Intervozes

Por que somos a favor da constitucionalidade do artigo 19?

Tema de audiência no STF, o artigo é central para garantias democráticas na Internet, mas essa só é a ponta do iceberg

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

A regulação das plataformas digitais está na ordem do dia. Nas últimas semanas, a discussão sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI) ganhou centralidade no debate, isso porque o Supremo Tribunal Federal realiza, nesta terça (28) e quarta-feira (29), audiência pública para definir se o artigo é constitucional. Utilizado pelas big techs como argumento para não moderar conteúdos nocivos e ilegais que circulam pelas suas plataformas, o artigo 19 é um dispositivo que defende a liberdade de expressão na internet e impede a censura arbitrária e privada. Em um cenário onde empresas transnacionais possuem o poder de modular o debate público de forma nunca antes vista, o artigo 19 torna-se imprescindível para a garantia da liberdade de expressão e da livre manifestação de pensamento, expressos na Constituição Federal. 

Como breve lembrança, o Marco Civil da Internet (MCI), que fará uma década de existência no próximo ano, foi amplamente discutido na sociedade, de forma multissetorial e democrática, baseando-se no Decálogo de Princípios de Governança da Internet, editado em 2009, pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, e pretendia dar conta do espaço digital. O MCI é referência mundial por esses dois feitos.

Vale também destacar que somente nas últimas eleições brasileiras, as plataformas lucraram mais de R$ 300 milhões com impulsionamentos pagos por candidatos, em grande parte com recursos públicos do Fundo Eleitoral. Estamos falando de um modelo de negócios bastante lucrativo. E como toda empresa, as plataformas digitais também possuem sua forma de atuação no mercado, seus termos de uso e suas políticas de privacidade. Nelas, curiosamente, afirmam que enfrentam o discurso de ódio, o conteúdo anticientífico e a desinformação. Elas dizem que fazem isso de maneira espontânea, mas o que vemos é que impera a falta de transparência e arbitrariedades chocantes que permitem que conteúdos inequivocamente ilegais sejam mantidos em circulação.

Não foi o artigo 19 que impediu o Brexit, a invasão do Capitólio nem as desastrosas eleições indianas com enxurradas de desinformação. Ou seja, não é o Marco Civil da Internet, nem o Artigo 19, que impedem uma atuação ética, legal e democrática das plataformas.  Em diversos países do mundo, que foram assolados pelas consequências da pandemia provocada pelo vírus da Covid-19, também não havia a tal letra da lei. Tampouco as plataformas digitais agiram de forma espontânea para atuar contra informações anticientíficas que contribuíram para o número de mortes nunca antes visto. 

Essa argumentação por si só já parece o suficiente para dizer que não há no Marco Civil um impeditivo de atuação das plataformas para moderar conteúdos. Apesar de não sabermos como essa moderação é feita pela falta de transparência ativa, as plataformas moderam e recomendam conteúdo a seu bel prazer. E sabemos que o algoritmo privilegia os extremismos, as bolhas de informação e opinião e se alimenta do discurso de ódio e a da desinformação. E não o contrário. É justamente por isso que somos a favor da responsabilização das plataformas digitais, inclusive da responsabilização direta em casos de conteúdos inequivocamente ilegais. 

O que defendemos, vai além do risco de dar amplos poderes pras plataformas regularem conteúdos. As plataformas devem ser responsabilizadas por seu modelo de negócios porque controlam o fluxo das informações, e devem sofrer as consequências quando permitem que conteúdos ilegais estejam circulando. As big techs podem e devem ser responsabilizadas tomando como base os diversos dispositivos legais brasileiros, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Penal, a Lei Eleitoral, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, entre outros.

Em outras palavras, a defesa do artigo 19 não significa isentar as plataformas de responsabilidade, mas garantir o direito à liberdade de expressão de seus usuários. E queremos ir além, a partir de instrumentos legais já existentes. Ao que parece, há uma complacência sem precedentes na atuação das plataformas. 

Liberdade de expressão na internet

Em 2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou a ação movida pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e condenou a Alphabet Inc., proprietária do Google e do YouTube, por “autêntica censura prévia” ao remover indevidamente vídeos do canal do Coletivo na plataforma de vídeos. O Intervozes venceu o caso baseando-se no artigo 19, com a defesa da liberdade de expressão, e a empresa foi condenada a pagar uma indenização de 50 mil reais. Apesar da soma irrisória se comparada aos lucros da Google, a decisão é um marco importante.

Os conteúdos, que foram removidos sem prévio aviso, faziam parte de uma série de vídeos que apontavam, denunciavam e explicavam abusos cometidos contra direitos humanos por emissoras de televisão. A justificativa do Google para a remoção foi a aplicação do mecanismo denominado de Content ID, que é baseado em um sistema que atende aos interesses e aos contratos comerciais firmados entre a big techs e titulares de propriedade intelectual. 

Ora, se para as plataformas é possível criar mecanismos que identifiquem instantaneamente se um conteúdo é ou não protegido por direitos autorais, por que a mesma lógica não pode ser aplicada a conteúdos onde não há dúvidas sobre a ilegalidade? É uma conta que não fecha.

