração das riquezas do solo, dos rios e dos lagos neles existentes. Ao mesmo tempo, o Estatuto do Índio, em seu artigo 18, diz que “as terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento”. 

Agnaldo Santos, superintendente de Assuntos Indígenas do Mato Grosso. Foto: Marcos Hermanson

Santos nos recebeu numa tarde de junho no Palácio Paiaguás, sede do governo de Mato Grosso. Fez questão de nos levar a uma sala confortável da Casa Civil, decorada com quadros sobre algumas etnias, e por várias vezes enfatizou a proximidade com a primeira-dama, Virgínia Mendes, e a prioridade dada pelo governador Mauro Mendes ao estabelecimento de relações entre fazendeiros e povos indígenas. 

Apesar de confirmar se tratar de um arrendamento, o superintendente não quis expor qual percentual caberia a cada uma das partes, uma dificuldade que se repetiu em sucessivas conversas com os entusiastas do Agro Xavante. Por fim, os documentos da Funai nos trouxeram a informação de que 80% das receitas líquidas cabem aos produtores rurais, ao passo que os Xavante ficam com 20%. Inicialmente, a divisão era ainda mais desigual: o primeiro termo de cooperação enviado à Funai propunha uma saca de soja por hectare aos indígenas – um hectare chega a render 80 sacas. 

“O discurso de que é parceria é para camuflar, disfarçar o arrendamento. Mas a Constituição de 88 diz que o usufruto das terras é exclusivo dos povos. Então, esse contrato é nulo. Essa terra não é passível de exploração, de alienação, de ser colocada no comércio por ser de propriedade da união e de usufruto exclusivo”, explica o advogado Rafael Modesto dos Santos, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

De acordo com o Estatuto da Terra, arrendamento rural é o contrato pelo qual o proprietário de um imóvel cede temporariamente o uso daquela propriedade a um terceiro por meio do pagamento de um aluguel – esse pagamento pode ser efetivado em dinheiro ou em partes da produção. 

Em seu artigo 93, o mesmo dispositivo legal estipula que “é vedado contrato de arrendamento ou parceria na exploração de terras de propriedade pública”, como é o caso das terras indígenas, que são de propriedade da União. 

O apoio da Funai

“Leva essa minha fala, leva para o seu pai que nós estamos com ele”. É abril de 2022. Antes que o Joio, Eduardo Bolsonaro chega a Sangradouro, onde tem Gerson como anfitrião. ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> style="font-weight: 400;">Segundo o vídeo disponível no canal de YouTube do parlamentar, a intenção era “mostrar a realidade do índio brasileiro”. Sem camisa, pintado com urucum e usando cocar, Gerson se declara um indígena bolsonarista. “Ele deu oportunidade, incentivou os nossos interesses, nós nas nossas terras. Se assim for, será o modelo para todos… Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.”

Como resultado da visita, o deputado e filho de Jair Bolsonaro produziu um vídeo de 23 minutos, onde mostra “o porquê em meio a essa riqueza do agro que carrega o Brasil nas costas, tem pessoas que querem incluir (sic) os índios e condená-los a viver numa ilha de pobreza. Vamos lá olhar esse projeto de perto”.  

Um ano antes, em abril de 2021, quem esteve na região foi o presidente da Funai, Marcelo Xavier, em um Dia de Campo que marcou o início da colheita de arroz no território – normalmente, a primeira safra de uma área que será dedicada a soja e milho é feita com arroz, para preparar a terra. Oficialmente, deveria ser uma atividade de fiscalização e acompanhamento dos resultados da colheita, mas não encontramos, nos documentos, qualquer sinal de que isso tenha de fato ocorrido. 

Na ocasião, vestindo uma camiseta da cooperativa, Xavier disse: “O projeto inovador fortalece o etnodesenvolvimento e conta com o apoio da Funai e de outros parceiros. Esperamos que a iniciativa possa ser difundida para todo o Brasil. O indígena tem todo o direito de ser protagonista da sua própria história, e ele não deixa de ser indígena por querer buscar melhores condições de vida.” 

À direita, presidente da Funai Marcelo Xavier durante Dia de Campo em Sangradouro. Foto: Mário Vilela/Funai

O apoio do presidente da Funai ao projeto foi tamanho que passou por cima de servidores e da coordenação local do órgão. As tratativas da cooperativa e dos fazendeiros locais foram feitas diretamente com Brasília – enquanto servidores locais ficavam no escuro. 

