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Plataformas digitais precisam ser responsabilizadas pelo caos que semeiam nas eleições

Setor que mais lucrou com gastos de campanha, as big techs têm ajudado a impulsionar a ruína da democracia brasileira

Campanha de Bolsonaro aposta em série de vídeos endereçados a usuários de grandes cidades brasileiras (Bruno Fonseca/Agência Pública)
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A poucos dias do fim da eleição mais importante desde a redemocratização, já é possível vislumbrar as grandes “campeãs” deste pleito: as plataformas digitais.

Mas esse não é um título do qual elas deveriam se orgulhar.

Entranhadas no cotidiano da sociedade, as plataformas são hoje uma das principais, senão a principal, ferramenta de comunicação nas campanhas. Se, em 2018, os candidatos gastaram cerca de R$ 77,2 milhões em anúncios nas redes sociais e mecanismos de busca, em 2022 esse número já ultrapassou os R$ 191 milhões – e segue em crescimento exponencial. Parte dessa quantia, diga-se de passagem, vem de recursos públicos.

Para além de embolsar valores consideráveis do Fundo Eleitoral, as plataformas ocupam um lugar cada vez mais central na esfera pública. Basta olhar para o primeiro debate presidencial do segundo turno, ocorrido na noite do domingo (16). Promovido pela Band, TV Cultura, Folha de S.Paulo e UOL, o embate entre Lula e Bolsonaro foi transmitido pelo YouTube, comandado pela Alphabet Inc., proprietária do Google. A transmissão alcançou a expressiva marca de 2.217.722 visualizações simultâneas. “A maior live da história do YouTube”, anunciaram. 

No estúdio da emissora, um letreiro do Google era exibido ao lado da marca da Band. A sala digital, espaço que monitorava e exibia os temas mais buscados no Google durante a transmissão, era apresentado pela jornalista Lana Canepa e Marco Túlio Pires, coordenador do Google News Lab. 

Entre um quadro e outro, o YouTube anunciava suas ações de combate à desinformação e promoção da pluralidade de vozes.

Em uma das propagandas, a plataforma apresentou a iniciativa “Antes do seu play”, afirmando que removia conteúdos que violavam suas políticas, reduzia o alcance de conteúdos duvidosos, recomendava conteúdos de fontes confiáveis e recompensava criadores de conteúdos de qualidade.

Não é o que vemos quando damos o play nos vídeos que circulam pela plataforma. Uma breve busca traz como resultado uma enxurrada de desinformação, como aponta o estudo do NetLab (Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais da UFRJ) e o projeto Amazônia Livre de Fake, do Intervozes, que busca mapear e combater a desinformação e discurso de ódio na Amazônia Legal.

É fundamental que medidas sejam tomadas e publicizadas. Mas o que as plataformas escondem é que suas ações são insuficientes diante do caos informacional instaurado nos últimos anos.

Como as plataformas (não) combatem a desinformação

Em 2020, o Intervozes lançou a pesquisa “Como as plataformas enfrentam a desinformação”, que analisou as medidas adotadas pelo Facebook, Instagram, WhatsApp, YouTube e Twitter entre 2018, quando o fenômeno já era considerado um problema em âmbito mundial, e 2020, alcançando o início da pandemia de Covid-19 e da campanha eleitoral nos municípios brasileiros. 

O estudo concluiu que as big techs não apresentam políticas e processos estruturados contra o problema da desinformação, desenvolvendo apenas ações pontuais e reativas. Os limites da abordagem são nítidos, a começar pela definição da desinformação. Nenhuma das empresas relatou trabalhar com um conceito unificado. Em políticas e comunicados, fazem menções ao termo além de outros correlatos, como notícias falsas e informações enganosas. 

Nenhuma das empresas também disse ter uma estrutura específica para abordar a questão da desinformação, o que pode dificultar a coordenação das iniciativas. Dois anos depois de encerrada a pesquisa, após uma rodada de conversa entre as plataformas e iniciativas como a Democracia Pede Socorro e a Coalizão Direitos na Rede (CDR), o que se percebe é que a falta de ferramentas e a estruturação dos processos ainda persiste. 

Em relação à moderação de conteúdo desinformativo, a verificação de conteúdos, principalmente por agências externas, é prática presente em boa parte das plataformas. Quando ocorrem, as checagens são realizadas conforme categorizações das plataformas, diretriz necessária para evitar tratamentos diferentes por cada checadora. Mesmo assim, a complexidade de analisar os “tons de cinza” entre um e outro extremo enseja riscos de avaliações questionáveis, razão pela qual a verificação deveria contar com mecanismos de devido processo efetivos para a mitigação de abusos e erros.

A pesquisa apontou a falta de transparência das plataformas digitais como um dos problemas centrais. A ausência de balanço das ações propagandeadas, com informações escassas e dispersas, impede que seja aferida a concretude das ações. Ficamos reféns das alegações das empresas e de suas promessas não comprováveis.

Além da falta de transparência e de medidas estruturadas para o combate à desinformação, outro fator é primordial para o cenário que vivemos hoje: o modelo de negócios das plataformas. A intensa coleta e tratamento de dados pessoais, que depois são perfilados e vendidos para o direcionamento de conteúdos por empresas, partidos e quem mais quiser comprar, está na base desse modelo e favorece a ampla disseminação de conteúdos falsos e enganosos.

