Intervozes

Rádios religiosas promovem ‘tratamento precoce’ e se opõem ao lockdown

Pesquisa do Intervozes mostra a desordem informativa que assola o Brasil, que já perdeu mais de 300 mil vidas para a pandemia

O pastor Elizeu Lima, da Rádio Paz, em vídeo em prol do atendimento precoce (Foto: Reprodução)
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por Olívia Bandeira, Alex Hercog, Iury Batistta e Réia Sílvia Pereira

Na manhã do dia 23 de março de 2021, os apresentadores do Jornal da Paz, transmitido pela rádio Paz FM de Goiânia, abriram o programa tecendo críticas aos governadores que haviam decretado lockdown. A locutora os classificou, ironicamente de “vice-Deus”.

Naquele dia, o Brasil atingia pela primeira vez desde o início da pandemia a marca de mais de 3 mil mortes diárias. O País se aproximava da triste marca de 300 mil vidas perdidas para a Covid-19 e com hospitais à beira do colapso. Em Goiás, naquela data, a taxa de ocupação de leitos de UTI na rede pública estadual estava em 98%.

Mais adiante, o apresentador disse que o Chile estaria apresentando manifestações populares contra o lockdown e que o país andino “a exemplo do Brasil”, era “um dos países que mais vacinam no mundo”. A afirmativa tem base na tese de que o Brasil é o quinto país que mais vacinou no mundo, recorrente no discurso bolsonarista. Naquela noite de 23 de março, aliás, o presidente a repetiria em cadeia nacional de TV.

Trata-se de uma meia verdade: essa posição diz respeito à vacinação em números absolutos. O total de pessoas vacinadas no País (com pelo menos a primeira dose) é de pouco mais de 18,8 milhões, o que equivale a 11,7% da população brasileira.

Naquele 23 de março, o Brasil ocupava a 73ª posição entre os países que já aplicaram vacinas por mil habitantes.

No dia seguinte ao pronunciamento do presidente, os radialistas reforçaram que o lockdown era ineficiente. E mais ainda: provocaria no jovem a sensação de estar em férias, estimulando-o a promover e participar de festas e, portanto, de aglomerações. Também encorajaram o uso do “tratamento precoce” como forma de “trazer esperança às pessoas”. O locutor foi taxativo: “Aos primeiros sintomas busque uma ajuda médica e peça a esse médico o tratamento precoce, não fique esperando”.

Segundo ele, o tratamento precoce não cura o coronavírus, mas fortalece o sistema imunológico, diminuindo o risco de complicações. Para reforçar seu argumento, ofereceu um testemunho: na noite anterior, uma prima sua havia falecido por conta da Covid-19 e supostamente não havia se submetido ao uso do “kit covid”.

Em dezembro de 2020, a rádio já havia apoiado a campanha #NãoEspere, lançada pelo Ministério da Saúde e que orientava as pessoas com sintomas de Covid-19 a solicitar “tratamento precoce”. Em suas redes sociais, a rádio compartilhou material informativo da campanha, além de ter publicado um vídeo em que o loutor Pastor Elizeu Lima reforçava a campanha.

A Rádio Paz FM, de propriedade da Assembleia de Deus de Goiânia e do seu líder, o bispo Oídes José do Carmo, cobre a pandemia de maneira muito semelhante a outras rádios evangélicas do País.

No dia 18 de março, no programa Disque M, da rádio Melodia FM do Rio de Janeiro, o apresentador defendeu o uso da vacina, mas atribuiu à demanda internacional a baixa quantidade de doses disponíveis no Brasil. Esse discurso se alinha com o do presidente, que nega as acusações de que teria boicotado ou negligenciado a compra de vacinas em 2020. De modo geral, as rádios religiosas assumiram um discurso em prol da vacina após meses de desconfiança e ataques.

A cobertura radiofônica reforça aquilo que estamos chamando de “teia da desinformação”, que contribuiu para a desordem informativa brasileira e dificulta a contenção da pandemia. O discurso de Bolsonaro é reproduzido (às vezes de forma literal, às vezes com ligeiras mudanças) por seus apoiadores em múltiplos canais de mídia, incluindo rádios, emissoras e programas de TV e sites de notícias religiosos, além de redes sociais de lideranças cristãs alinhadas ao bolsonarismo e em aplicativos como WhatsApp e Telegram.

É preciso destacar que desinformação, como definida por diversos pesquisadores e organismos multilaterais, não é sinônimo de fake news, mas sim uma estratégia para disseminar conteúdo falso, incompleto ou fora de contexto visando a um determinado fim, como mostra o estudo do Intervozes Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news. Nesse caso, percebemos que o objetivo é o reforço do governo Bolsonaro, que tem perdido cada vez mais popularidade.

