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Responsabilizar para que nunca mais aconteça: ditadura é ferida aberta no Brasil

Por que a mídia e o Estado brasileiro se recusam ao enfrentamento histórico dessa agenda?

Fotos: Acervo/Arquivo Nacional e Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Por Iara Moura, Pedro Vilaça, Mônica Mourão e Tonho Biondi*

O Brasil sangra ainda em ferida aberta os ditames da ditadura civil-militar. Desaparecimentos forçados, mortes, torturas, corrupção, censura e militarização da vida marcaram o período sombrio de nossa história recente, iniciado em abril de 1964. À época, o Estado foi sequestrado pelas Forças Armadas em conluio com setores empresariais brasileiros e estrangeiros. A censura se impôs à mídia e às manifestações culturais, mas houve, nesses campos, quem também se alinhasse – por medo, comodismo ou mesmo e principalmente por interesses de lucro – ao regime.

Resta perguntar: nos dias atuais, por que os grupos comerciais de mídia e o Estado brasileiro ainda se furtam a enfrentar tal lacuna de memória?

O “legado” do golpe de 64 persiste, desde a concentração da mídia até o aumento da desigualdade social, passando pela violência policial, uma das mais letais do mundo, e pela ameaça constante à democracia, que ganhou novos contornos com a ascensão do bolsonarismo e a banalização da exaltação à tortura e da ameaça às instituições democráticas.

Às vésperas do marco dos 60 anos, o presidente Lula suspendeu os atos que relembram o golpe de 1964 e ainda recuou na proposta de construção do Museu da Memória e dos Direitos Humanos “para não criar atritos com os militares”, nas palavras do chefe do Executivo. Inspirada no Museu dos Direitos Humanos de Santiago, a proposta era criar um equipamento público destinado à memória das vítimas do período corroborando com a ideia de que é preciso lembrar dos crimes e horrores do período para que não se repitam.

A suspensão dos atos e do museu guarda semelhança com a censura imposta e também ao alinhamento forçoso ou “pra não criar atrito” de alguns veículos da mídia comercial com o regime militar iniciado em 1964.

A história se repete e assistimos estarrecidos, em janeiro de 2023, a intentonas golpistas e autoritárias tomarem conta da capital do País clamando por intervenção militar. Parte da mídia comercial apoiou e inflamou abertamente os levantes golpistas, enquanto outra rechaçou e questionou a legalidade. A relação da mídia comercial com os regimes de poder, sejam eles democráticos ou ditatoriais/autoritários, resguardada as devidas especificidades de cada momento histórico, é reveladora de que o capital midiático opera e organiza-se segundo seus próprios interesses, doa a quem doer.

Quanto custa não entrar em atrito?

Como boa parte da população, em um regime que durou 21 anos (1964 – 1985), permaneceu alheia a fatos muitas vezes escancarados? Como, até hoje, ainda há pessoas que defendem o retorno de um regime marcado por autoritarismo e silenciamento?

A ditadura militar brasileira foi corrupta, violenta, censurou, perseguiu, torturou e assassinou adversários políticos, entre eles, jornalistas e donos de veículos de imprensa. Enquanto homens, mulheres e crianças eram torturados; enquanto casos de corrupção eram abafados, jornalistas assassinados; enquanto artistas eram censurados e exilados e corpos desapareciam sem deixar vestígios; enquanto a justiça fechava os olhos, a mídia comercial aumentava seu alcance, sua concentração e sua lucratividade.

Documentos descobertos recentemente, obtidos pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf/Unifesp) e analisados pela Agência Pública, revelaram que o Grupo Folha tinha uma relação muito mais profunda com a ditadura militar do que muitos acreditavam. Segundo a Agência Pública, a empresa chegou a emprestar carros de distribuição de jornais para agentes da repressão usarem como disfarce em operações do regime. O relatório da Unifesp mostra que o jornal chegou ao fim da ditadura como o veículo impresso de maior circulação do País. Não resta dúvida de que a relação com os militares tenha sido fundamental para esse sucesso.

A Rede Globo, por sua vez, reconheceu que “errou” ao apoiar a ditadura. Em 2012, após forte apelo popular, O Globo confessou ter errado ao apoiar o golpe. Mas o que isso realmente significa? Mesmo que represente um avanço, é suficiente? A Globo, sob o comando do poderoso Roberto Marinho, não só apoiou o regime militar como também se beneficiou da ditadura. Exemplo disso é o acordo inconstitucional com a empresa Time-Life, que permitiu que a empresa dos Marinho se tornasse um dos maiores conglomerados de comunicação do mundo.

A parceria econômico-institucional de parte da mídia comercial brasileira com o regime militar abriu as bases para o cenário de concentração econômica do setor e prevalência do modelo comercial.

Após a reabertura, era de se esperar que os avanços trazidos pela Constituição de 1988, entre elas a liberdade de expressão, de imprensa e de livre associação e manifestação, fossem garantidores da recém conquistada democracia. Porém, no campo da comunicação, esse avanço encontra ainda grandes obstáculos. Jornalistas e comunicadores não têm garantias e proteções, num cenário em que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo para a prática. Outro gargalo é o fato de a mídia brasileira ser concentrada na mão de poucos.