O Estatuto da Funai determina que cabem às bases locais do órgão “ações de promoção ao etnodesenvolvimento econômico”. Em outras palavras, o tema deveria passar primeiro pela Coordenação Regional Xavante (CR Xavante), sede local da autarquia, em Barra do Garças, mas o que ocorreu foi o inverso. 

Documentos internos da Funai mostram que os funcionários locais só souberam da existência da lavoura quando ela já tinha se iniciado. A descoberta ocorreu durante uma vistoria em dezembro de 2020, quando um servidor da coordenação regional constatou que cerca de mil hectares de Cerrado em Sangradouro haviam sido desmatados. 

Foi então que a área técnica apresentou aos escalões superiores uma série de questionamentos raramente respondidos – quando muito, com evasivas.

Os Termos de Cooperação Técnica Agrícola firmados entre os fazendeiros e a cooperativa indígena criada com fins de viabilizar o projeto, a Cooigrandesan, só foram enviados para a Coordenação Regional da Funai em fevereiro de 2021, dois meses depois de terem sido assinados. 

Antes disso, de maio a dezembro de 2020, já tinham passado pela presidência do órgão, pela Coordenação Geral de Promoção ao Etnodesenvolvimento e pela Procuradoria Federal Especializada – um braço da Procuradoria Geral da República dentro da Funai. 

Na realidade, servidores da Funai de Brasília se reuniram pessoalmente com fazendeiros e indígenas envolvidos no Independência Indígena e os ajudaram fazendo ajustes nos termos originais da “parceria técnica agrícola” – neologismo criado para viabilizar juridicamente o projeto – firmados em março de 2020, de modo a tornar os documentos menos vulneráveis em caso de contestação judicial. 

Com ajuda da Coordenação de Etnodesenvolvimento, os termos ficaram mais apresentáveis. Em vez dos 11 mil hectares que seriam desmatados inicialmente, a área foi reduzida para mil. Também foi sugerido adicionar que a área destinada à lavoura “já se encontrava antropizada”, o que os servidores de Barra do Garças mostraram ser falso – segundo imagens de satélite, apenas 300 hectares haviam sofrido ação humana antes da plantação.  

“Não podemos parar no tempo”

Gerson garante que a lavoura tem mil hectares, mas, de acordo com mapas do grupo de pesquisa Ambiente Território e Ações Coletivas, coordenado pelo professor Magno Silvestri, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a área desmatada é de 1.475 hectares, com picadas na mata circunvizinha, o que indica a intenção de expansão da plantação. 

“Não podemos parar no tempo enquanto nossos vizinhos se desenvolvem”, diz Gerson, com voz tranquila, durante entrevista de mais de duas horas realizada numa das aldeias de Sangradouro.

Imagem de satélite mostra as plantações do projeto “Agro Xavante” na TI Sangradouro. Fonte: Magno Silvestri / Grupo de Pesquisa “Ambiente, Território e Ações Coletivas”, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

De acordo com documentos aos quais a reportagem teve acesso, em outubro de 2021 a cooperativa enviou um pedido ao Ibama para aumentar a lavoura para seis mil hectares. “Mas ele está parado. Eu devo ir a Brasília na semana que vem e vou pegar um outro meio para o Ibama liberar. Porque os indígenas querem trabalhar”, disse José Nardes. 

Um mês depois da nossa conversa, em 27 de julho, o Ibama esteve em Sangradouro e autuou os quatro fazendeiros por desmatamento ilegal – quase 1.500 hectares foram derrubados, 500 hectares a mais que a informação oficial sobre o Agro Xavante.

Procurado pela reportagem para comentar a sanção, Éverton Pereira Aguiar Araújo, o procurador do Ministério Público Federal (MPF) em Barra do Garças (MT), disse, por meio de nota: “Recentemente foi noticiado que o IBAMA multou particulares em razão do desmatamento da TI. O MPF em Barra do Garças/MT ainda não foi comunicado pelo IBAMA, quando isso ocorrer analisará o caso de acordo com as regras que vigem nesta República.”

