Intervozes

No Congresso, Comissão de Comunicação periga virar balcão de negócios

Políticos radiodifusores, apresentadores de policialescos e fundamentalistas religiosos lideram o colegiado

O presidente da Comissão, deputado Amaro Neto, e a deputada Júlia Zanatta. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
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Nesta quarta-feira 22, a recém criada Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados deve se reunir pela segunda vez. Na pauta, requerimentos como o de convocar uma audiência contra uma suposta institucionalização da “censura” nas redes sociais e escrutínio ao plano da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) no que diz respeito às políticas sobre liberdade de imprensa e de expressão. O que deveria estar ao menos nas letras miúdas da agenda pública é que, conforme esperado e plantado, a Comissão deverá funcionar como sala de engavetamento de propostas de regulação das plataformas digitais. Resta saber se todas elas, inclusive as iniciativas democráticas e amparadas nos parâmetros internacionais de direitos humanos. 

A Comunicação era agenda da antiga Comissão de Ciência, Comunicação, Tecnologia e Inovação (agora com um “c” a menos na sigla) e, em fevereiro deste ano, a nova legislatura aprovou a criação de comissão temática própria. De imediato, deputados da base bolsonarista, radiodifusores e expoentes da bancada fundamentalista apressaram-se em compor o colegiado. Segundo apurou o Metrópoles,  “os bolsonaristas foram orientados a entrar na comissão por um advogado que faz relações governamentais para as big techs”. Já nasce, assim, comprometida umbilicalmente com os interesses da Meta, Twitter e Google, empresas que, publicamente, adoram se autorreferenciar como amigas da democracia e das liberdades, mas que não tardam a aliar-se com setores antidemocráticos para defender interesses próprios. O preço de certas alianças, sabemos, é alto, mas, neste caso, quem paga a conta somos nós. 

Raposas no galinheiro

Chama atenção logo de cara o fato do presidente, Amaro Neto (Republicanos-ES), ter conquistado notoriedade como apresentador de programas policialescos no Espírito Santo. Desde 2009, o deputado divide a rotina legislativa com a bancada do programa Balanço Geral ES, na TV Vitória, afiliada da Record TV, no qual não perde a oportunidade de julgar antecipadamente suspeitos, desrespeitando o princípio da presunção de inocência. A exposição indevida de crianças e adolescentes e o desrespeito às leis e tratados que o Brasil é signatário é outra tônica dos programas.

Integram ainda o colegiado os bolsonaristas Bibo Nunes (PL- RS), Filipe Barros (PL-PR) e Mario Frias (PL-SP). Lideranças da bancada evangélica também têm lugar garantido, como Cezinha de Madureira (PSD-SP), Silas Câmara (Republicanos-AM) e os filhos do pastor R.R. Soares – radiodifusor e dono da RIT TV – David Soares (União Brasil-SP) e Marcos Soares (União Brasil-RJ). Na recém-criada Comissão, ainda figura a deputada Júlia Zanatta (PL – SC) que, há poucos dias, postou em suas redes sociais uma foto segurando uma metralhadora e vestindo uma camiseta com a imagem de uma mão com quatro dedos (em alusão ao presidente Lula) perfurada por três tiros. 

Os partidos com maior número na comissão são União Brasil e Partido Liberal, com cinco representantes cada. Dos 26 membros, apenas quatro deputados são de siglas de esquerda: André Figueiredo (PDT-CE), Carol Dartora (PT-PR), Gervásio Maia (PSB-PB) e Luiza Erundina (PSOL-SP).

Além de Amaro Neto, outro parlamentar ganhou notoriedade em programa policialesco: Fred Linhares, do Republicanos, é cara conhecida do Cidade Alerta DF e Na Polícia e nas Ruas, exibidos na Record TV DF e na Rádio Atividade. 

Na mesma toada, outros dois integrantes da comissão são concessionários/proprietários ou sócios majoritários de emissoras de rádio. Segundo dados do levantamento do Intervozes realizado nas últimas eleições, Silas Câmara (Republicanos/AM) é dono da Rede Boas Novas e Domingos Neto (PSD/CE) da FM Rio Jaguaribe. Domingos Neto é filho do ex-vice-governador cearense Domingos Filho e da ex-prefeita de Tauá, Patrícia Aguiar.

Silas Câmara também é de um clã de extensa carreira política. O parlamentar está no seu sexto mandato e é um dos expoentes da família que construiu um verdadeiro império na intersecção entre o neopentecostalismo, mídia, educação privada e a política. Samuel Câmara, irmão do deputado, é fundador e líder da Convenção da Assembleia de Deus no Brasil (CADB), que reúne 20 mil pastores Brasil afora. Além disso, é proprietário da rede de televisão e rádio Boas Novas, presente em 23 estados.

Segundo lembrou reportagem especial da Gênero e Número, na campanha de 2010, investigações da Polícia Federal mostraram que o deputado federal Silas Câmara teria captado votos entre eleitores que participavam de cursos promovidos pela Fundação Boas Novas, mantenedora da Rede Boas Novas e comandada pelo seu irmão Jonatas. A rede de televisão destaca-se pela produção e difusão de conteúdos desinformativos sobre direitos humanos, espalhando terror sobre pautas morais em produções multiplataformas que engajam milhares de seguidores/ouvintes/telespectadores e monetizam vultuosos lucros. 

Conflito de interesses

Para além da filiação partidária-ideológica hegemonizada por agremiações da direita e religiosa-fundamentalista, preocupa que as medidas legislativas relacionadas às comunicações, tanto na radiodifusão quanto no meio digital, estejam sob responsabilidade de parlamentares com inconteste conflito de interesse com a agenda.  São estes, via Comissão de Comunicação, que deverão deliberar, por exemplo, sobre a produção e programação das emissoras de rádio e televisão e também sobre a outorga e renovação da exploração de serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. 

Ainda não se sabe na prática como vai funcionar exatamente a divisão temática com a Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação (CCTCI) que abrigava a agenda de comunicação. Mas, de certo, a proposta de compartimentalizar favoreceu uma conformação de forças – tanto lá quanto cá – pouco animadora quanto à expectativa de tratar de temas como inteligência artificial, digitalização, regulação de plataformas e da radiodifusão, comunicação popular e comunitária, entre outros, a partir de uma perspectiva democrática e de respeito aos direitos humanos.

Os desafios regulatórios do complexo sistema de comunicação brasileiro, incluindo aqueles que o cenário de convergência midiática impõe, parecem encontrar mais um impasse histórico no “novo” parlamento. Os atores e até a Comissão podem mudar de nome, mas são novamente os interesses privados que ditam a toada e prevalecem sobre o direito à comunicação. No Congresso, assim como no Ministério, a comunicação segue sendo moeda de troca e balcão de negócios. A aposta é alta, mas o negócio é rentável.

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