Intervozes

A censura é o modus operandi do bolsonarismo

Ameaças à liberdade de expressão devem ser a tônica do ano eleitoral

Foto: Reprodução
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O episódio de tentativa de censura ao festival Lollapalooza, envolvendo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Partido Liberal (PL), de Jair Bolsonaro, mostra, mais uma vez, que a liberdade de expressão seguirá nos “trending topics” de 2022. 

Às vésperas dos 58 anos do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil, o partido do presidente ameaçou frontalmente a Constituição Federal ao tentar impedir o exercício da liberdade de expressão, artística e cultural de artistas em um festival de música. O pedido de censura encontrou eco nos ouvidos de Raul Araújo, ministro substituto do TSE, que viu na manifestação política das artistas Pabllo Vittar e Marina Diamandis características de propaganda eleitoral antecipada, algo que é vedado pela legislação brasileira. 

Vale lembrar que o mesmo ministro negou o pedido de retirada de outdoors pró-Bolsonaro, como este abaixo, alegando que não enxergava ali qualquer prática eleitoreira.

Outdoor instalado em rodovia federal no estado da Bahia no início deste ano. Foto: Reprodução

A ação surtiu o efeito exatamente contrário ao que pretendia. No sábado 26 e domingo 27, os gritos de “Fora Bolsonaro” tomaram conta do Lollapalooza. Nas redes sociais, artistas e personalidades públicas, como Anitta e Felipe Neto, se manifestaram dizendo que pagariam a multa de 50 mil reais, estabelecida pelo ministro Araújo em sua decisão, dos artistas que quisessem se expressar politicamente no evento. 

De acordo com a Folha de S.Paulo, Bolsonaro ficou “furioso” e exigiu que o Partido Liberal desistisse da ação, o que aconteceu na segunda-feira 28. Seguindo o protocolo, o ministro do TSE revogou a decisão de censura e arquivou o processo. 

Censura é marca do bolsonarismo

Engana-se quem pensa que este é mais um fato isolado, fruto dos rompantes ditatoriais de Bolsonaro. A censura é uma das marcas deste governo e seus apoiadores. Quem não se lembra de Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), ex-prefeito da cidade do Rio de Janeiro, que tentou censurar o gibi “Vingadores – A cruzada das crianças” por conta de um beijo entre dois personagens gays, alegando “conteúdo sexual para menores”, em 2019? 

No mesmo ano, o STF realizou uma audiência pública sobre liberdades de expressão, artística, cultural e de comunicação. Artistas e organizações da sociedade civil, entre elas o Intervozes, se manifestaram no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 614, que questionava a alteração no Conselho Superior do Cinema e a Portaria 1.576/19, que suspendia o edital de chamamento para a produção de conteúdos para TVs públicas. O objetivo do governo era evidente: restringir o apoio a obras que contrariassem as orientações moral e religiosa daqueles que estavam no poder. Em outras palavras, sufocar a diversidade de vozes e visões de mundo nas produções artísticas e culturais financiadas com recursos públicos.

O sucateamento de instituições públicas e o esvaziamento de espaços de participação social, práticas recorrentes desde o primeiro dia deste governo, são dois braços da censura. Os trabalhadores da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), ameaçada de privatização pelo Executivo, que o digam. 

Os casos de censura na comunicação pública começaram a se multiplicar ainda na gestão de Michel Temer. O primeiro dossiê elaborado pelos trabalhadores da EBC e sindicatos de jornalistas contabilizou 61 casos de censura e governismo entre 2016 e julho de 2018. No segundo, que abarcou o período de 2019 a julho de 2020, os casos já haviam mais do que dobrado, chegando a 138 denúncias de censura e proselitismo político e religioso. Já o terceiro dossiê, lançado em outubro de 2021, mostrou um aumento exponencial: 161 casos de censura e 89 de governismo. Pela mídia tradicional, lê-se pouco a respeito desses casos. 

Outro elemento importante na composição do cenário de censura que se instaurou com a chegada de Bolsonaro à Presidência da República é a crescente violência contra jornalistas e comunicadores, ameaçando a liberdade de imprensa no país. 

De acordo com o relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 2019, os casos de ataques a veículos de comunicação e a jornalistas aumentaram 54% em relação ao ano anterior. Bolsonaro, sozinho, foi responsável por 58% dos casos, a maioria em divulgações oficiais da Presidência ou em redes sociais. Em 2020, o número de casos explodiu. Foram registrados 428 episódios de violência contra jornalistas, 105% a mais do que em 2019. Bolsonaro foi o principal agressor, mais uma vez, responsável por 40% dos casos. Em 2021, a situação se manteve praticamente inalterada, com 430 casos de ataques à mídia.

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) emitiu uma série de recomendações para agentes públicos sobre o tratamento dado a jornalistas e comunicadores, com o objetivo de garantir o respeito ao exercício profissional, a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o direito à informação. As perseguições políticas e ataques à liberdade de expressão por meio do uso indevido da Lei de Segurança Nacional, que em 2020 alcançaram um patamar preocupante, levaram o CNDH a emitir uma nota pública repudiando os ataques. Na nota, o Conselho ressalta que “quando críticas políticas são consideradas crimes, é a própria democracia que está em perigo. Nesse sentido, o uso sistemático da referida lei é instrumento amedrontador e silenciador da sociedade, e demonstra grave descompromisso do Brasil em garantir patamares mínimos de liberdade de expressão”. 

