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Mídia sobe o tom contra atos golpistas, após anos de tolerância

À exceção da Jovem Pan, grupos de mídia se posicionaram contra os violentos ataques à democracia

Imagem: Fábio Rodrigues-Pozzebom - Agência Brasil
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“Fascismo não se debate, fascismo se destrói”. Permitam-nos complementar a frase de Buena Ventura Durruti: “fascismo não se debate, fascismo se destrói ou por ele será destruído”. As cenas da invasão e depredação dos prédios símbolos dos três poderes da República, ocorrida no domingo 8, não deixam dúvidas sobre o potencial de aniquilação do fascismo brasileiro e a urgência de enfrentá-lo. O ovo da serpente eclodiu e atingiu o seu ápice (até agora) com a conivência do braço armado do Estado e o financiamento de setores empresariais, principalmente do agronegócio. E como a mídia se comportou diante disso?

A mídia tradicional foi, durante anos, conivente com a escalada do fascimo no Brasil. O editorial do Estadão em 2018, “Uma escolha muito difícil”, é exemplar nesse sentido. Tratar em pé de igualdade um projeto fascista e um projeto democrático já nos dava indícios do que veríamos nos anos seguintes. Nem as recorrentes ameaças ao trabalho da imprensa foram capazes de frear a mansidão da mídia comercial com a ascensão do fascismo.

Os atos ocorridos no último domingo não podem ser vistos como “surpresa”. Há meses a tragédia era anunciada abertamente em redes sociais e serviços de mensageria. A própria mídia já havia aventado a possibilidade das imagens que vimos na invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, se repetirem no Brasil caso o ex-presidente Jair Bolsonaro perdesse as eleições. Estávamos todos cientes do que poderia acontecer. Mas não contávamos com a leniência do governador Ibaneis Rocha (MDB-DF) e das forças policiais do Distrito Federal, responsáveis por garantir a segurança da Esplanada dos Ministérios. A horda de golpistas avançou sobre o coração da República sem qualquer resistência, privilégio que somente a branquitude é capaz de ter. 

Seria leviano afirmar que a mídia é a única responsável por sustentar um ambiente propício à propagação do fascismo. A família Bolsonaro e seus aliados são centrais na construção desse cenário. As plataformas digitais também têm sua parcela de responsabilidade ao permitirem a circulação desenfreada de desinformação e discurso de ódio, sem apresentar qualquer ação contundente e organizada para tratar o problema, a despeito das cobranças da sociedade civil e dos órgãos públicos. Mas isso será tema para outro artigo. 

Neste texto, analisamos a cobertura das principais emissoras de TV e veículos impressos do país, no intuito de avaliar como a mídia se posicionou diante do ataque mais violento à democracia desde o fim da ditadura civil-militar.

Jornais condenam atos e cobram punição

Na capa da edição desta segunda-feira 9, o jornal O Globo trouxe o título “Bolsonaristas radicais atacam os 3 Poderes; Lula intervém no DF”, acompanhada da imagem de destruição no Congresso Nacional que virou símbolo da cobertura impressa, produzida pela fotojornalista Gabriela Biló, presente também na capa da Folha de S.Paulo.

Em editorial, o grupo comandado pela família Marinho defendeu a intervenção na segurança pública do Distrito Federal, decretada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no domingo 8, mas ressaltou que a ação deve ser limitada ao restabelecimento da ordem. O veículo pediu “cautela” ao associar o ato fascista ao governo Bolsonaro, sob risco de ser interpretado como “vingança política”. Pontuou ainda que “a maior parte dos eleitores de Bolsonaro não se identifica com o terrorismo visto” e defendeu que democracia é o convívio com opiniões divergentes. O Globo “esquece” que fascismo não é opinião e a sua existência é incompatível com a própria democracia. Ressaltar essa diferença é importante para não cairmos em falsas simetrias. 