Na prática, a teoria é outra

Em fevereiro de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) convocou os representantes do Twitter, TikTok, Facebook, WhatsApp, Google, Instagram, YouTube e Kwai para assinarem um compromisso de combate à desinformação durante o período eleitoral. Na ocasião, as empresas comprometeram-se a atuar ativamente para desestimular ações de proliferação de informações falsas e aperfeiçoar métodos de identificação de possíveis práticas de disseminação de conteúdos desinformativos.

Não foi o que vimos na prática. Ao jornal O Globo, o TSE informou que as denúncias de conteúdos falsos aumentaram 1.671% em relação às eleições de 2020. De acordo com o projeto Sentinela Eleitoral, parceria entre Aos Fatos, Núcleo Jornalismo e Agência Pública, os ataques às urnas e ao judiciário e alegações de fraude nas eleições foram alguns dos temas que marcaram o primeiro turno das eleições. 

Na véspera do dia 2 de outubro, a notícia vinculando o PT a uma facção criminosa viralizou nas redes bolsonaristas. O TSE determinou a retirada imediata do conteúdo no canal do YouTube da Jovem Pan, dos sites Terra Brasil Notícias, Jornal da Cidade Online e de perfis de parlamentares, entre eles, Flávio e Eduardo Bolsonaro, filhos do presidente. Mas quando o conteúdo foi removido, somente o vídeo no canal da emissora de rádio e TV já havia alcançado quase 2 milhões de visualizações e viralizado nos grupos de Telegram e WhatsApp.

No segundo turno das eleições, o cenário é ainda pior. O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, classificou como “desastrosa” a atuação das plataformas para conter a desinformação. No último dia 20 de outubro, o TSE emitiu uma nova resolução, endurecendo as medidas.

Agora, as plataformas têm até duas horas para remover os conteúdos indicados pelo Tribunal em suas decisões. Caso a decisão seja descumprida, as plataformas irão arcar com uma multa de R$ 100 mil a R$ 150 mil por hora de descumprimento. Nas 48 horas anteriores à votação e nos três dias seguintes ao pleito, as plataformas terão 1h para remover os conteúdos.

O TSE também vedou a veiculação paga, inclusive por monetização direta ou indireta, de propaganda eleitoral na internet nas 48 horas antes e 24 horas depois das eleições. Diante da inação das plataformas, coube ao TSE, em movimento isolado e a partir do clamor da sociedade civil, organizações e pesquisadores da área, tomar medidas mais contundentes 

Organizações cobram medidas

Diante da proliferação da desinformação, organizações da sociedade civil têm promovido uma série de ações para pressionar e buscar caminhos para o problema. Rodadas de diálogos com representantes das plataformas digitais no Brasil, materiais informativos, notas técnicas e campanhas de comunicação com o objetivo de amenizar os efeitos nocivos da desinformação e do discurso de ódio na sociedade são algumas das ações postas em prática. 

A campanha Democracia Pede Socorro, que reúne 115 entidades, publicou um documento com recomendações para as plataformas digitais durante o pleito eleitoral. Entre as diretrizes estão a garantia da transparência e do direito de apelação sobre conteúdos que tenham sofrido medidas restritivas, a não veiculação de conteúdos com alegação infundada de fraude eleitoral e a adoção de políticas estruturadas e precisas, reunidas em um único documento e de fácil acesso ao público.

Em nota, a Coalizão Direitos na Rede apresentou medidas emergenciais para o enfrentamento à desinformação no período eleitoral e cobrou ações efetivas por parte das plataformas, do judiciário e do Poder Público. Às big techs, a CDR recomenda que os anúncios a serem publicados em português sejam submetidos a filtros de verificação prévia de conteúdo com termos referentes ao processo eleitoral. A Coalizão pede ainda que as plataformas ampliem o tempo de restrição para veiculação de propaganda eleitoral e impulsionamento de conteúdo político e que não impulsionem conteúdos alvo de denúncia de usuários até que passem pelo processo de avaliação de conteúdo das plataformas. Por fim, a rede de entidades solicita às empresas que conteúdos postados por páginas repetidamente caracterizadas como propagadoras sistemáticas de conteúdo desinformativo de acordo com decisões da Justiça não tenham prioridade nos resultados retornados em mecanismos de busca, assim como em redes sociais.

A Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), formada por mais de 160 entidades, pesquisadores e ativistas brasileiros e estrangeiros, solicitou às plataformas que agissem de forma responsável, “defendendo a democracia como propagam e respondendo de forma imediata e ainda dentro do cenário eleitoral para que possamos garantir minimamente um ambiente de informação saudável”. Entre as medidas que podem ser adotadas pelas plataformas, a Rede destaca duas emergenciais: reações mais céleres às denúncias, desvelando de forma transparente a moderação de conteúdo, e a abertura de canais mais diretos com a sociedade civil. 

Não existe saída fácil. A desinformação e o discurso de ódio não serão solucionados com ações pontuais. É preciso que as plataformas digitais sejam responsabilizadas pelo caos desinformacional que vêm semeando e que o Poder Público aja de forma contundente para limitar o poder que os monopólios digitais têm. É necessário ainda que a sociedade se envolva e se mobilize para barrar a tragédia que vemos diante de nossos olhos. Não é hora de poupar esforços. É a nossa democracia que está em jogo. 

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