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Regulação da mídia x censura: um guia para não cair em pegadinhas

No Brasil, o assunto virou tabu por conta do lobby histórico de empresários do setor. Em outros países. é medida democrática básica

Donos de mídia listados concorrem aos cargos de deputado federal, senador, deputado estadual e governador. A maior parte é político de carreira
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*Por Pedro Vilaça e Iara Moura

A regulação da mídia é realidade em diversos países do mundo. Os Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Espanha, Portugal, França, Espanha e Suécia são alguns exemplos de democracias que implementaram regulações. Você já se perguntou por que pouco se fala nisso no Brasil?

No Brasil, a concentração é tão absurda e oferece tanto poder à dita “grande mídia”, que boa parte da população é levada a acreditar que regulação é sinônimo de censura. Mas, na verdade, é a regulação que garante mais diversidade e pluralidade de ideias nos canais, fortalece a democracia, a diversidade de vozes e ajuda a combater a censura. 

O lobby das empresas de mídia – que obviamente não estão interessadas em qualquer instrumento democrático que ameace seus lucros – é tão grande que até novela ataca a regulação. Os jornais de maior audiência no País também se furtaram de fazer um debate transparente, informado e diverso sobre esse tema, contribuindo para a consolidação de uma cultura do medo e da desinformação quando o assunto é regulação midiática. 

Um pouco sobre a tecnologia e muito sobre política

Os sinais de TV e rádio precisam passar pelo espectro eletromagnético, um espaço limitado e que pertence ao povo brasileiro, ou seja, é um bem público. As emissoras não são donas dos canais hospedados nesse espectro. Como é um espaço limitado, uma parcela mínima da população recebe uma autorização do Estado para poder usá-lo por um tempo determinado. São as chamadas concessões públicas de TV e rádio. 

A Globo, SBT, Record, Bandeirantes, Rede TV!, Jovem Pan, bem como seus proprietários, Silvio Santos, Roberto Marinho, Edir Macêdo e companhia, não são donos de nenhum canal. Eles têm uma concessão para utilizar o serviço por um tempo e segundo condições determinadas. Dentre elas, o respeito à Constituição Federal, leis brasileiras e outros tratados de que o país é signatário.

As empresas de TV e rádio, assim como as concessionárias de transporte público na sua cidade, prestam um serviço à população, com regras, normas e obrigações. Ou pelo menos deveriam. Na prática, infelizmente, elas usam um bem público para defender interesses econômicos e políticos próprios.

Estudios das Rádios EBC (Ràdio Nacional do Rio de Janeiro, Rádio MEC AM e FM). (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Não é difícil perceber que, hoje, parte dos canais de rádio e TV apoiam Jair Bolsonaro. A troca de favores se dá por meio de acordo que vão desde a isenção de impostos até a destinação de grandes somas de verbas publicitárias, dinheiro público usado para veicular informações de interesse da população, mas que é usado como moeda de troca.

Para manter esse esquema, um dos artifícios das emissoras é associar a regulação a ditaduras, escondendo o fato de que a regulação é fundamental para manter a democracia e já é realidade em várias partes do mundo. Enquanto isso, ficamos à mercê de leis anacrônicas que não dão conta do cenário de convergência midiática e datam da ditadura militar. Mas, afinal, qual a diferença entre regulação e censura?

Segundo o dicionário Aurélio, censura é “a ação de controlar qualquer tipo de informação, geralmente através de repressão à imprensa. Restrição, alteração ou proibição imposta às obras que são submetidas a um exame oficial, sendo este definido por preceitos morais, religiosos ou políticos”.

Regulação é o “ato de regular, de estabelecer normas: regulação do valor do salário. Ação de ajustar, de afinar; afinação, ajustamento: regulação de violão”. Ou seja, a regulação é o ato de afinar, melhorar, estabelecer regras para garantir o bom funcionamento e para que todos possam usufruir do direito à comunicação.  

O que a mídia não diz

Para defender seus interesses, a mídia comercial no Brasil, especialmente as emissoras de grande alcance, escondem alguns fatos relevantes sobre a regulação. Regular a mídia significa:

Combater à censura

É justamente a regulação que garante que mais vozes sejam escutadas. A regulação, como acontece em outros países, pode ser uma importante ferramenta para garantir que a sociedade, em sua diversidade, tenha espaço para expressar suas ideias.

Estimular a produção local de conteúdo

Garantindo a participação de mais atores na mídia, a regulação estimula a produção de conteúdos locais, pois mais pessoas têm espaço para se expressar e para serem escutadas.

Mais liberdade de informação e de expressão

Com novos atores e novas vozes, a sociedade se informa melhor, com mais circulação de fatos e opiniões diversas.

Democracia

O monopólio da mídia, proibido na nossa Constituição, manipula notícias e invisibiliza a voz de amplos setores da sociedade. Não há democracia sem pluralidade de ideias e sem pluralidade na mídia e isso depende de uma regulação democrática e atual.