Vozes contrárias

Dirigimos alguns quilômetros pela BR 070. Mais afastados da aldeia central de Sangradouro, começamos a escutar vozes dissonantes. Paulo Domingos, cacique da aldeia Tso’repré de Sangradouro, conta ter trabalhado na Funai durante 26 anos. “Isso é uma enganação, uma ilusão”, nos disse o cacique de 57 anos. “O homem branco é igual o diabo, o diabo é mau, tenta o homem simples e humilde pra gente destruir esse Cerrado”.

Conversamos  com ele num fim de tarde, na porta de sua casa, enquanto crianças se aqueciam em torno de uma fogueira e um grupo de indígenas jogava futebol no campo de areia que fica ao centro da aldeia. 

Entre outros problemas, Domingos afirmou se preocupar com a divisão de lucro estipulada nos contratos de “parceria” e com a divisão que o projeto vem causando na comunidade de Sangradouro. 

“Agro Xavante, na verdade, para quem sabe, para quem conhece a leitura, o esquema dos waradzu [homem branco], é um nome fantasia. Arrendamento não é autorizado pela Lei Maior, Carta Magna de 88, artigo 231”, argumenta o cacique. “Não autoriza para o branco fazendeiro explorar a terra indígena, fazer o arrendamento.” 

A consulta prévia 

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, determina que os povos indígenas “deverão ser consultados sempre que for considerada sua capacidade para alienar suas terras ou transmitir de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora de sua comunidade”. 

De acordo com documentos a que o Joio teve acesso, a Cooperativa protocolou junto à Funai a ata de uma reunião realizada em junho de 2019, entre 55 caciques da Terra Indígena Sangradouro, em que as lideranças teriam dado aval ao projeto. 

Escrita à mão e registrada em cartório, a ata afirma que “ao dia 15 de junho de 2019, a comunidade indígena de Sangradouro reuniu-se para a consulta prévia da roça mecanizada Agro-Xavante [e] os caciques e comunidade presentes manifestaram-se favorável [sic] que haja roça mecanizada nas roças antigas”. 

“É preciso ter alimento para sobreviver, cantar, fazer cerimônia, rituais e manter a cultura milenar, acompanhando o desenvolvimento econômico globalizado”, diz ainda o documento, que determina que sejam feitos “estudos sociais” para que a lavoura fosse feita “juridicamente sem prejudicar o meio ambiente”. 

A ata foi protocolada na Funai de Barra do Garças alguns dias após a realização do encontro, e não traz detalhes sobre o projeto – área que seria utilizada, as culturas implementadas e a divisão de lucros. Tampouco diz que a lavoura seria tocada em parceria com fazendeiros da região.

O próprio cacique Paulo, da aldeia Tso’repré, é um dos signatários. Na entrevista ao Joio, ele afirmou: “Algumas pessoas que lideravam explicavam que ia dar certo […] muita gente não entende bem o que é contrato de arrendamento”. 

“Essas palavras nos dificulta, dificulta de cada um, as palavras difíceis do waradzu [homem branco] e nós acreditamos”, diz ele. “Então, [foi] nesse sentido que eles aceitaram”.

“Isso é uma enganação, uma ilusão”, opina o cacique Paulo Domingos sobre o projeto de lavoura. Foto: Marcos Hermanson

A indigenista Maria Augusta Assirati, ex-presidente da Funai, explica que o processo de consulta prévia deve ser feito com mais cautela, observando os métodos próprios de deliberação de cada povo indígena e assegurando que haja uma compreensão geral da comunidade do local em relação ao projeto que será implementado.

“Não é só meramente uma reunião”, diz ela. “A gente acredita que uma consulta bem feita exige a realização de vários encontros, conversas, atividades, às vezes com diferentes segmentos da comunidade, em momentos diferentes.” 

“Uma atividade como essa me parece dividir um pouco as opiniões, e isso por si só é um impacto”, continua Assirati. “Então o processo deveria ser bastante cuidadoso, cauteloso, respeitando o tempo de se pensar e maturar uma decisão a respeito da atividade”.

Fogueira, roda de conversa e defesa do Cerrado

Vinte e cinco jovens sem camisa, descalços, só de bermuda. Cabelos pretos lisos e franja. De braços dados, em círculo, movimentam-se enquanto entoam falas e cantos. São quase 19 horas e um céu cor de rosa emoldura a aldeia circular Etenheritipá, na Terra Indígena Pimentel Barbosa. Além das vozes dos homens que participam do ritual de passagem para a vida adulta, o único som que se ouve é um latido de cachorro. A roda acontece três vezes ao dia – ao anoitecer, no meio da madrugada e ao amanhecer. Os participantes circulam pela aldeia e finalizam o ritual em frente à casa do cacique.