Aumentar a transparência, diminuir poderes

Os olhares estão voltados para a moderação de conteúdos, mas a centralidade da discussão sobre regulação de plataformas deveria estar também no aumento da transparência das práticas comerciais. É necessário que conheçamos como Meta, Google e outras usam nossos dados, moderam conteúdo, de que maneira recomendam e quais critérios usam para reduzir o alcance de posts ou removê-los, como avaliam os filtros dos anúncios, a suspensão e o cancelamento de contas,  além da transparência sobre os impulsionamentos. Não sabemos nada disso hoje. 

Ao  discutir  o artigo 19 da forma atual, centralizamos a discussão no conteúdo do usuário, mas nosso olhar deve ir além: precisamos olhar para o modelo de negócios, que envolve a captura massiva de dados pessoais e uma imensa operação comandada por algoritmos opacos, que é extremamente lucrativa.

A alteração do artigo 19 permitirá que conteúdos sejam derrubados por simples notificação, conferindo às plataformas o papel de decidir o que deve ou não ser mantido no ar, de forma unilateral. configurando censura privada e dando ainda mais poderes às gigantes techs. Mesmo com o arcabouço legal brasileiro e de outros países, além de suas próprias políticas, essas empresas não estão preocupadas com os conteúdos que circulam por suas plataformas e sim se tais conteúdos estão se convertendo em lucro ou não.

Moderação de conteúdos privada, sem critérios e sem transparência, é censura. Não podemos deixar que o debate público seja controlado por megaempresas que desrespeitam a legislação nacional sob o argumento de serem transnacionais. Mas essa é só a ponta do iceberg. Enquanto não enfrentarmos seriamente o modelo de negócios das plataformas digitais e colocarmos na mesa uma regulação antimonopólios, seguiremos reféns de Zuckerberg e companhia.

A seguir listamos pontos de defesa do Artigo 19 feito pela advogada, especialista em direitos digitais Flávia Lefèvre para a solicitação de participação, representando o Intervozes, na audiência pública sobre o Marco Civil no STF. A solicitação foi negada.

  • É um instrumento fundamental para dar efetividade, dentro do ecossistema da Internet, ao direito fundamental expresso no art. 5º, incs. IV e IX, bem como no art. 220, da Constituição Federal, que garantem a livre manifestação do pensamento e impedem a censura.
  • É reflexo de consenso internacional sobre governança da Internet, como um dos pilares essenciais de manutenção da Internet como recurso aberto e democrático, livre das interferências do poder econômico vultoso das chamadas BigTechs; consenso este internalizado por meio do Decálogo de Princípios da Governança da Internet no Brasil, editado em 2009 pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil e incorporado pelo Marco Civil.
  • Defendemos a regulação das plataformas, mas alertamos que tem faltado enforcement por parte dos Poderes Públicos competentes para aplicar as leis brasileiras já existentes sobre as práticas algorítmicas adotadas para o funcionamento das plataformas e responsabiliza-las por danos individuais, coletivos e difusos, que têm resultado dos critérios adotados para moderação de conteúdos, com violações a direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, Código Civil, Código Penal, Lei Eleitoral, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e Adolescente, entre tantas outras.
  • Destacamos que o art. 3º, do próprio Marco Civil da Internet, no inc. VI, estabelece como princípio a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei. Ou seja, o certo é que o Marco Civil deixa claro que há um regime de responsabilidade quanto a conteúdos postados pelos usuários e outro quando se trata das atividades comerciais decorrentes de atos próprios das plataformas.
  • De acordo com próprio STJ, a relação que se estabelece entre plataformas e seus usuários é de consumo, portanto, as empresas estão sujeitas às obrigações de segurança, nos termos do CDC, sob pena de responderem sob o regime de responsabilidade objetiva; e que estas obrigações devem ser interpretadas sistematicamente com a lei consumerista, tendo em vista as seguintes camadas de segurança para proteção da sua operação, que estão aderentes às disposições do CDC: Segurança física, com a finalidade de proteger itens físicos, objetos ou áreas de acesso não autorizado e usos diversos; Segurança pessoal, a fim de proteger os indivíduos ou grupo de indivíduos que compõem a operação; Segurança de operações, para proteger os detalhes de uma operação específica ou de uma série de atividades; Segurança de comunicações, como mídia, tecnologia e conteúdo; Segurança de rede, para proteger componentes de rede, conexões e conteúdo; Segurança de informação, para proteger confidencialidade, integridade e disponibilidade de fontes de informação, no processo de guarda, processamento ou transmissão. 
  • Defendemos, então, que o regime de responsabilidade do Marco Civil decorre de interpretação sistemática contemplando o art. 19, do MCI, junto com o CDC e Código Civil, levando ainda em conta os critérios propostos pelo Decreto nº 9.637, de 26 de dezembro de 2018, que institui a Política Nacional de Segurança da Informação, que estabelece no art. 2º, que a segurança da informação, para os fins desta norma, inclui a segurança cibernética, a defesa cibernética, a segurança física e a proteção de dados organizacionais e as ações destinadas a assegurar a disponibilidade, a integridade, a confidencialidade e autenticidade da informação.
  • Por fim, somos a favor de regular as plataformas. Entretanto, alterar o art. 19, do MCI não será suficiente para enfrentar os efeitos deletérios da desinformação e discursos de ódio nas redes. Para regular as plataformas, temos de aprovar uma lei específica que aprofunde as obrigações de transparência, rotulagem e de devido processo legal, na linha do que já vem sendo discutido no PL 2630/2020.

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