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Uma janela de oportunidades contra o racismo religioso na TV

Após 15 anos de batalha judicial, religiões de matriz afro conquistam direito de resposta

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A história da televisão brasileira ganhou um novo capítulo na madrugada deste dia 9 de julho de 2019. Ainda que o horário de veiculação, 2h30 da madrugada, dificulte a audiência para amplos públicos, a exibição de quatro programas, entre os meses de julho e setembro deste ano, produzidos por grupos que atuam na defesa da liberdade das religiões de matriz afro-brasileira em uma emissora de TV mantida pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – Record News – é um marco nas comunicações no Brasil que deve ser celebrado.

O primeiro motivo é o próprio caráter de resistência que a exibição dos programas simboliza, afinal, a ação judicial que resulta nessa decisão teve início há mais de 15 anos, em 2004, quando – após sucessivas ofensas ao candomblé e à umbanda praticadas em programas de televisão vinculadas à IURD – o Ministério Público Federal, provocado pelo Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira (Itecab) e Centro de Estudo das Relações de Trabalho e da Desigualdade (Ceert), ingressou com uma Ação Civil Pública requerendo direitos de resposta às religiões de matriz afro.

A veiculação dos programas, de 20 minutos cada, que abordarão aspectos como origem, tradições, organização, rituais e outras características das religiões afro-brasileiras, representa também a possibilidade de transmissão de conhecimentos e informações valiosas para o enfrentamento ao racismo religioso praticado cotidianamente pela mídia privado-comercial brasileira e ecoado nas ruas de nosso país.

A respeito disso, dados do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, demonstram que entre janeiro e novembro de 2018, foram 213 denúncias de racismo religioso contra religiões de matriz afro. Em comparação com 2017, quando foram 145 denúncias, o número é 47% maior. Os números escancaram o caráter racista das violências quando se observa que, no geral, as denúncias de intolerância contra todas as religiões caíram no Brasil: de 537 em 2017 para 360 no ano passado.

A expressão racismo religioso, e não apenas intolerância, é adotada aqui considerando que as violências contra as religiões de matriz afro se configuram através de uma dupla marca negativa: a exotização e demonização, pelo fato de serem crenças não-cristãs ou não ligadas à cultura branca europeia; e o racismo, por serem religiões constituídas por elementos africanos e indígenas e, em sua maioria, por pessoas negras.

Nesse sentido, a transmissão de conteúdos sobre as religiões de matriz afro-brasileiras protagonizados por representantes das próprias religiões não significa uma manifestação de proselitismo religioso – como praticado diariamente por religiões que detém propriedade de rádio e televisão – mas sim um ato de afirmação da diversidade religiosa e do direito de culto, garantias constitucionais, algo necessário especialmente em tempos de constantes ataques aos direitos previstos na Carta Magna de 1988.

Religião e mídia

A presença religiosa no sistema brasileiro de mídia é crescente desde os anos 1980, principalmente na radiodifusão. Dos 50 veículos pesquisados pelo Intervozes na pesquisa Quem Controla a Mídia, nove são de propriedade de lideranças religiosas – todas cristãs, dominantes no Brasil. O Grupo Record, formado hoje pela RecordTV, a RecordNews, o Portal R7 e o jornal Correio do Povo, entre outros veículos não listados na pesquisa, pertence desde 1989 ao bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Os bispos da IURD possuem também, desde 1995, emissoras de rádio, como as que formam a Rede Aleluia, também incluída na pesquisa pelo seu alcance e audiência.

Sendo as empresas do bispo Edir Macedo parte de um grupo com cada vez mais poder econômico, político e ideológico no país, não é de espantar que o processo judicial reflita a desigualdade entre as partes envolvidas. A decisão da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, de abril de 2018, previa programas de uma hora de duração a serem veiculados tanto na Record quanto na Record News.

A partir dessa decisão inicial, o desembargador Nery Junior, vice-presidente do TRF-3, encaminhou o recurso impetrado pelas emissoras para o Gabinete de Conciliação do TRF-3, onde foi homologado o acordo o qual estabelece ainda que a Record News deverá arcar com todos os gastos de produção e veiculação dos programas, além de pagar uma indenização de 600 mil reais, sendo metade para o Itecab e metade para o Ceert.

Bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono do Grupo Record desde 1989

O fato da emissora relegar a veiculação às madrugadas, a redução drástica do tempo de duração para 20 minutos e a restrição ao canal de notícias do grupo demonstram o poder de pressão da IURD e uma tentativa de diminuir o alcance e a importância da ação de reparação.

De todo modo, a decisão que garante a exibição dos programas sobre as religiões de matriz afro é também uma janela de oportunidades para a discussão sobre a regulação dos meios de comunicação no Brasil. O Código Brasileiro de Telecomunicações, que regulamenta o rádio e televisão aberta, ainda que seja um instrumento desatualizado do ponto de vista da estrutura tecnológica e de convergência do setor, estabelece em seu artigo 53 – e que “constitui abuso, no exercício da liberdade de radiodifusão, o emprego desse meio de comunicação para a prática de crime ou contravenção previstos na legislação em vigor no país, inclusive: promover campanha discriminatória de classe, cor, raça ou religião”.

Não há dúvidas, portanto, que o cometido pelas emissoras do grupo Record, no programa “Mistérios” e no quadro “Sessão do descarrego”, foi uma sistemática prática criminosa por meio de concessões públicas de televisão.

Que os direitos de resposta conquistados pelas religiões de matriz afro via acordo judicial possam, portanto, inspirar outros grupos da sociedade, que constantemente são vítimas de discriminação através da mídia, a resistir na difícil mas necessária batalha pelo direito humano à comunicação e por uma mídia sem violações de direitos.

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