Intervozes

Candidatos propõem tecnologias de vigilância que reforçam racismo

Reconhecimento facial e outras tecnologias usadas para vigiar a população, banidas em diversas partes do mundo, compõem agenda de candidatos

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Paulo Victor Melo*

Em uma recente carta aberta, mais de 2 mil matemáticos dos Estados Unidos reivindicam que o conjunto dos profissionais dessa área não colaborem com tecnologias de informação utilizadas por órgãos de segurança pública e exigem que qualquer tecnologia para esse fim passe por uma auditoria pública. A argumentação dos matemáticos – assim como alertas semelhantes feitos por pesquisadores em diferentes partes do mundo – é que essas tecnologias acentuam práticas racistas na área de segurança e que, nesse sentido, deveriam mesmo ser banidas, como expressou recentemente E. Tendayi Achiume, Relatora Especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada.

 

No caminho inverso, proprietários de mídia que disputam o Executivo municipal, nas eleições deste ano no Brasil, apresentam uma série de propostas que buscam maior vigilância e controle da população por meio de tecnologias como o reconhecimento facial.

Conforme levantamento do Intervozes, apenas nas capitais e duas maiores cidades do País, 19 postulantes a prefeito e vice têm propriedade direta de veículos de comunicação ou têm parentesco com concessionários de rádio e TV. A prática, além de violar legislações nacionais e gerar desigualdades na disputa eleitoral, ocorre em todas as partes do País, se constitui sob bases pouco transparentes e gera bastante dividendos para os envolvidos.

Uma consulta aos programas de governo desses candidatos demonstra que, se depender do que prometem alguns, as tecnologias de informação devem servir ao policiamento preditivo, que pode ser resumido como uma prática de segurança baseada na indicação de futuras cenas criminosas com base em dados criminais passados. Em outros termos, “reconhecer” alguém que em algum momento da vida cometeu algum crime e, mesmo que já tenha cumprido a pena, colocá-lo num “banco de dados” de potenciais criminosos.

Candidato a prefeito de Recife pelo DEM, Mendonça Filho diz que vai “viabilizar a implantação de sistema de monitoramento por câmeras ao longo dos principais pontos de interesse do Recife para o reconhecimento facial de criminosos”. Com patrimônio declarado de R$ 2.227.130,55, o filho do ex-deputado federal José Mendonça Bezerra (DEM/PE) não tem concessões em seu nome, mas a mãe, Estefania Maria Nazaré Moura Bezerra, e a esposa, Taciana Cecília Vilaça Bezerra, são sócias da Rádio Bituri, em Belo Jardim. Além disso, a mãe e duas irmãs (Andrea Moura Bezerra e Isabela Bezerra Coutinho de Melo) administram a JMB Empreendimentos, que possui outras concessões de rádio em Caruaru, Garanhuns, Limoeiro e Pesqueira, todas do grupo João Carlos Paes Mendonça, proprietário também do Sistema Jornal do Commercio.

Proprietários de mídia que disputam o Executivo municipal, nas eleições deste ano no Brasil, apresentam uma série de propostas que buscam maior vigilância e controle da população por meio de tecnologias como o reconhecimento facial

“Reconhecimento facial de pessoas cadastradas em um banco de dados” e “ampliação do sistema de videomonitoramento para a segurança com a implantação de novas câmeras em parques, praças, praias, ruas e avenidas da cidade”. Essas são propostas de Neucimar Fraga e Ricardo Chiabai, ambos do PSD, respectivamente candidatos a prefeito e vice de Vila Velha. Chiabai não apenas tem participação societária na Sistema Norte de Rádio, mas é também marido de Flávia de Queiroz Castro Chiabai, sócia da Rede Gazeta, maior conglomerado de mídia do Espírito Santo.

Num programa de governo de apenas duas páginas, Barbosa Neto, candidato a prefeito de Londrina pelo PDT, tem como uma de suas principais proposições a criação do programa “Londrina Segura”, que envolve a “instalação de câmeras de videomonitoramento interligadas a uma central de segurança por rede de fibra ótica, com reconhecimento facial por inteligência artificial”. Além de proprietário da Rádio Brasil Sul Eireli, Barbosa Neto, que declarou um patrimônio de mais de R$ 3 milhões, é uma das principais referências de programas policialescos de rádio e televisão do Paraná. Entre 2015 e 2017 ele foi, por exemplo, apresentador do Balanço Geral, na RICTV, retransmissora da Record.