A Folha de S.Paulo foi mais dura. Com o título “Golpistas pró-Bolsonaro invadem o Planalto, o Supremo e o Congresso”, o jornal destacou a inação das autoridades locais no ato que promoveu a inédita destruição das sedes dos três poderes. Ainda na capa, o jornal deu espaço para as falas do presidente Lula, do ex-presidente Bolsonaro (PL), do presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL), do presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e da presidenta do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber, que condenaram os atos. 

No editorial “Punhado de idiotas”, a Folha diz que “a marcha dos idiotas será em um futuro próximo apenas um parágrafo vexatório da história do país” e cobrou punição nos limites máximos da lei. Assim como O Globo e o Estadão, o veículo afirma que “o governo deveria abster-se do proselitismo político” e finaliza com “o país tem problemas maiores a enfrentar”. Vale lembrar que a Folha tem nomeado a Proposta de Emenda Constitucional da Transição (PEC da Transição), que visa ampliar o espaço fiscal para gastos essenciais, como o Bolsa Família e reajuste do salário mínimo, de “PEC da Gastança”, demarcando o seu posicionamento contrário ao governo Lula. 

Sob o título “Ataque à democracia”, o Estadão sublinha os pedidos por intervenção militar dos fascistas, a leniência da Polícia Militar do Distrito Federal e a intervenção federal decretada pelo Executivo. Em comparação aos outros dois veículos, o Estadão deu maior destaque ao financiamento dos atos fascistas e repercutiu o pronunciamento do presidente Lula:  “Vamos descobrir quem foram os financiadores desses vândalos que foram a Brasília e pagarão com a força da lei por esse gesto”. 

No editorial “Intolerável assalto à democracia”, o Estadão, diferentemente dos demais veículos, disse expressamente que o maior responsável pelos atos é o ex-presidente Jair Bolsonaro e que o apoio de autoridades públicas, bem como das Forças Armadas, foi crucial para as cenas de violência que vimos no domingo. 

Vale notar os termos utilizados para nomear os responsáveis pelos atos criminosos. O Globo chama de “bolsonaristas radicais”, “golpistas” e “terroristas bolsonaristas”, num esforço de dividir o bolsonarismo entre “civilizados” e “radicais”. A Folha optou pelos termos “extremistas”, “turba golpista de apoiadores de Bolsonaro”, “punhado de imbecis criminosos” e “energúmenos”, em uma tentativa de ridicularizar e diminuir a importância daqueles que orquestraram um ataque à democracia. Assim como O Globo, o Estadão escolheu os termos “golpistas” e “bolsonaristas radicais”, além de “manifestantes”, “baderneiros” e “insurgentes”. 

Em comum, os três veículos fizeram referência ao ataque ao Capitólio, nos EUA, e pediram investigação rigorosa, célere e punição dos responsáveis, bem como dos seus financiadores, nos moldes do que vem acontecendo ainda hoje nos EUA. 

Na TV, mídia classifica ato como “terrorismo”

O jornalista Erick Bang repercutia a morte do jogador do Vasco Roberto Dinamite, na tarde de domingo 8, quando teve que mudar completamente o tema da cobertura da GloboNews. A emissora passou a acompanhar o ato golpista contra os três poderes. Aos poucos, outros jornalistas foram acionados, das suas casas ou do estúdio, para tentar explicar as imagens de violência que se repetiam na tela, inicialmente tiradas da internet. Posteriormente, repórteres começaram a entrar ao vivo, porém não exatamente do local onde acontecia a tentativa de golpe. À noite, o repórter Marcos Losekann fez uma cobertura usando o próprio celular, afirmando ser o primeiro jornalista a visitar o Supremo Tribunal Federal depois da depredação. A matéria foi transmitida pela GloboNews e também dentro do Fantástico, na Rede Globo. Ao vivo, os pronunciamentos de autoridades, como o ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino, que deu uma entrevista coletiva, e do próprio presidente Lula, que se posicionou sobre a tentativa de golpe e leu o texto que instituía a intervenção federal na segurança do Distrito Federal, ganharam espaço.

