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Relações Judiciário-Executivo no governo Bolsonaro: os dois lados da moeda

O desgaste institucional é grande para ambos os lados e, certamente, terá implicações para os próximos governos

Foto: EVARISTO SA / AFP
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O texto foi originalmente publicado, em inglês, no blog PexNetwork.com, como parte da série Bolsonaro Government: a disruptive presidency?

O princípio da separação de poderes, que remonta ao clássico de Montesquieu, O Espírito das Leis, não está ancorado na ideia de convivência completamente independente entre Executivo, Legislativo e Judiciário, como se cada um deles funcionasse paralelamente aos demais no cumprimento de suas funções. Ao contrário, pressupõe um sistema de freios e contrapesos no qual a atuação dos poderes opera em áreas de intersecção, de modo que um poder controla os excessos dos outros, mantendo assim a autonomia de todos, mas sem que qualquer um ultrapasse de suas atribuições, prepondere sobre os demais e viole normas constitucionais.

Em momentos de funcionamento normal dos regimes democráticos, as interações entre os poderes são constantes e, por vezes, tensas. Contudo, não são parte corriqueira dessas interações ataques diretos, nem a necessidade de frear cotidiana e reiteradamente arroubos autoritários de integrantes dos demais ramos do Estado.

Porém, este é o cenário das relações entre Executivo e Judiciário durante o governo Bolsonaro, que está longe de ter funcionamento normal e, consequentemente, convivência harmoniosa com os demais poderes, outros níveis de governo e sociedade civil. 

Ao contrário, conforme argumentamos aqui, durante o governo Bolsonaro o Brasil vive um período turbulento das relações Judiciário-Executivo, marcadas por dois movimentos antagônicos. Por um lado, partem do Executivo ataques constantes às normas constitucionais e legais, bem como ao Poder Judiciário, incumbido de zelar por seu cumprimento. As invectivas do Executivo miram principalmente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral – assim como seus integrantes, individualmente. Não apenas se questiona o papel que compete às cortes e aos juízes no jogo democrático de um Estado de Direito, como também se produzem reiteradas ameaças à estabilidade institucional.

Por outro lado, o Judiciário atua para impedir o avanço de pautas antidemocráticas, no campo da política e retrocessos na garantia de direitos, no campo das políticas públicas, bem como violações do ordenamento constitucional, nos dois casos. Pode-se afirmar que um movimento reforça aquele com o qual antagoniza: o Executivo exorbita, o Judiciário põe freios e, por isso, o Executivo ataca o Judiciário, que precisa colocar novos freios.

Considerando tal antagonismo durante o governo Bolsonaro, discutiremos a seguir a atuação dos dois poderes. Por um lado, trataremos dos ataques do presidente ao ordenamento jurídico e a políticas públicas, bem como dos ataques perpetrados por ele e por sua base ao Judiciário, especialmente à justiça eleitoral, ao STF e a seus integrantes. Por outro, analisaremos a reação das cortes e dos juízes no sentido de interpor um dique, tanto às investidas autoritárias do governo contra a institucionalidade política brasileira, como às ações de desmonte de políticas públicas longamente construídas, já consolidadas e indispensáveis à garantia dos direitos sociais e políticos conquistados ou fortalecidos desde 1988. Concluiremos com considerações finais sobre este cenário e suas consequências para a democracia brasileira.

O Presidente ataca, o Judiciário reage 

Investido de seu mandato, começaram cedo os ataques do presidente Jair Bolsonaro contra o ordenamento institucional. Por isso mesmo, também começaram cedo as reações judiciais. E, nessa disputa, há um terceiro ator importante; ou, para sermos mais exatos, um terceiro conjunto de atores: os governadores de Estado. Parte considerável do conflito entre o presidente e o Judiciário decorreu da contenda também estabelecida por ele com os chefes de governo estaduais.

No princípio de maio de 2019, com apenas quatro meses completos de mandato, Bolsonaro editou um decreto que facilitava significativamente a obtenção do porte de armas no Brasil. Ao final desse mês, 14 governadores assinaram um manifesto se opondo à medida. Dentre eles, todos os do Nordeste (com os quais o presidente estabeleceria um relacionamento especialmente hostil) e mais cinco de outras regiões. Além disso, como se poderia esperar, partidos de oposição ingressaram com ações no STF pedindo a anulação da medida.

O frenesi governamental na edição de decretos e medidas provisórias, assim como o caráter altamente discutível e controverso de ambos, levou a uma avalanche de ações no Supremo. Em meados de maio de 2019 já eram 30 as medidas do governo alvo de contestação no STF, contra apenas duas de Dilma Rousseff e seis de Michel Temer em igual período.