No município de Santa Rita, interior da Paraíba, uma das chapas é formada por Quinto Filho de Marcus Odilon, do PSC, e Estefania Maroja, do PSL, que propõem “implantar um grande sistema de monitoramento com câmeras nas praças e principais vias da cidade, qualificando a vigilância e repassando as imagens para os órgãos responsáveis pela segurança pública a fim de identificarem os locais com índices de violência”. Maroja não tem propriedade de radiodifusão em seu nome, mas a sua filha, Rachel Cristina Pedrosa Maroja, é uma das sócias da Rádio 100,5 FM.

Além de Mendonça Filho, Ricardo Chiabai, Barbosa Neto e Estefania Maroja – que citam textualmente a previsão de uso do reconhecimento facial como parte das suas ações de segurança pública ou mencionam o uso de imagens pelos órgãos de segurança – outros candidatos falam genericamente em aplicação de tecnologias, videomonitoramento e instalação de câmeras.

Buscando o comando da Prefeitura de Maceió, João Henrique Caldas, do PSB, frisou que pretende “integrar, com interoperabilidade, os equipamentos de videomonitoramento aos sistemas de Segurança Pública”. JHC é um dos proprietários da Alagoas Comunicação Ltda., grupo que congrega a TV Farol e as rádios Farol FM e Francês FM. Conforme informações do site da Receita Federal, os outros 70% da empresa pertencem a Maria Betânia Botelho Alves, que foi secretária parlamentar da Câmara no antigo gabinete do pai de JHC, o ex-deputado João Caldas (SD-AL).

Irmão e suplente do senador Davi Alcolumbre, Josiel é candidato a prefeito de Macapá, pelo DEM, e proprietário da TV Amazônia, retransmissora da Bandeirantes. Uma das suas propostas é “intensificar os investimentos para segurança pública em radiocomunicadores e videomonitoramento”. A família de Josiel acumula ainda as concessões de outras emissoras de televisão (TV Marco Zero, afiliada da Record; e TV Macapá, retransmissora do SBT) e dezenas de rádios no Estado do Amapá.

Racismo como estruturante das tecnologias

O que esses e outros candidatos a prefeituras propõem é parte do que Helena Martins, em artigo publicado em janeiro deste ano em Carta Capital, caracterizou como “a sanha vigilantista e punitivista que tem orientado as políticas de segurança no Brasil”.

E os números mostram que essa sanha vai encontrando terreno institucional em todas as partes do País. Especificamente sobre o reconhecimento facial, dados do Instituto Igarapé apontam que 37 cidades, em 16 Estados das cinco regiões, já utilizam essa tecnologia.

Também no sentido da legitimação institucional, a Portaria 793/2019, do Governo Federal, que regulamenta o Fundo Nacional de Segurança Pública, prevê a disponibilização de recursos para o “fomento à implantação de sistemas de videomonitoramento com soluções de reconhecimento facial, por Optical Character Recognition – OCR, uso de inteligência artificial ou outros”.

Ao mesmo tempo em que se espalha pelo País, o reconhecimento facial – e outras tecnologias de informação e comunicação utilizadas por polícias, guardas municipais e outros órgãos de segurança – evidencia o seu uso como materialização de uma lógica racista de segurança pública. Pesquisa da Rede de Observatórios de Segurança revelou que 90,5% das pessoas presas por reconhecimento facial, entre março e outubro de 2019, eram negras.

O que diversos pesquisadores/as afirmam é que não apenas a concepção sobre segurança pública é racista, mas as próprias tecnologias são estruturadas sob vieses igualmente racistas

Como agravante, o que tem acontecido, no Brasil e em outros países, é a prisão a partir do uso dessas tecnologias de pessoas que não tenham cometido qualquer crime. E essas pessoas são, em geral, negras. Na cidade de Detroit, nos Estados Unidos, apenas esse ano, dois homens negros – Michael Oliver e Robert Williams – foram indicados erroneamente como suspeitos de um crime por um software de reconhecimento facial. Em janeiro do ano passado, no Rio de Janeiro, Victor Mendes e Leonardo Nascimento foram também “confundidos” por câmeras de videomonitoramento e presos.