Desde o início, o canal por assinatura do Grupo Globo não hesitou em chamar os autores da invasão aos prédios sede dos três poderes de “golpistas” e “terroristas”, antes ainda de ser possível ter ideia do tamanho do estrago causado. De forma inédita, por volta das 17h30, a Globo interrompeu sua programação normal e passou a transmitir o mesmo conteúdo da GloboNews. Mesmo com menos tempo que o canal fechado, a ênfase foi semelhante: o foco foi dado para a destruição e violência, apontando a responsabilidade das autoridades, em especial a negligência da polícia do Governo do Distrito Federal, e mostrando a repercussão internacional do caso. A GNews também enfatizou a necessidade de se descobrir de onde vem o financiamento do golpe. Durante o programa Estúdio I da tarde desta segunda, a jornalista Miriam Leitão fez falas duras associando o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) aos fatos violentos do domingo. Segundo ela, “o país está colhendo hoje amargamente o que ele plantou durante quatro anos”. As duas emissoras também compararam os episódios de domingo com o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos.

Nesta segunda, o Jornal Hoje, da Globo, usou o letreiro “Ataque terrorista aos poderes”, muito semelhante ao usado no vídeo de abertura do Estúdio I, da GNews: “Terroristas atacam a democracia brasileira”. As imagens deste vídeo de abertura foram selecionadas para chocar o telespectador, evidenciando o absurdo da situação provocada pelos golpistas ontem. Porém, foi perceptível a tentativa de diferenciar, entre os bolsonaristas, os que podem ser considerados terroristas e golpistas. Estes passaram a ser nomeados como “minoria radical bolsonarista”, movimento percebido também na mídia impressa do Grupo Globo.

Colocar os que cometem violência como minoritários dentro de manifestações pacíficas foi a estratégia usada pela emissora quase dez anos atrás, durante as chamadas Jornadas de Junho. Agora, quase dez anos depois, apesar de acertar no espaço e no tom da cobertura, a Globo usa o termo “radical” como sinônimo de violento, além de buscar uma diferenciação entre os próprios bolsonaristas que contestam o resultado das eleições. Não seriam todos, cometendo ou não atos violentos, defensores de um golpe de Estado?

O Grupo Globo esquece também, como bem observado pela jornalista, professora e integrante do Intervozes Ana Cláudia Mielke, em sua conta no Twitter, que atos antidemocráticos que não aceitam o resultado das urnas não são novidade no país. Sem o grau de violência – de fato, inédito – que foi visto ontem, o candidato derrotado nas eleições de 2014, Aécio Neves (PSDB), seguido por outros grupos de direita, não aceitou a vitória da então presidenta Dilma Rousseff (PT), que sofreu um golpe logo em seguida. É preciso se colocar a favor da democracia também quando os atos são “pacíficos”, pois não deixa de haver neles violência institucional na defesa da ruptura democrática. 

Na noite de segunda-feira 9, o Jornal Nacional cobrou a responsabilização dos mandantes e financiadores dos atos, além de exibir a repercussão internacional dos ataques e trechos da reunião convocada pelo presidente Lula com os representantes das 27 unidades da federação, da Frente Nacional de Prefeitos e dos demais poderes da República. “Ao contrário da selvageria de ontem, Brasília testemunhou hoje uma demonstração das mais altas autoridades da República, uma demonstração em defesa da democracia”, disse a repórter Giuliana Morrone. 

Jovem Pan e Record isentam Bolsonaro

A Jovem Pan, que sempre esteve alinhada à ideologia da família Bolsonaro, defendeu os atos golpistas. Durante seis horas, a emissora deu espaço para comentaristas como Alexandre Garcia, coronel Gerson Gomes e Paulo Figueiredo, estes últimos residentes nos Estados Unidos. Paulo Figueiredo é neto do último presidente da ditadura civil-militar brasileira, João Baptista de Figueiredo, e tem usado as suas redes sociais para insuflar um golpe de Estado no Brasil.

