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Mídia comercial e ausência de políticas públicas alimentam o fogo amazônico

Populações sem comida e água potável, animais mortos no Rio Amazonas: as consequências de política de destruição que tem como estratégia a desinformação

Com a seca extrema, embarcações ficam atoladas na margem do rio Solimões, em frente ao porto de Tabatinga (AM). Foto: Margem do rio
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O rio comanda a vida. A simples frase do jornalista e historiador paraense Leandro Tocantins define bem o cotidiano das populações amazônidas, para as quais as águas são caminho para alimentação, hidratação, circulação e comunicação. Em resumo, os rios são essenciais para a sobrevivência das populações que chamam a Amazônia de casa. Daí a comoção com as imagens de peixes mortos em decorrência da seca extrema no Amazonas que ganharam destaque nos principais noticiosos do País nas últimas semanas.

Além disso, com cerca de sete mil focos de calor registrados em setembro pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em diversas cidades amazonenses, a fumaça tomou conta da paisagem. Porém, a cobertura midiática nacional tem dado destaque a questões econômicas em sobreposição ao aprofundamento da causa e das consequências do fenômeno climático. Abrindo, mais uma vez, espaço para a desinformação sobre a realidade da Amazônia Legal.

Em reportagem de capa da edição de 3 de outubro último, o jornal O Globo aborda os impactos da estiagem no escoamento de produtos eletrônicos produzidos na Zona Franca de Manaus às vésperas da black friday, enquanto ignora os inúmeros problemas sociais como o isolamento de municípios, o desabastecimento de itens alimentícios, a morte de peixes e botos e a falta de água potável.

Outra matéria que não aprofunda o contexto do problema foi publicada em 4 de outubro pela Folha de S.Paulo com o título Rios estão perto de atingir seca histórica na Amazônia. O texto traz uma abordagem do fenômeno apresentando dados físicos da seca com informações da Defesa Civil sobre as próximas previsões, mas não faz nenhuma menção sobre os impactos nas comunidades nem sobre a ação de enfrentamento ao problema.

Algumas organizações da sociedade civil do Amazonas, por outro lado, têm chamado a atenção para a falta de ações preventivas e de mitigação, por parte da Defesa Civil e do governador reeleito. Isso no estado de maior extensão territorial do País, cuja logística para respostas rápidas em auxílio às comunidades encontra barreiras exatamente nessa grande dimensão territorial, além das dificuldades de comunicação. Doze entidades locais produziram documento que será encaminhado às autoridades públicas solicitando plano de contingência e mitigação de efeitos das queimadas.

A situação não é exclusiva do Amazonas. Segundo o boletim do Serviço Geológico do Brasil, o nível das águas está abaixo da normalidade em todas as seis bacias hidrográficas monitoradas pelo órgão (Acre, Amazonas, Rondônia, Roraima e Pará). Por trás disso, há uma combinação de extremos climáticos cada vez menos raros: o aquecimento das águas do Atlântico e o El Niño mais forte. Tudo isso agravado pela alta no desmatamento e nas queimadas ao longo dos últimos seis anos.

Mídia encobre a fumaça

À superficialidade e ao enviesamento das coberturas somam-se a desinformação e outros contextos que excluem do debate público informações relevantes sobre a situação da Amazônia. No projeto Amazônia Livre de Fake, temos realizado pesquisas sobre quais são os atores que produzem e mantêm circulando desinformação na Amazônia Legal. No estudo, identificamos que, em 2022, as mentiras sobre a região costumam ter dois objetivos principais: reforçar estereótipos, preconceitos e discurso de ódio; ou serem usadas estrategicamente como cortina de fumaça, principalmente a serviço do agronegócio.

A jornalista do Infoamazônia Jéssica Botelho, durante pesquisa que realizou, também em 2022, para o projeto Mentira tem Preço, identificou narrativas enviesadas sobre desmatamento. “Os veículos aqui em Manaus costumam reproduzir releases da Agência Amazonas, que acaba por reproduzir os releases sobre a Amazônia do governo federal. Então, tivemos uma série de informações sobre desmatamento sem apresentar dados em cada localidade, sem demonstrar as consequências e impactos às populações ribeirinhas e tradicionais, sem mencionar o desequilíbrio ambiental, sem trazer as atividades ilegais que promovem o desmatamento”, analisa.

