Intervozes

Da TV às urnas: apresentadores de programas policialescos nas eleições

Candidatos alavancados por programas policialescos têm propostas que criminalizam grupos vulnerabilizados

Jeisael Marx, candidato a prefeito de São Luís (MA) e que até junho deste ano apresentava o policialesco Brasil Urgente Maranhão. Foto: Reprodução Jeisael Marx, candidato a prefeito de São Luís (MA) e que até junho deste ano apresentava o policialesco Brasil Urgente Maranhão. Foto: Reprodução
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Por Paulo Victor Melo*

“Te faz de doido que o pau te acha”. Com esse bordão e segurando um porrete batizado de “pau da salvação”, Jeisael Marx estreou em agosto de 2019 no comando do Brasil Urgente Maranhão, transmitido pela TV Bandeirantes, de segunda a sexta-feira, para a capital São Luís e região metropolitana.

Quase um ano depois, em 29 de junho deste ano, Jeisael Marx se afastou do programa televisivo. O motivo? Concorrer ao cargo de prefeito de São Luís, já que, pela legislação eleitoral, apresentadores, repórteres e comentaristas de programas de TV ou rádio deveriam deixar essas funções até aquela data.

Disputando a sua primeira eleição, o jornalista, que já tinha sido apresentador do Qual é a bronca?, da TV Cidade (afiliada da Record), retirou o Marx e agora, apenas como Jeisael, é candidato ao Executivo municipal da capital maranhense pela Rede Sustentabilidade.

No mesmo dia em que Jeisael dava um até logo aos telespectadores, acontecia outra despedida semelhante numa emissora da Paraíba. Nilvan Ferreira, que desde agosto de 2017 apresentava o Correio Manhã, na TV Correio, afiliada da Record no estado, saia das telas para pleitear a prefeitura de João Pessoa, pelo MDB.

Mas Jeisael e Nilvan não são os únicos a, após construir uma trajetória e conquistar popularidade sustentadas em discursos odiosos contra determinados segmentos da população ou com narrativas apelativas, sair dos estúdios de rádio e televisão para investir na política institucional. Em verdade, essa tem sido uma constante eleição após eleição.

Nas de 2020, de âmbito municipal, um levantamento do Intervozes identificou que, apenas nas capitais e duas maiores cidades de cada estado, há pelo menos 10 candidatos a prefeito ou vice com perfil semelhante ao de Jeisael e Nilvan.

Como sinalização de que esse não é problema específico de um único lugar ou agrupamento político, esses candidatos estão em nove estados – de todas as regiões do país – e oito partidos: Democracia Cristã, Podemos, PROS, Rede, MDB, Republicanos têm um cada. PDT e Patriota têm dois.

Um desses é Vitor Valim, apresentador do Cidade 190, programa policialesco da TV Cidade, afiliada da Record. Diferente de Jeisael e Nilvan, que são novatos em eleições, Valim já foi vereador da capital por dois mandatos, deputado federal, é atualmente deputado na Assembleia Legislativa do Ceará e agora candidato a prefeito de Caucaia pelo PROS.

Ainda que a pesquisa do Intervozes não tenha analisado perfis dos candidatos ao Legislativo, vale citar que do Cidade 190 saiu também outro candidato nas eleições 2020: Evaldo Costa, que divide a apresentação com Valim e concorre à reeleição para a Câmara de Vereadores de Fortaleza, pelo PDT. Outro apresentador de programa policialesco da mesma emissora, Márcio Lopes, que comanda o Cidade Alerta Ceará, é candidato a vereador da capital cearense, pelo PROS.

Tanto o Cidade 190 quanto o Cidade Alerta Ceará – assim como o conjunto dos programas policialescos – são conhecidos por sucessivas violações de direitos humanos. Um levantamento realizado pela ANDI – Comunicação e Direitos, Intervozes e Artigo 19, em 2015, que monitorou 30 programas com esse perfil, constatou que, em média, 1.928 violações de direitos são cometidas por mês, como desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime e à violência; exposição indevida de pessoas e de famílias; discurso de ódio e preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional; dentre outras.

O programa apresentado por Vitor Valim e Evaldo Costa, inclusive, figurou de forma vergonhosa nacionalmente por, em janeiro de 2014, ter exibido cenas de um flagrante estupro de uma criança de nove anos idade, dentro da sua própria casa. As imagens veiculadas pela TV Cidade na hora do almoço – que chegaram a ter 30 mil visualizações, em apenas um dia, nas redes sociais da emissora – permitiam identificar facilmente tanto a vítima quanto o agressor, já que apenas a imagem dos órgãos genitais foi embaçada.

Após um amplo processo de repúdio e mobilizações de organizações da sociedade civil, conforme relatado por Natasha Cruz e Bia Barbosa, em artigo publicado em CartaCapital em setembro de 2014, a TV Cidade foi multada em pouco mais de 23 mil reais, um valor ínfimo considerando a força econômica dos veículos de comunicação e a quantidade de anunciantes que os programas policialescos têm em geral.

Assim como Jeisael, Nilvan, Valim e seus colegas de TV Cidade, quem se desincompatibilizou de programa policialesco para disputar as eleições desse ano foi Didio Silva, candidato a vice-prefeito de Macapá, pelo Patriota. Didio que é pastor da Igreja do Evangelho Quadrangular, vereador da capital do Amapá e suplente de deputado estadual, apresenta o programa Revista Geral, que vai ao ar de segunda a sexta, das 13h às 14h, pela TV Amazônia, afiliada ao SBT.