Minutos depois, noite de lua cheia, outros homens sentam-se em roda. É o momento do Warã, que no idioma Xavante significa o círculo dos homens adultos. É lá onde eles discutem os assuntos da aldeia. Está escuro, e apenas a fogueira da Warã ilumina os participantes. O cacique Jurandir Siridiwê levanta-se e, em Xavante, explica aos demais homens o motivo da visita da reportagem. E pede que nos apresentemos aos moradores de Pimentel Barbosa. 

A estrada de terra que dá acesso à aldeia é de terra e areia. Atravessar os 70 quilômetros que separam a terra indígena da cidade de Canarana não é tarefa fácil, o carro patina, há buracos e galhos no meio da pista. Por aqui, é visível que o Cerrado é mais preservado do que na maioria das aldeias de Sangradouro, situada a cerca de 550 quilômetros de distância. A mata é mais fechada, as árvores são mais altas.

Além de desmatamento e monocultura, o projeto Agro Xavante levou desentendimentos para dentro das aldeias. Pelas conversas e entrevistas que fizemos em Pimentel Barbosa, por exemplo, ficou claro que pelo menos por ali o projeto de agro não tem espaço. 

Jurandir conta que Marcelo Xavier esteve nas aldeias, que foi recebido com gentileza, mas que os moradores das comunidades não querem o projeto de agricultura mecanizada que foi criado em Sangradouro. “Ele [Xavier] é o escolhido pelos ruralistas, então a gente sabe qual é o mecanismo para fazer essa abertura: induzir ou iludir o povo indígena. O agronegócio não tem mais onde plantar, não tem mais como desmatar e esse poder central que é o Bolsonaro vai ter que mexer na área indígena”, diz. 

Sobre os Xavante que aderiram ao projeto, o cacique afirma: “A gente sempre diz: ‘Tá, se você quer virar warazu não tem problema. Só que isso não é seu, esse território é de todo mundo”, explica. “Em Sangradouro tem um pequeno grupo achando que vão enriquecer, que vão ter bens particulares, mas eles esqueceram que não são um indivíduo só, que é uma coletividade.

Sentado em um banco próximo à escola da comunidade, Jurandir fuma um cachimbo enquanto conversa com um grupo de mulheres da comunidade. Debaixo de um sol forte, Ernestina, Lidiane, Joana, Claudete, Glória e Mislene levantam-se e, em Xavante, opinam sobre os projetos de agro na terra indígena. “O que eu vou dizer sobre o [Cerrado] é que eu amo muito ele, porque é nele que acontece toda a nossa vida. Não vou deixar acontecer roça mecanizada. E nem todos os Xavantes querem ser chamados como Agro Xavante. Isso é inaceitável”, diz Joana. 

Algumas das mulheres estão vestidas com camisetas coloridas e saias floridas e longas; outras estão de shorts e top vermelho e têm o corpo todo pintado de tinta de ucurum, vermelha. Para a jovem Mislene, “O é nossa vida, onde existe nossa comida, não podemos deixar que aconteça roça mecanizada.” Augustina, uma senhora mais velha, disse: “Aquele pessoal de Sangradouro só quer ficar pedindo, sem fazer nada, mas eu não vou deixar a minha terra para ser desmatada. A roça mecanizada não é minha opção, não vamos deixar acontecer”, garante.

Mulheres moradoras da aldeia Etenheritipá opinam sobre o projeto Agro Xavante Fotos: Tatiana Merlino

Cercados por grandes fazendas de soja, os territórios Xavante vêm sofrendo nas últimas décadas com a diminuição da caça e pesca e com a contaminação de rios por agrotóxicos usados nas lavouras vizinhas. Os defensores do projeto argumentam que a produção dentro da TI ajudaria a acabar com problemas que afetam os indígenas, como fome e desnutrição. 

“Se nós temos uma área boa para cultivo, por que não explorar? Porque, ao invés de mendigar lá fora, nós estamos trabalhando. Isso é o que muitas vezes tira o respeito que nós temos lá fora, na cidade. Isso é muito ruim para a nossa imagem. A terra tem uma área muito grande. Lá fora a mídia fala, ‘eles vão desmatar tudo’. Não, não desmatamos, apenas utilizamos, queremos utilizar 1% da nossa área para poder atender as demanda”, argumenta Gerson, o presidente da cooperativa.