Regulação da mídia em cinco exemplos

Reino Unido 

A Organização Independente para Padrões da Imprensa (IPSO) e o Office of Communications (Ofcom) se definem como mantenedores da liberdade de expressão de alto padrão. A Ofcom garante a pluralidade da programação de TVs e rádios, assegurando que o público não seja exposto a material ofensivo e que as pessoas sejam protegidas de tratamento injusto. A IPSO, entre muitas regras, determina que a imprensa deve evitar referência prejudicial ou pejorativa à raça, cor, religião, gênero, orientação sexual e deficiência ou doença física ou mental de um indivíduo. Além disso, a BBC, TV pública de grande audiência, tem seu próprio órgão de controle interno, independente do governo

 França

A regulamentação de TV e rádio é feita pelo Conselho Superior do Audiovisual (CSA). Nenhum grupo de mídia pode controlar mais de 30% da imprensa diária. A CSA exige pluralismo de opiniões e diversidade cultural e pode punir com multas quem não seguir o marco regulatório. Qualquer incitação de discriminação, ódio ou violência é considerada crime. A Lei Geral da Comunicação Audiovisual determina limites à concentração e trata de questões de conteúdo, a partir da perspectiva de direitos do público. 

Alemanha

A lei central de regulamentação das transmissões em comunicação social é o Tratado Interestadual de Radiodifusão e Telemídia. Caso um grupo econômico tenha posição dominante no mercado, não pode receber nova licença nem adquirir parte de outra. A radiodifusão é regulada não só pelo tratado interestadual, mas também pelas leis de mídia de cada estado da nação. Além disso, a Comissão de Assuntos de Regulamentação acompanha a publicidade veiculada e observa questões relacionadas à pornografia, violência, aos chamados extreme shows e reality shows, à publicidade oculta e à propaganda que viole a dignidade humana.

Canadá 

As atividades regulatórias da radiodifusão canadense são basicamente centradas na Comissão Canadense de Rádio e Televisão (CRTC). O órgão é uma autarquia independente e emite concessões para a radiodifusão. Não fiscaliza conteúdo, mas exerce funções de monitoramento, aconselhamento e diretrizes. O órgão também fiscaliza irregularidades quanto à concentração e formação de monopólios e tem poderes para multar e suspender a licença, em casos de infração da lei pelo ente concessionário.

Portugal

A comunicação audiovisual em Portugal conta com dois entes regulatórios distintos: a Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom) e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Eles asseguram o pluralismo cultural e a diversidade de expressão das várias correntes de pensamento, com vistas também à proteção de crianças e adolescentes de conteúdos e serviços que possam prejudicar seu desenvolvimento. Os órgãos contribuem para a redução das assimetrias regionais e adotam medidas em benefício de cidadãos com necessidades especiais e deficiências.

Um triste resumo do Brasil 

O debate sobre regulação da mídia é um grande tabu e muitas vezes é apresentado de forma distorcida no país. A Constituição Federal proíbe a concentração sem limites de canais de rádio e TV e prevê o equilíbrio entre o sistema público, estatal e privado, mas na realidade temos uma prevalência do modelo comercial. Assim, a população fica à mercê do interesse econômico de poucos grupos donos da mídia, que também são ligados ao agronegócio, a empresas de ensino privado, a grupos religiosos e a políticos

A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) sofre com ataques, censura e desmontes. O atual governo utiliza os canais da empresa pública como se fosse correia de transmissão do presidente, sua família e seus aliados. Além disso, Bolsonaro já sinalizou seu interesse em privatizar a empresa pública, incluindo a EBC no Plano Nacional de Desestatização (PND).

Nosso sistema de mídia mostra alta concentração de audiência e de propriedade, alta concentração geográfica, falta de transparência, além de interferências econômicas, políticas e religiosas. No levantamento “Quem controla a Mídia no Brasil”, feito pelo Intervozes em parceria com a Repórteres Sem Fronteiras, foram analisados 50 veículos em quatro segmentos (TV, rádio, mídia impressa e online), pertencentes a 26 grupos de comunicação.  Infelizmente, os indicadores de riscos à pluralidade na mídia no Brasil apontam para um cenário preocupante: a elevadíssima concentração de audiência e a propriedade cruzada de meios de comunicação são os pontos mais preocupantes para o pluralismo midiático no país.

Apesar de toda a diversidade regional existente no Brasil e das dimensões continentais de seu território, os quatro principais grupos de mídia concentram uma audiência nacional que ultrapassa os 70% no caso da televisão aberta, meio de comunicação mais consumido no país.

Para cumprir a Constituição é necessária a regulação

Embora o artigo 220 da Constituição Federal determine que “a mídia não pode, direta ou indiretamente, estar sujeita a monopólio ou oligopólios”, esse dispositivo nunca foi regulamentado. Não há legislação para evitar a propriedade cruzada, com exceção de um segmento, o de TV por assinatura. Também não há normas que impeçam que uma mesma emissora de rádio ou TV alcance todo o território nacional a partir de seu sistema de afiliadas, driblando assim a legislação que limita o número de concessões permitidas a um mesmo proprietário. 

Outro artigo da Constituição que ainda não foi regulamentado é o 223, que prevê a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal, de forma a assegurar a existência de veículos com diferentes finalidades e tipos de programação. As mudanças legislativas para permitir a democratização dos meios de comunicação esbarra em outro problema: a existência de políticos que são proprietários de emissoras de rádio e TV, contrariando também a Constituição Federal, que em seu artigo 54 veda a participação de políticos em exercício de mandato no quadro societário de empresas concessionárias de radiodifusão.

Não caia em pegadinhas e fake news. A regulação da mídia é uma poderosa arma de combate à censura. Enquanto não avançarmos nesta afinação, o interesse privado, comercial e político-religioso seguirá prevalecendo sobre o interesse público e se beneficiando da falta de diversidade de vozes, ideias e da pluralidade de produções. Sem regulação, não tem fairplay e a democracia vive sob ameaça. 

*Pedro Vilaça e Iara Moura são coordenadores executivos do Intervozes.

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