O vídeo da Jovem Pan, publicado no YouTube, teve mais de três mil visualizações. A todo o momento, os comentaristas chamam os golpistas de “manifestantes” e tentam afastar a responsabilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em relação aos ataques praticados por seus seguidores. 

Paulo Figueiredo seguiu divulgando teses falsas em relação às urnas e defendeu que as pessoas que invadiram a Praça dos Três Poderes são “patriotas que não aceitam o resultado das eleições.” A repórter Berenice Leite acompanhou de perto os protestos, fazendo a transmissão para o plantão da JP. Ela também endossou as informações falsas, divulgadas por Bolsonaro – a quem ainda chama de presidente –  e por seus seguidores em relação às eleições de 2022. “Uma semana após o presidente Lula ter assumido, chegou a vez dos manifestantes a favor do presidente Jair Bolsonaro contestarem o resultado das urnas”, disse a repórter.

Outro comentarista escalado foi Rodolfo Mariz, que endossou as publicações feitas pelo parlamentar Carlos Jordy (PL-RJ) em redes sociais, afirmando que “os manifestantes morderam uma isca plantada pelo atual governo federal”, na tentativa de isentar o ex-presidente Bolsonaro. O coronel Gerson Gomes, outro comentarista escalado pela emissora, responsabilizou o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco e o atual governo federal pelos atos golpistas. Em nenhum momento, a Jovem Pan mostrou imagens da depredação dos prédios da República. 

O presidente do grupo Jovem Pan, Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o Tutinha, foi afastado do cargo nesta segunda-feira 9, mas segue como acionista do conglomerado de mídia. O Ministério Público Federal instaurou inquérito contra a emissora por divulgar desinformação e incitar atos antidemocráticos. 

A RecordTV exibiu flashes da invasão durante a sua programação dominical. A cobertura foi feita pelo programa Domingo Espetacular, apresentado pela jornalista Christina Lemos. Na chamada, o destaque para o ex-presidente: “Bolsonaro repudia manifestações em Brasília: fogem à regra”. Assim como a Jovem Pan, a emissora do bispo Edir Macedo, líder da igreja neopentecostal Universal do Reino de Deus, que também foi aliada de Jair Bolsonaro nos quatro anos de seu governo, busca isentá-lo dos atos fascistas que aconteceram em Brasília. O tuíte do ex-presidente é lido, sem nenhuma contestação. No entanto, ao contrário da Jovem Pan, a Record adotou os termos “vândalos” e “extremistas” para se referir aos responsáveis pelos atos de violência, e exibiu as imagens da depredação dos prédios do STF e Congresso. 

Christina Lemos também repercutiu as manifestações dos presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira; do Senado, Rodrigo Pacheco; do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, e do governador afastado do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. A cobertura do Domingo Espetacular divulgou ainda os apoios ao governo federal dos presidentes do Chile, Estados Unidos e França, e a postagem do presidente do partido Republicanos, Marcos Pereira, que é pastor evangélico e aliado de Bolsonaro. 

O SBT exibiu alguns boletins durante a programação, mas não deu destaque aos atos.

Sociedade civil cobra investigação

Organizações da sociedade civil repudiaram os atos e pediram a responsabilização de todos os envolvidos. “A responsabilização é vital para que possamos efetivamente romper com esse ciclo de fragilização da democracia em nosso país”, destaca nota do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. A Anistia Internacional exigiu que “o Estado Brasileiro garanta investigação, de maneira célere, imparcial, séria e efetiva das circunstâncias que levaram à invasão e ataques ocorridos”. 

Movimentos sociais, coletivos, sindicatos e partidos convocaram atos em defesa da democracia, que mobilizaram milhares de pessoas em todo o país nessa segunda. 

Mais do que nunca, é preciso erguer a voz contra o fascismo e em defesa da democracia.

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