Lobby do petróleo e narrativa enviesada

Não é a primeira e provavelmente não será a última vez que a cobertura midiática nacional decide definir um lado da pauta a ser tratada sobre a Amazônia. Em carta aberta, organizações da sociedade civil do Amapá e do Pará simbolizaram em agosto de 2023, durante Cúpula da Amazônia, em Belém (PA), o apoio ao indeferimento da perfuração no bloco FZA-M-59,  localizado na costa do Amapá, conhecido popularmente como a foz do rio Amazonas.

De acordo com o documento, a exploração de petróleo contribui significativamente para as emissões de gases de efeito estufa, agravando a emergência climática, outro fator que poderá colaborar para as altas temperaturas na região amazônida. Além disso, irá interferir social e culturalmente nas vidas das populações próximas a regiões de exploração, afetando, de maneira desproporcional, comunidades vulneráveis, em especial no Oiapoque, onde concentram-se quatro das nove etnias indígenas existentes no Amapá.

A manipulação discursiva e midiática neste caso tomou um viés de apropriação de linguagens que eufemizam as decisões políticas e os projetos econômicos tidos como desenvolvimentistas. A Cúpula foi uma prévia para a 30ª edição da Conferência do Clima (COP), que ocorrerá na Amazônia em 2025. Mas segundo o Instituto Mapinguari, oito dos nove governadores da Amazônia Legal defendem a exploração e utilizam do lobby do petróleo para distribuir desinformação e ameaças a lideranças. “Há agora, um novo discurso, onde não se toca mais no nome da zona Foz do Amazonas, substituindo por margem equatorial. Outra mudança no discurso é quanto à palavra exploração que foi trocada por pesquisa técnica de conhecimento das riquezas naturais”, analisa Thales Nogueira, do Instituto Mapinguari. A entidade é uma das organizações amazônidas que compõem o grupo de Trabalho do Projeto de Combate à Desinformação na Amazônia Legal, coordenado pelo Intervozes, que realizou a pesquisa Amazônia Livre de Fake.

Economia dita as regras do jogo

O governador do Amazonas, Wilson Lima, em seu programa para a campanha eleitoral de 2022, deixou de apresentar propostas claras de combate aos crimes ambientais. Em contrapartida, no campo da economia, tem como uma das principais promessas a repavimentação da BR-319, cujos impactos tendem a agravar ainda mais o cenário de devastação socioambiental no estado. Essa reconstrução da rodovia prevista é apontada por estudiosos da área ambiental como grande ameaça para toda a área de floresta, pois levaria o chamado “arco do desmatamento” para a porção mais norte da Amazônia. Hoje, o desmatamento se concentra na parte sul do Amazonas, nos municípios acessíveis pelo trecho pavimentado da BR-319 e pela Transamazônica.

É justamente a repavimentação da BR-319 que aparece nos discursos da classe política como a saída para a crise provocada pelos eventos climáticos extremos. Em visita a Manaus, no último 4 de outubro, o vice-presidente Geraldo Alckmin anunciou, ao lado do governador, a criação de um GT para analisar a retomada das obras na rodovia que liga Manaus a Porto Velho.

Neste contexto, o cenário de desinformação é fruto também dos desertos de notícias na região norte, municípios sem nenhum veículo de comunicação para produção de informação local e a histórica concentração midiática do sistema de comunicações no Brasil.

Por isso, um debate sério sobre a democratização da mídia e sobre o fortalecimento da comunicação pública também é um caminho urgente para sair desse labirinto. Combinada a isso, a regulação econômica e de conteúdos das plataformas digitais é urgente. O amadurecimento do PL 2630 ╾ o chamado PL das Fake News ╾, é um caminho para se retomar as reflexões sobre a dinâmica de consumo informacional no Brasil, para que esteja conectado às demandas contemporâneas do ecossistema de notícias diante dos desafios estruturantes das plataformas digitais.

E, no caso específico da desinformação em relação a pautas socioambientais ou climáticas, uma das soluções também passa pelo fortalecimento do ecossistema das mídias regionais, que produzem conteúdos a partir dos próprios territórios, amplificando as vozes de pessoas que sofrem com esses fenômenos climáticos, econômicos e de desinformação. Para citar alguns, vale a pena acompanhar: Tapajós de Fato, InfoAmazônia, Amazônia Real, Rede Wayuri, Rede de Notícias da Amazônia, Carta Amazônia, Casa Ninja Amazônia e Rede Juruena Vivo. Todas essas organizações de mídia integram o projeto Amazônia Livre de Fake.

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