Mais do que um caso ou outro isolado, o que diversos pesquisadores/as afirmam é que não apenas a concepção sobre segurança pública é racista, mas as próprias tecnologias são estruturadas sob vieses igualmente racistas, o que tem levado organizações da sociedade civil a reivindicar o banimento de todas as tecnologias que tenham impacto racial discriminatório significativo.

As propostas defendidas pelos candidatos aqui apresentados são, portanto, extremamente perigosas, já que unificam o racismo como estruturante da segurança pública, o racismo como estruturante das tecnologias e o racismo que povoa a mentalidade de políticos como Celso Russomanno, sócio da Rede Brasil FM, em Leme, interior de São Paulo, e apresentador de TV. Ao ser criticado sobre uma posição que manifestou a respeito de uma homenagem à Consciência Negra, o prefeitável de São Paulo pelo Republicanos disse o seguinte na última sexta-feira: “Eu fui criado por uma mãe de leite, negra. Eu sou uma pessoa que não vejo diferença entre os negros e os brancos. Tenho grandes amigos que são negros. E tive namorada, inclusive. Eu não tenho problema nenhum com isso”.

Ricos, homens e brancos: o perfil médio dos concessionários

O racismo estrutural que alimenta as propostas dos candidatos a prefeito para o campo da segurança pública faz parte de uma sociedade em que questões raciais estão inter-relacionadas à concentração dos poderes político, econômico e midiático.

Dentre os candidatos identificados no levantamento do Intervozes, oito declararam patrimônio acima de R$ 1 milhão e outros quatro entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão, destacando-se: Barbosa Neto (R$ 3.014.881,15); Mendonça Filho (R$ 2.227.130,55); JHC (R$ 1.973.391,98); Mariana Feliciano (R$ 1.917.622,77); Celso Russomanno (R$1.772.944,11); João Arruda (R$ 1.435.920,92) e Luciano Castro (R$ 1.074.106,62).

Além das eleições municipais, em Mato Grosso a população votará também em eleições suplementares para o Senado. E é de lá que vem o “multimilionário” Julio Campos, do DEM, candidato a primeiro suplente de Senador. Proprietário do Grupo Futurista de Comunicação – que possui a TV Brasil Oeste e as rádios Band FM Rondonópolis, Nativa FM do Rio Verde, Nativa FM Cuiabá e Jovem Pan FM Cuiabá -, Julio declarou nada menos que R$ 18.339.520,24, divididos em empresas de mineração, agronegócio, imóveis rurais, dentre outros setores econômicos.

Dos 19 listados na pesquisa do Intervozes, há apenas duas mulheres, ambas da Paraíba: Mariana Feliciano, candidata a vice-prefeita de João Pessoa pelo PDT, e Estefania Maroja, candidata a vice-prefeita de Santa Rita, pelo PSL. Maroja não tem emissora de radiodifusão em seu nome, mas a sua filha, Rachel Cristina Pedrosa Maroja, é uma das proprietárias da Rádio 100,5 FM. O sócio da irmã é Damião Feliciano, pai de Mariana, o que mostra mais uma vez as estreitas relações entre as elites políticas, econômicas e midiáticas do País.

Considerando também apenas os 19 candidatos do levantamento do Intervozes, a declaração racial nos registros do TSE é mais um indicador de que a concentração da radiodifusão tem aspectos políticos, econômicos e também raciais: 11 são brancos/as, sete pardos/as e um preto. Dentre os milionários, apenas Mariana Feliciano e Mendonça Filho se autodeclaram pardos. Todos os demais, são brancos.

* Paulo Victor Melo, jornalista e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social

** Os dados da pesquisa do Intervozes foram coletados a partir de um trabalho coletivo, que envolveu a colaboração de Franciane Bernardes, Iago Vernek, Isadora Lira, Mabel Dias, Marcos Urupá, Mônica Mourão, Nataly Queiroz, Ramênia Vieira e Tâmara Terso.

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