Didio tem outro líder religioso como parceiro de chapa, pastor Guaracy, do PSL, pela coligação “Deus, Pátria e Família”. Em entrevista no final de outubro para um site de notícias do estado, Guaracy afirmou que “Macapá precisa de um prefeito alinhado com o Governo Federal, com foco em Deus, pátria e família”. Uma pesquisa também feita pelo Intervozes nas eleições de 2018 já havia apontado a relação entre os discursos de defesa da família e as propostas de endurecimento de legislações penais por apresentadores e repórteres de programas policialescos que foram candidatos a deputado federal e senador.

Além dos policialescos, relações pouco transparentes

Um dos principais símbolos dessa relação entre política institucional e conteúdos televisivos com discursos apelativos e sensacionalistas é Celso Russomanno, que disputa a Prefeitura de São Paulo pelo partido Republicanos.

Russomanno é apresentador do “Patrulha do Consumidor”, quadro do Cidade Alerta, da Record. Autointitulado “jornalístico policialesco de abrangência nacional” e exibido desde 1995, o Cidade Alerta já foi alvo de denúncias relacionadas a violações de direitos humanos. Em fevereiro desse ano, o Intervozes protocolou representação no Ministério Público Federal contra o programa, que noticiou para uma mãe, ao vivo, que a sua filha tinha sido assassinada pelo namorado, provocando o desespero e desmaio da mulher em rede nacional.

Além de integrante do Cidade Alerta, Russomanno é proprietário da Rede Brasil FM 101,1 na cidade de Leme, interior paulista. Porém, conforme matéria da Folha de S. Paulo de 2012, a emissora operava sem possuir concessão do Ministério das Comunicações. Ainda de acordo com a matéria, a empresa utiliza uma concessão obtida pela Amazônia Comunicações Ltda., registrada no município de Cametá, interior do Pará. Consulta recente mostra que a Rede Brasil FM segue sem registro no Sistema de Acompanhamento de Controle Societário (SIACCO), da Agência Nacional de Telecomunicações.

Barbosa Neto, candidato a prefeito de Londrina pelo PDT, tem um histórico não muito diferente. Com uma trajetória nos programas policialescos iniciada ainda nos anos 1990, Neto já foi deputado estadual, deputado federal e prefeito da cidade do sul paranaense. Três anos após ter o mandato cassado, retornou à televisão em 2015, como apresentador do Balanço Geral, na RICTV, afiliada da Record, onde ficou até 2017.

Ao TSE, Barbosa Neto declarou 330 mil reais de participação na Rádio Brasil Sul Eireli. Enquanto no registro da Receita Federal consta o nome de Barbosa Neto como proprietário e com o endereço em Londrina, no SIACCO, contudo, o mesmo CNPJ aparece com outro quadro societário (sem o nome de Barbosa Neto), além de um endereço no Jaraguá, em São Paulo.

A força da grana e propostas criminalizadoras

Obviamente, não se pode afirmar qual o percentual do patrimônio desses candidatos é gerado a partir dos seus discursos e narrativas que se baseiam na exploração da violência e na transformação da miséria em espetáculo, mas não deixa de ser intrigante que políticos com esse perfil acumulem bens em valores altos.

Dentre os candidatos identificados na pesquisa que têm relação com programas policialescos, dois declararam patrimônio acima de 1 milhão de reais e outros três entre 800 mil e 1 milhão: Barbosa Neto (3.014.881,15); Celso Russomanno (1.772.944,11); Nilvan Ferreira (915.000,00); e Vitor Valim (880.557,04).

De modo similar ao que fazem em seus programas de TV, as plataformas de governos desses candidatos expressam uma concepção de segurança que tende a criminalizar parcelas da população, especialmente as juventudes negras das periferias.

Vitor Valim, por exemplo, promete “armar a Guarda Municipal de Caucaia” e diz que os ônibus da cidade “serão dotados de câmeras de segurança para identificação de crimes e criminosos” e que “as imagens, obrigatoriamente, serão arquivadas e poderão ser utilizadas para elucidação de crimes”.

Propostas semelhantes tem Nilvan Ferreira, que afirma o desejo de “investir em um moderno sistema de câmeras integrado com sistemas de TI inteligentes visando a redução da criminalidade na cidade de João Pessoa” e “realizar uma consulta popular para determinar se a Guarda Municipal poderá portar armas de fogo”.

Já Barbosa Neto, num documento de duas páginas que ele denomina de programa de governo para Londrina, tem como uma das suas proposições a “instalação de câmeras de vídeo-monitoramento interligadas a uma central de segurança por rede de fibra ótica, com reconhecimento facial por inteligência artificial”.

O que Valim, Nilvan e Barbosa Neto defendem para as suas cidades é, de um modo geral, a utilização de tecnologias que têm servido ao redor do mundo para reforçar lógicas racistas na atuação dos órgãos de segurança pública, assim como fazem proprietários de mídia que são candidatos a prefeito e vice nessas eleições.

É ainda mais grave o fato dessas propostas serem alimentadas no cotidiano, em programas que, utilizando-se de concessões públicas, promovem a banalização da violência, exploram o medo e, assim, incentivam e naturalizam ações de segurança pública conservadoras e racistas.

Denunciar os discursos que esses candidatos fazem na TV e no rádio e o que propõem para as suas gestões é, portanto, tarefa democrática.

Paulo Victor Melo, jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Os dados da pesquisa do Intervozes foram coletados a partir de um trabalho coletivo, que envolveu a colaboração de Franciane Bernardes, Iago Vernek, Isadora Lira, Mabel Dias, Marcos Urupá, Mônica Mourão, Nataly Queiroz, Ramênia Vieira e Tâmara Terso.

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