Após nove dias circulando por três terras indígenas dos Xavante, não é possível saber qual é a opinião que prevalece. Na própria terra indígena Sangradouro, na Aldeia Abelhinha, por exemplo, há opositores ao projeto. Berenice Eresani Toptira, moradora de Sangradouro, acredita que “esse projeto que o Bolsonaro surgiu para nós como se fosse novidade. Isso pra nós não é bom. Esse projeto vai destruir tudo. A nossa vida não é só a nossa vida, é a vida do Cerrado também. Eu me preocupo com isso”, conta. 

Desde o início da Independência Indígena, a Associação Xavante Warã tem se posicionado contra o projeto. Em maio do ano passado, emitiu uma nota de repúdio do “uso político que o governo federal está fazendo do povo A’uwé Xavante, como laboratório de sua ‘antipolítica indigenista’, implantando cooperativas agrícolas que funcionam em parceria com o agronegócio, dentro da Terra Indígena de Sangradouro/MT.” Para eles, “ao contrário do que seu nome pretende transparecer, o projeto nada tem de independência ou autonomia para o povo A’Uwe Xavante”.

Leia a íntegra da nota do MPF 

Sobre o Projeto Independência Indígena da TI Sangradouro.

Em relação à aludida Terra Iindígena Sangradouro, o MPF propôs a ação civil pública nº 001016-89.2019.4.01.3605 objetivando a condenação dos demandados à obrigação de prover os povos indígenas da TI com a adequada política de promoção de gestão territorial e ambiental, consistente na implementação de projeto de gestão ambiental e territorial, ao fortalecimento das práticas indígenas de manejo, uso sustentável e conservação dos recursos naturais e a inclusão social dos povos indígenas, consolidando a contribuição das Terras Indígenas como áreas essenciais para conservação da diversidade biológica e cultural nos biomas florestais brasileiros.

Igualmente, buscou o MPF, por meio da ação, a condenação a implementação das metas previstas nos Objetivos 1013 do Plano Plurianual da União para os anos de 2016 a 2019, notadamente (i) Atender, em 45 dias, as famílias indígenas da TI Sangradouro com projetos de etnodesenvolvimento voltados à segurança alimentar e nutricional e à geração de renda; (ii) Executar ou apoiar, em 90 dias, projetos de recuperação e conservação ambiental na terra indígena Sangradouro; (iii) Apoiar a elaboração, em 45 dias, do Plano de Gestão Territorial e Ambiental – PGTA e a implementação de ações integradas na TI Sangradouro e; (iv) promover e apoiar, em 30 dias, iniciativas de qualificação das políticas públicas e das ações da agricultura familiar, garantindo atendimento a especificidades.

A ação ainda está em tramitação e não foi sentenciada. Assim, o MPF cumpriu seu papel institucional ao buscar que o Poder Judiciário obrigue o Poder Executivo a assegurar o etnodesenvolvimento na Terra Indígena Sangradouro.

Os indígenas da TI Sangradouro formataram a Cooperativa Indígena Sangradouro e Volta Grande – COOIGRANDESAN e estão desenvolvendo o “Projeto Independência Indígena” em parceria com o Sindicato Rural de Primavera do Leste e a Coordenador-Geral de Promoção ao Etnodesenvolvimento da FUNAI.

A autodeterminação dos povos têm caráter bivetorial de forma que não cabe a terceiros eleger os caminhos que uma comunidade indígena deve escolher como prioridades ou com quem se relacionar ou formatar parcerias. O MPF é órgão de fiscalização e controle, e atua mediante a identificação de ações ilícitas, fato que não aconteceu até o presente momento.

Recentemente foi noticiado que o IBAMA multou particulares em razão do desmatamento da TI. O MPF em Barra do Garças/MT ainda não foi comunicado pelo IBAMA, quando isso ocorrer analisará o caso de acordo com as regras que vigem nesta República.

O MPF em Barra do Garças/MT como sempre limita-se a cumprir os Tratados Internacionais, a Constituição e as Leis. O mesmo procurador que ajuizou a ação para fechar a BR-158 no trecho que intercepta a TI Maraiwatese está à frente da Operação Res Capta. Assim, o MPF enfrentará ações ilícitas independentemente da sua origem.

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