Ainda nesse mesmo mês as bases populares bolsonaristas foram às ruas em manifestações contra o STF e o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Manifestantes já pediam naquele momento a deposição de juízes da Suprema Corte.

O motivo para a ira bolsonarista contra o Supremo eram decisões do tribunal contrárias a medidas adotadas pelo governo, como o decreto 9.759, que extinguiu e modificou diversos conselhos de órgãos federais, reduzindo a participação social no âmbito do Executivo. Como a instituição desses órgãos se deu por meio de lei, não poderiam ser extintos ou transformados por decreto presidencial. Após uma decisão liminar do ministro Marco Aurélio Melo, formou-se uma maioria no colegiado e suspendeu-se a medida.

Esse posicionamento da corte era apenas mais uma em meio a um turbilhão de derrotas presidenciais no Legislativo e no Judiciário. Os contratempos no Congresso (como as Medidas Provisórias caducadas) alimentaram a animosidade de Bolsonaro e seus seguidores contra o presidente da Câmara, Rodrigo Maia; as derrotas judiciais (derrubando decretos e MPs) produziram efeito similar contra o Supremo.

Essa difícil relação do Executivo com os outros dois poderes se manteve até o final de 2020, quando finalmente Bolsonaro desistiu da ideia de governar sem uma coalizão e aderiu ao Centrão para se proteger e evitar que decisões contrárias a sua vontade fossem tomadas no Congresso. Porém, apesar da relação com o Legislativo melhorar significativamente, principalmente porque o desafeto Maia foi substituído pelo aliado, Arthur Lira, os problemas com a alta cúpula do Judiciário permaneceram.

Também permaneceu o conflito com os governadores, em particular aqueles em que o presidente enxergava potenciais adversários eleitorais em sua tentativa de reeleição. Era esse o caso de Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, e João Dória, de São Paulo. Ambos apoiaram a eleição de Bolsonaro, mas se tornaram seus inimigos ao deixar claras suas ambições.

Se potenciais adversários eleitorais viravam alvo, tornavam-se desafetos também governadores percebidos como não alinhados ao projeto presidencial. Era esse o caso dos nove mandatários dos estados do Nordeste, a quem Bolsonaro se referia pejorativamente como “paraíbas”. O relacionamento piorou quando foi criado o Consórcio Nordeste, iniciativa decorrente em boa medida da percepção de que não se poderia contar com o governo federal para muita coisa. Inconformado com a rebeldia, que depois se manifestaria de forma ainda mais intensa durante a pandemia da Covid-19, o presidente os acusou de quererem “a divisão do Nordeste contra o resto do Brasil”. Com tantas diferenças em relação aos governos estaduais, não é de se estranhar que tenha naufragado a iniciativa de transformação do “pacto federativo”, feita por proposta de emenda constitucional do Executivo.

Esse embate com os governos subnacionais seguiu pelos anos seguintes e escalou principalmente após o início da pandemia da Covid-19, tendo como resultado também uma escalada do conflito com o STF. Diante da emergência sanitária, estados e municípios passaram a tomar medidas restritivas, com vistas a deter o contágio. O presidente se opôs a elas, pois, segundo ele, a economia não poderia parar. Para evitar tais ações, editou medida provisória que impedia a governos estaduais e municipais criar restrições ao funcionamento normal de diversos tipos de atividade.

Essa MP foi alvo de um questionamento pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), que arguiu sua inconstitucionalidade. Relator do caso, o ministro Marco Aurélio Melo deferiu o questionamento parcialmente, de forma liminar: manteve em vigor a medida provisória, mas manteve a autonomia de estados e municípios para determinar medidas restritivas, no exercício de suas competências constitucionais. Em decisão por ampla maioria (nove votos a zero, de todos os presentes à sessão) a corte decidiu em prol da autonomia decisória dos governos subnacionais, impondo nova derrota ao Executivo federal.

Inconformado com a decisão do STF, um mês depois, Bolsonaro editou decreto que considerava salões de beleza, barbearias e academias de ginástica como atividades essenciais que, portanto, deveriam permanecer abertas. Governadores e prefeitos optaram por simplesmente ignorar a determinação presidencial, amparando-se no entendimento firmado pela Suprema Corte. Embora o presidente tenha declarado pelas redes sociais que “os governadores que não concordam com o decreto podem ajuizar ações na Justiça ou, via congressista, entrar com projeto de decreto legislativo”, eles sequer se deram ao trabalho.

O inconformismo do presidente com tal situação o levou a diversas vezes afirmar que estava com as mãos amarradas, impedido de agir na pandemia por determinação do Supremo, que teria transferido todo o poder decisório para governadores e prefeitos. “Lembro à nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos”, disse ele numa postagem de rede social.