A pesquisa Quem Controla a Mídia, realizada em 2017 em uma parceria entre o Intervozes e a organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), trouxe dados que evidenciam esta questão. De acordo com o estudo, entre os 50 veículos com maior índice de audiência no Brasil, 26 são comandados por apenas cinco empresas.

Recentemente, o governo Lula sancionou uma lei que amplia o poder dos oligopólios e estimula o televangelismo, agravando esse cenário. A partir de agora, empresas unipessoais – aquelas que não precisam de sócios para sua abertura -, poderão pleitear concessões de rádio e TV. A lei nº 14.812 também aumenta de dez para 20 o limite de concessões de TV (estações radiodifusoras de som e imagem) para cada empresa ou organização social privada. O limite estabelecido anteriormente era de dez concessões, sendo cinco em VHF e duas por estado.

“Isso significa que conglomerados como a Rede Globo, que atualmente possui cinco concessões em VHF (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belo Horizonte, Brasília), poderão expandir seu negócio até o limite de 20 concessões. É quase uma por estado da federação”, explica Ana Claudia Mielke em artigo.

Uma mídia altamente concentrada torna-se refém dos interesses econômicos e dos ditames ideológicos dos seus poucos donos, que, conjunturalmente, podem ou não coincidir com os interesses democráticos, conforme a história recente tem nos mostrado. Desde a ditadura, episódios como as jornadas de junho de 2013, o golpe que retirou da Presidência Dilma Rousseff, a Reforma da Previdência de Jair Bolsonaro e, mais recentemente, os atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023 demonstram que a mídia comercial navega seus posicionamentos político-ideológicos a partir de interesses próprios e que, comumente, se interpõem ao interesse público e à própria democracia. Muitas vezes, inclusive, são abertamente inconstitucionais, como no caso da Jovem Pan.

Com menos recursos e sofisticação que a Globo, mas com considerável influência entre os bolsonaristas, a emissora levantou suspeitas, sem provas e sem base técnica, sobre o resultado das urnas nas eleições de 2022. Nenhum caso de fraude foi comprovado, mas mesmo assim a Jovem Pan continuou a insuflar parte da população e incentivou um golpe de estado após a posse do presidente Lula.

Em resposta a isso, o Ministério Público Federal abriu Ação Civil Pública contra a emissora. Na ação, o MPF propõe que a União tome medidas em relação a tais violações, indicando três sanções a serem cumpridas com base na legislação em vigor: direito de resposta, multa onerosa e cassação da concessão. Num posicionamento de lamentável recuo, a Advocacia-Geral da União contemporizou a investida pela responsabilização da emissora e não aderiu ao pedido de cassação, dificultando ainda mais o debate sobre sanções à radiodifusão.

O recuo parece ser uma estratégia bastante utilizada pelo governo Lula. Quanto custa não entrar em atrito?

La alegria ya viene?

No Museu da Memória e dos Direitos Humanos chileno há uma ala das exposições que dá conta da relação perniciosa dos meios de comunicação e veículos de imprensa comercial com o regime de Pinochet, ressaltando que o alinhamento de setores da mídia foi fundamental para a permanência do ditador no poder. No mesmo museu, está documentada e aberta ao público uma ala destinada ao papel da imprensa popular e livre e de alguns veículos comerciais, na luta pelo fim do regime ditatorial cujo marco foi um plebiscito no qual o povo chileno votou contra Pinochet. A campanha do “No” teve como jingle-tema a canção Chile, la alegria ya viene.

Em terras brasileiras, infelizmente, parece que estamos longe de prestar contas com as milhares de vítimas desse momento histórico. Delegar às instituições, às empresas privadas, à mídia e aos militares as devidas e justas responsabilidades; prestar o devido reconhecimento à memória de crianças, homens e mulheres sequestrados, torturados e mortos e avançar em medidas de reparação e justiça são condições primordiais para a consolidação e o fortalecimento da democracia brasileira.

Sem prestar contas com a memória seguiremos navegando em águas turvas, à mercê de alianças por ocasião e interesses escusos de setores empresariais (inclusive da mídia) e de forças autoritárias e antidemocráticas, dentro e fora das instituições militares. Sessenta anos depois do golpe de 1964, quem quebrará o silêncio da mídia comercial e das demais instituições público-privadas que se beneficiaram do regime militar?

Segundo Mércia Albuquerque, advogada nordestina de presos políticos vítimas da ditadura militar de 1964, seremos “vivos mortos” enquanto não entrarmos em atrito com quem seja necessário para prestar contas desse período histórico. Nos resta avançar.

“Não sei se pare, não sei se recue, não sei se avance. Parar é deixar a luta, é covardia. Covardia maior, é recuar. O que me resta então a fazer? É avançar. Avançar pode trazer a morte, matar o que importa se certa estou eu da minha luta? Lutar e morrer, lutar é viver, viver é lutar. Muitas vezes é melhor morrer do que viver. Conheço mortos vivos e vivos mortos. Serei morta-viva, não serei viva morta. Estou presente com meus amigos ausentes, em lembranças ternas, que ressuscitarão.”

*Iara Moura, Pedro Vilaça, Mônica Mourão e Tonho Biondi são ativistas e integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

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