Além da censura e da violência contra comunicadores, outra marca do bolsonarismo na tentativa de cercear a liberdade de expressão é a violação do acesso à informação. A retirada dos dados sobre a pandemia de Covid-19 do portal federal escancarou essa estratégia. Em resposta a isso, os veículos de imprensa tiveram de se organizar em consórcio para garantir a apuração e veiculação dos dados diários sobre a crise sanitária. O governo também decretou sigilo centenário de informações sobre o presidente e seus filhos após pedidos feitos pela imprensa. 

Liberdade de manifestação e associação

Na mesma semana da tentativa de censura ao festival, Bolsonaro apresentou ao Congresso, na última sexta-feira 25, uma lei “antiterrorismo” com brecha para punir movimentos sociais, incluindo como passíveis de punição os atos com fins políticos ou ideológicos com emprego de violência. 

Este contexto faz com que o Brasil figure em destaque negativo no Relatório Global de Expressão, levantamento feito pela Artigo 19O País apresentou a queda mais expressiva no indicador de liberdade de expressão em todas as comparações realizadas: o indicador caiu 18 pontos em um ano, recuou 39 pontos em cinco anos, e 43 pontos em 10 anos. Com 46 pontos em um total de 100, o Brasil está com sua liberdade de expressão em “Restrição”, ocupando 94ª posição em um ranking de 161 nações, atrás de todos os países da América do Sul, com exceção apenas da Venezuela. O relatório indica que o declínio acelerou com a chegada de Bolsonaro à Presidência da República no início de 2019, com uma queda de 28% em apenas um ano.

A criminalização de movimentos, organizações e defensores de direitos humanos é particularmente aguda na área dos direitos ambientais, como ficou demonstrado durante os incêndios na Amazônia em 2019. Estes incêndios foram atribuídos a grupos ambientalistas. 

Segundo a publicação, os direitos das mulheres foram severamente afetados pelas políticas de Bolsonaro, com informações sobre direitos sexuais e reprodutivos, bem como informações sobre direitos trabalhistas, suprimidos. Em 2019, o orçamento federal para a implementação de políticas públicas de direitos das mulheres foi drasticamente reduzido. Em setembro de 2019, o governo federal pressionou os promotores a investigar a Revista AzMina por uma matéria que simplesmente detalhava recomendações da Organização Mundial de Saúde para realização de aborto seguro.

Desinformação

Outra arma comum do atual presidente e sua trupe desde antes de subir a rampa do Palácio do Planalto tem sido a produção e veiculação deliberada de informações distorcidas para desinformar os cidadãos. Quando não alcança a vitória com a estratégia de silenciar vozes opositoras, movimentos culturais e/ou políticos contrários aos seus, Bolsonaro apela para a mentira. Caso exemplar disso ocorreu durante o Acampamento Luta pela Vida – maior manifestação indígena do Brasil pós-Constituinte – que tomou conta de Brasília em setembro de 2021. A desinformação de que o protesto seria um preparativo para as manifestações pró-Bolsonaro, convocadas para o dia 7 de setembro, circulou amplamente em grupos do WhatsApp e do Telegram e posteriormente foi desmentida por manifestantes.

Além disso, Bolsonaro e seus aliados têm se voltado contra o próprio sistema eleitoral como estratégia de desinformar e desestabilizar as instituições e a democracia. O presidente iniciou uma verdadeira cruzada contra a urna eletrônica – reconhecida internacionalmente por ser um sistema altamente seguro, confiável e eficiente – alegando ter sido alvo de fraude nas eleições de 2018.

Em live realizada em 29 de julho de 2021, o presidente afirmou que apresentaria o que ele chamava de “provas” das suas alegações de fraude na eleição, mas mostrou apenas boatos que circulam há anos na internet e já foram desmentidos anteriormente. O conteúdo teve 1,3 milhão de visualizações, segundo levantamento do pesquisador Marcelo Alves, professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio.

A aprovação do Projeto de Lei nº 2630/20, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, deve ser um importante avanço no combate à desinformação. Além de prever medidas de regulação e transparência para as plataformas, o PL prevê também a regulação das contas de interesse público, utilizadas por entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, e pelos agentes políticos cuja competência advém da própria Constituição. Tais contas, deverão estar em conformidade com os princípios que regem a Administração pública, como a transparência. Veda ainda o recebimento privado de receitas publicitárias por parte de seus controladores.

Na paralela disso, o Tribunal Superior Eleitoral também tem buscado medidas mais efetivas na tentativa de que o cenário preocupante das eleições anteriores – no que tange à larga e livre difusão de fake news e de discurso de ódio – se repita. Mas é preciso medidas mais efetivas e de maneira progressiva para ir preparando o terreno até as eleições. Da mesma forma, espera-se que as demais esferas institucionais que alicerçam o Estado se unam em defesa da democracia, para que tenhamos, em outubro deste ano, o início de um momento histórico que marque a retomada e não a derrocada da democracia brasileira.

A lista de violações à liberdade de expressão cometidas por Bolsonaro e sua trupe é extensa. A liberdade de expressão segue ocupando um lugar central no debate político. E ainda faltam seis meses para as eleições. Aos ativistas, comunicadores, artistas, eleitores: apertem os cintos e empunhem seus megafones.

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