Em paralelo a essa queda de braço no âmbito federativo, mediada pelo STF, outras frentes de atuação da Suprema Corte atormentavam o presidente: investigações conduzidas pelo ministro Alexandre de Moraes sobre a organização de atos antidemocráticos por grupos bolsonaristas, assim como a difusão de notícias falsas. Como esses inquéritos atingiam pessoas muito próximas ao presidente, inclusive seus familiares, Bolsonaro considerava haver uma perseguição pessoal a ele por alguns juízes, especialmente o próprio Moraes.

Essa tensão culminou em dois grandes comícios presidenciais no dia 7 de setembro de 2021 – um em Brasília, outro em São Paulo – quando Bolsonaro afirmou que Moraes ultrapassou suas atribuições e deveria pedir para sair do cargo; disse ainda que não acataria quaisquer decisões vindas do magistrado.

Tal episódio produziu uma grande crise, levando diversos atores relevantes a discutir seriamente a necessidade de um impeachment do presidente, já que ele anunciava uma ruptura institucional e parecia acreditar que não tinha limites. A reação disseminada pela classe política assustou Bolsonaro, que dois dias depois se retratou, mediante uma nota escrita a seu pedido pelo ex-presidente Michel Temer. A crise arrefeceu, mas não por muito tempo: já nos primeiros meses de 2022 o presidente voltou à carga contra o STF.

Por fim, outra frente de embate do Executivo com o Judiciário se dá no âmbito eleitoral. Desde sua campanha presidencial, Jair Bolsonaro lança dúvidas sobre a confiabilidade do processo eleitoral brasileiro – no caso, o voto na urna eletrônica e sua contabilização.

Afirma ele que tal voto não seria auditável (o que é falso) e que diversas falhas e manipulações ocorrem nas urnas (o que é igualmente falso). Por isso, defende que o voto seja impresso, de modo que se possa coligir o resultado dos boletins de votação eletrônica com cédulas depositadas em urnas físicas. Recorrendo ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em que ministros do STF têm participação preponderante, foi derrotado em sua tentativa de instituir o voto impresso. Também fracassou sua aposta de aprovar tal  medida por emenda constitucional, pois não se atingiram os votos necessários na Câmara e a proposta ali morreu, sem sequer ser apreciada pelo Senado.

Em decorrência da defesa ardorosa do sistema eletrônico de votação, feita pelo então presidente do TSE, o ministro do STF Luís Roberto Barroso, Bolsonaro dirigiu contra ele suas baterias. Atacou-o afirmando que estava a fazer política, pois sua pressão sobre o Congresso teria levado à derrota da emenda que instituiria o voto impresso. Além disso, seguiu afirmando sem qualquer evidência que a urna eletrônica era sujeita a fraudes. O resultado disso foi um embate público entre Barroso e Bolsonaro, com o ministro afirmando explicitamente que o presidente da República mentiu. A tensão chegou ao ponto do chefe de governo se negar a comparecer à posse de Luiz Edson Fachin como sucessor de Barroso na presidência da corte eleitoral. E a previsão de tensões ainda maiores se desenhava, diante da iminência do maior desafeto de Bolsonaro na corte, Alexandre de Moraes, ocupar a presidência do TSE durante as eleições de 2022.

Considerações finais

A estratégia política de Jair Bolsonaro é a do ataque contra as instituições e atores políticos e sociais. Não tem sido outra a sua postura no que diz respeito ao Judiciário e seus membros. Seja na relação com o Supremo Tribunal Federal, seja com a justiça eleitoral, elas são atacadas constantemente, e especialmente quando as decisões judiciais são contrárias às vontades do presidente.

Após um embate, Bolsonaro recua taticamente. Recolhe-se num momento de maior dificuldade ou risco para, pouco depois, retomar a investida contra as instituições e atores políticos. Essa dinâmica de morde-assopra caracteriza o modo de agir do presidente da República e tem pautado a relação entre Judiciário e Executivo no Brasil durante o governo Bolsonaro. A cada novo recuo tático ele ganha mais tempo. E, com o passar do tempo, medidas mais efetivas que pudessem ser tomadas contra ele – como um processo de impeachment – tornam-se mais improváveis.

Embora o Judiciário e seus membros venham enfrentando os ataques de maneira resiliente, o fato é que o desgaste institucional é grande para ambos os lados e, certamente, terá implicações para os próximos governos.

Do lado do Executivo, será preciso lidar com um Supremo mais ativo e combativo, já que este assumiu papel importante na defesa da política e das políticas públicas durante a presidência de Bolsonaro. Do lado do Judiciário, será preciso diminuir a desconfiança em relação a prováveis propostas de mudanças de regras do jogo, instituições ou políticas. Enfim, o desgaste promovido pelo chefe do Executivo para as relações entre poderes está dado; resta-nos observar como elas serão reconstruídas no futuro.

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