O Padre Reginaldo Manzotti (Rádio Evangelizar) foi um dos convidados de Bolsonaro para a videoconferência da Páscoa de 2020, que reuniu lideranças evangélicas, católicas e um rabino na TV Brasil (Foto: Reprodução)

Religião na pandemia

O assunto pandemia é também oportunidade para pautar questões mais estritamente relacionadas ao campo religioso. A defesa da essencialidade da religião em tempos de pandemia é uma delas. Mesmo rádios que incentivam o isolamento social, enfatizam a importância da igreja e da oração para derrotar a pandemia, como a rádio Liberdade FM, de Belém do Pará, pertencente à Igreja do Evangelho Quadrangular, que tem convidado os fiéis a orar em casa, com o auxílio dos meios de comunicação, mas enfatizando que “os céus não estão em lockdown”.

A essencialidade seria baseada em um duplo argumento: de um lado, a necessidade de prestar assistência espiritual em época de doença, medo e desemprego, entre outros problemas decorrentes da pandemia; de outro, prestar assistência social para os desempregados e os famintos, como analisado por Olívia Bandeira e Brenda Carranza.

Se a cobrança pela retomada do auxílio emergencial não entrou na pauta das rádios analisadas, não faltaram estímulos para que os ouvintes contribuíssem com a oferta de donativos para a distribuição de cestas básicas, a exemplo da campanha Canaã Solidária, organizada pela rádio Canaã FM, de Fortaleza (CE).

No entanto, o alinhamento com o governo também gera situações potencialmente conflituosas para as rádios. Como veículos locais, na maior parte das vezes dependem de publicidade e de apoio do comércio local, mas também dos políticos locais. A Rádio Paz, por exemplo, ao mesmo tempo em que defende o atendimento precoce e critica o lockdown, abre espaço para a divulgação das ações do governo estadual, como na entrevista concedida por Ronaldo Caiado (DEM), em 17 de março, ao programa Ponto de Vista. Os intervalos comerciais da emissora estão repletos de peças publicitárias do governo goiano especialmente em relação aos cuidados contra o vírus.

A outra face da politização

A defesa explícita das medidas adotadas pelo governo Bolsonaro não está presente em todas as rádios cristãs analisadas. A rádio Liberdade FM, de Belém do Pará, e a rádio católica Evangelizar FM, de Curitiba, destoam ao enfatizar as ações espirituais no combate à pandemia.

Nessas rádios,  a pandemia  é enunciada como desígnio de Deus, uma “prova”  para que os cristãos arrependam-se dos pecados e voltem-se à “santidade”. Assim, a pandemia adquire uma temporalidade divina, Deus pode, a qualquer momento, cessar a doença a depender das orações. Dessa forma, o caráter biopolítico da pandemia é esmorecido. Embora ofereçam consolo e promessa de cura aos ouvintes, por meio das emotivas orações pentecostais da rádio Liberdade ou das rezas aos santos e símbolos católicos da rádio Evangelizar, as emissoras acabaram por minimizar as responsabilidades dos gestores políticos na condução da crise sanitária. 

Embora essa visão não apresente uma defesa explícita da política do governo federal, quando observada a partir do contexto mais amplo, ganha contornos de reforço à ideia de que Bolsonaro foi escolhido por Deus para guiar a nação. Não podemos esquecer que o Padre Reginaldo Manzotti (Rádio Evangelizar) foi um dos convidados de Bolsonaro para a videoconferência da Páscoa de 2020, que reuniu lideranças evangélicas, católicas e um rabino na programação da TV Brasil, em abril, uma semana após o primeiro jejum nacional convocado pelo presidente, quando o Brasil contabilizava mais de 5.000 mortos. Por sua vez, a Rádio Liberdade FM participou do chamado para o dia de jejum e oração convocado por Bolsonaro para o dia 29 de março de 2021, novamente no período da Páscoa, segundo ele, “para mudar o destino da Nação”.

Na semana em que a pandemia se agravou no Brasil, pudemos observar  a capilaridade e o peso das mensagens do governo federal ao acompanhar a programação de rádios religiosas de diferentes regiões do país. A defesa de tratamentos desaconselhados pelos organismos internacionais e nacionais da saúde, as críticas ao lockdown, a minimização da gravidade da pandemia e a desresponsabilização do governo federal pela gestão da crise são alguns dos aspectos da desordem informativa que acompanha a pandemia.

No período de 17 a 24 de março de 2021, foram analisados programas jornalísticos de 5 rádios religiosas: as evangélicas Rádio Canaã FM (Ceará), Rádio Paz FM (Goiás), Rádio Liberdade FM (Pará) e Rádio Melodia FM (Rio de Janeiro), e a católica Rádio Evangelizar FM (Paraná), selecionadas a partir da audiência em suas regiões. A análise faz parte da pesquisa Igrejas cristãs, mídia religiosa e o gerenciamento da Covid-19 no Brasil, que analisa também programas de TV religiosos, portais de notícias e redes sociais de lideranças religiosas cristãs do período de outubro de 2020 a março de 2021. 

Os autores integram a equipe da pesquisa Christian churches, religious media, and the management of Covid-19 in Brazil. Esta pesquisa recebeu o auxílio do Social Science Research Council’s Rapid-Response Grants on Covid-19 and the Social Sciences, com fundos fornecidos por SSRC, Henry Luce Foundation, William and Flora Hewlett Foundation, Wenner-Gren Foundation, e MacArthur Foundation.

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