Intervozes

Por uma mídia aliada das mulheres

Com a justificativa de ‘imparcialidade’, empresas de comunicação concedem espaço e apoiam agressores de mulheres

Foto: Reprodução
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Parece que o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pela empresa de comunicação Arapuan com o Ministério Público Federal (MPF) em 2018, em virtude das violações aos direitos das mulheres causadas pelo então apresentador Sikêra Júnior, não motivou mudanças na linha editorial da emissora.

Na última semana, outro programa policialesco da emissora, o Rota da Notícia, cedeu espaço em horário nobre ao médico João Paulo Casado para que ele justificasse o porquê de ter agredido a sua esposa em um elevador do prédio onde moravam, na frente do filho. As agressões à mulher aconteceram em 2022 e foram divulgadas, em primeira mão, pelo site feminista Paraíba Feminina. O vídeo mostra o médico puxando várias vezes o cabelo da mulher e empurrando-a. Uma criança assiste à cena de violência.

Logo após ser publicado pelo Paraíba Feminina, o vídeo começou a ter uma ampla repercussão, motivando ações imediatas por parte da prefeitura de João Pessoa e do governo da Paraíba, que exoneraram o médico de suas funções. O médico também atua no Corpo de Bombeiros do estado, que irá abrir procedimento interno para apurar a conduta do servidor. O Conselho Regional de Medicina anunciou que vai realizar uma sindicância para apurar o comportamento do médico.

A fala do médico foi anunciada como “exclusiva” pelo programa policialesco e o tom parecia ser de apoio ao acusado. O caso é apenas um exemplo das diversas violações de direitos humanos cometidas ou amparadas por esse tipo de programa. Cabe, portanto, a pergunta: qual é o papel da mídia na cobertura e na divulgação de casos de violência contra as mulheres?


Espaço para agressores é recorrente

Já havia escrito um artigo para o blog do Observatório Paraibano de Jornalismo, em 2021, trazendo pontos importantes para contribuir com este debate e tocar em questões fundamentais para que possamos construir uma mídia que coloque em prática a sua responsabilidade social, aliando-se às mulheres no combate às violências. No entanto, o que muitas vezes vemos acontecer é o apoio da mídia aos agressores, oferecendo espaço para que se justifiquem – não há justificativa para violência contra a mulher, – vitimizando-se e colocando-as como as culpadas pela violência que sofreram.

Em minha dissertação de mestrado, constatei que esta é uma prática recorrente nos programas policialescos na TV. Além do Rota da Notícia, outro programa que também se utiliza desta prática é o Cidade Alerta, da Record TV. Em 2021, eles divulgaram uma reportagem em que culpabilizam uma mulher morta pelo companheiro. De acordo com familiares da vítima, a reconstituição feita pela equipe do programa mostrava que ela era “desfrutável” e “mereceu ser morta”, pois estaria traindo o marido. A emissora foi condenada na primeira e na segunda instâncias pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

As supostas traições são usadas pelos agressores de mulheres como justificativa para a prática da violência, principalmente do feminicídio. O então apresentador do programa Correio Verdade, outro policialesco exibido pela afiliada à Record TV na Paraíba, Samuka Duarte, ao comentar o feminicídio de Pamela Bessa, insinuou que ela traía o marido e por isso foi assassinada. Também escrevi um artigo sobre este caso, que foi publicado no X Curta o Gênero.

O Alerta Nacional, programa apresentado por Sikêra Junior na emissora amazonense A Crítica e retransmitido pela RedeTV! para todo o Brasil, é outro exemplo analisado na pesquisa. O policialesco não está mais no ar, após diversos protestos de organizações e movimentos sociais, como Intervozes, Sleeping Giants e movimentos feministas. Além de violações de direitos, o programa recorre à prática sistemática de desinformação sobre violência contra as mulheres para angariar audiência. A pesquisa foi publicada em livro, A desinformação e a violação aos direitos humanos das mulheres: um estudo de caso do programa Alerta Nacional, da editora Arribaçã e Selo Anayde Beiriz.


Que se cumpra a lei

Além do caso envolvendo Sikêra Júnior, a Arapuan tem respondido no Ministério Público Federal na Paraíba a denúncias de telespectadoras/es sobre a exibição de outros conteúdos que violam direitos humanos. As mais recentes dizem respeito aos direitos de crianças. Em março de 2023, em outro policialesco de responsabilidade da Arapuan, Tribuna Livre, foi veiculada a entrevista com a mãe de uma criança, vítima de abuso. O Código de Ética do Jornalista, bem como o Estatuto da Criança e Adolescente, afirmam que não deve ser exibido na mídia qualquer conteúdo que identifique crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Em 2022, a jornalista Tatyana Valéria representou contra a emissora no MPF por falta de ética e abuso de sensacionalismo ao divulgar informações sobre o assassinato da menina Júlia, no policialesco Cidade em Ação, o mesmo que era apresentado por Sikêra Júnior e agora tem como âncora Samuka Duarte.

No Brasil, a concessão de emissoras de TV tem duração de 15 anos. Para ser renovada, é preciso que cumpram a legislação que prevê regras para o conteúdo e o funcionamento. Ou seja, há no País regulação dos meios de comunicação. A questão é averiguar se a concessão da Arapuan está cumprindo estas leis, pois violações de diversos tipos são registradas quase diariamente no Ministério Público contra a emissora.

Importante também chamar a atenção do governo da Paraíba e da prefeitura de João Pessoa para rever a destinação de verbas públicas a emissoras que violam direitos humanos. Não é possível que dinheiro público financie programas que não respeitam direitos humanos, a legislação brasileira sobre a comunicação, nem prezam pela ética jornalística, tendo como único intuito a busca por lucro em detrimento do jornalismo ético e responsável e da vida das mulheres.


Por uma mídia que resguarde direitos

A secretária da Mulher e da Diversidade Humana da Paraíba, Lídia Moura, observou que a divulgação da entrevista do médico pela Arapuan é uma estratégia da defesa do acusado para buscar respaldo na sociedade e transformá-lo em vítima. A estratégia pode ser usada, inclusive, para evitar uma possível prisão pela flagrante violência, dando a entender que ele reconhece “o erro e estaria arrependido do que fez”. Além do vídeo do elevador, gravado por câmeras de segurança, foram publicizadas outras imagens do médico, provocando uma nova violência contra a esposa, desta vez dentro do carro.

É nítida a prática da violência doméstica por parte dele contra a esposa. Então, por que a Arapuan concedeu espaço para ele? Por que a emissora não entrevistou a delegada que está investigando a violência? Por que o nome da vítima não foi preservado pela imprensa? Por que a Arapuan não mostrou para outras mulheres meios de evitar a violência de gênero e onde buscar ajuda na Paraíba, se forem vítimas? Por que a Arapuan não faz reportagens e entrevistas com mulheres que pesquisam sobre as causas da violência contra as mulheres, contribuindo para o fim deste tipo de crime? A secretária Lídia Moura fez contato com os veículos de comunicação e com jornalistas que publicaram em suas redes sociais o vídeo do médico “pedindo desculpas” e o nome completo da vítima. A secretária solicitou aos meios de comunicação e aos jornalistas que repensem suas condutas e tenham cuidado ao divulgar casos de violência contra as mulheres.

A Arapuan pode alegar, assim como outros jornalistas que divulgaram o vídeo de “desculpas” do médico em suas redes sociais, que é papel do jornalismo “ouvir os dois lados da história”. Esse argumento de imparcialidade é um mito, pois sabemos que as empresas de comunicação possuem diretrizes claras sobre a escolha de publicar algo, de ouvir esta pessoa e não aquela. Silenciamentos, censuras e boicotes fazem parte da mídia brasileira. Há interesses políticos e econômicos por trás da publicação ou não de determinada matéria. Nas redes sociais, a publicação do vídeo do médico pode gerar likes e engajamento para a/o jornalista, mesmo que os comentários sejam condenando a sua posição.

O dossiê Feminicídio, do Instituto Patrícia Galvão, traz reflexões importantes sobre o poder da mídia e sua função social ao cobrir casos de violência contra as mulheres. Ele revela que na maioria dos casos há uma estereotipação da situação, um tratamento sensacionalista, espetacularizado e com viés policial dos fatos. Como já mencionado anteriormente, há um movimento por parte de meios de comunicação de culpabilizar a vítima, encorajando-a a retirar a denúncia e perdoar o agressor. Será que foi isso o que o Rota de Notícia pretendeu fazer com a entrevista de João Casado? Não é possível afirmar, mas, dado o cenário exposto até aqui, não seria nenhuma surpresa se assim fosse.

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