Fora da Política Não há Salvação

Um espaço para discutir política, uma dimensão inescapável de nossa existência. Idealizado pelo cientista político Cláudio Couto.

Fora da Política Não há Salvação

O governo-movimento de Bolsonaro no exterior

Reunião do G20 proporcionou síntese da gestão: isolamento, incompetência, desprezo, truculência, inadequação, cafonice e vexame

Foto: Alberto PIZZOLI / AFP
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A passagem de Jair Bolsonaro pela Itália neste final de outubro, início de novembro, para a reunião do G20 e o recebimento de homenagem por ultradireitistas, proporcionou uma síntese exemplar do que é seu governo: isolamento, incompetência, desprezo, truculência, inadequação, patetice, cafonice e vexame. Ou seja, tudo aquilo que os bolsonaristas desejam e consomem avidamente.

Isso tão evidente para os que, ao redor do mundo, têm capacidade de entender a política, que não faltou sequer uma observação ferina de Angela Merkel, após o presidente brasileiro lhe ter pisado no pé: “Só podia ser você”. Mesmo que bem-humorada, a frase é reveladora da forma como Bolsonaro é visto por outros chefes de Estado e de governo: um pateta desajeitado, na percepção mais benigna e cabível nos limites do que permite a etiqueta diplomática. Fosse só isso, não seria tão ruim como de fato é.

Bolsonaro é também percebido por seus pares (sic) dos outros grandes países do mundo como um sujeito sem condições de ocupar o cargo para o qual se elegeu – ou seja, não é visto exatamente como um par. Daí o constrangedor isolamento a que foi submetido durante a reunião de líderes mundiais. As imagens do presidente brasileiro deslocado, excluído da rodinha de conversas dos demais governantes, sem sequer saber quem era quem, explicitam sua condição de um pária, despreparado para frequentar foros dessa natureza e incapaz de ser levado a sério pelos demais.

Não conseguiu a atenção respeitosa sequer dos garçons italianos com os quais tentou interagir e que estavam ali para servir aos governantes. Suas piadas extemporâneas e sem graça sobre a rivalidade futebolística entre os dois países foram incapazes de comover aos funcionários. Aliás, na falta de coisa mais relevante a tratar, também foram piadas de futebol que pautaram sua conversa com Merkel, ao lado de quem se sentou, durante o jantar oficial do evento. Não fosse a conversa inevitável por conta do lugar à mesa, possivelmente lhe sobraria apenas a observação sarcástica sobre o desajeitado pisão no pé. Noutro momento, dando mostras de seu ressentimento com a imprensa e falta de altivez frente a políticos de maior envergadura, também tentou convencer a primeira-ministra alemã que não é tão mau quanto se diz por aí. Alguma conversa sobre interesses comuns dos dois países? Quem dera…

Aliás, o presidente brasileiro não teve durante a reunião do G20 um único encontro bilateral, em que os interesses brasileiros pudessem ter sido abordados com outros governos. Do que foi dispensado a outros líderes contou apenas com a recepção protocolar pelo presidente italiano – que, diferentemente do primeiro-ministro, apita pouco. Contou também com uma conversa, arranjada de improviso por seus funcionários, com o autocrata turco Recep Tayyp Erdogan. Ela se deu em meio ao burburinho do coquetel e nela Bolsonaro tentou dar uma versão benevolente de sua própria imagem, mentindo acerca de tudo que lhe foi perguntado e sendo incapaz de perguntar o que quer que fosse sobre a Turquia.

Assim como na superficial interlocução com Merkel, seu bate-papo com Erdogan confirmou que Bolsonaro não tem muita noção do que se passa noutros países, assim como nem ao menos tenta demonstrar algum interesse sobre o pouco que talvez saiba. Sua conduta revela um misto de ignorância, narcisismo, despreparo e grosseria – nada que possa surpreender a nós, brasileiros, forçados que somos a conviver com isso diuturnamente.

Além desse vexame na reunião do G20, em que houve ainda o episódio embaraçoso do premiê italiano se negando a lhe estender a mão (como fizera com todos os demais líderes presentes), o presidente brasileiro causou tumulto nas ruas. Agressivo como de costume com jornalistas, que têm por dever de ofício fazer a políticos perguntas das quais estes talvez não gostem, Bolsonaro insuflou contra eles os jagunços que respondiam por sua segurança. Desse modo sobraram socos, empurrões e torções nos braços de repórteres, fossem homens ou mulheres. Nosso mandatário teve, assim, a oportunidade de dar mostras aos europeus, in loco, de sua truculência. Os bolsonaristas se regozijaram.

A permanência na Itália, abdicando da ida à Escócia, onde ocorreria a Conferência da Mudança Climática da ONU, explica-se por alguns motivos. Primeiro, porque Bolsonaro nada teria a dizer em Glasgow e, consequentemente, evitar a ida à COP era uma forma de se preservar das pedradas que inevitavelmente receberia, como bem notou o vice-presidente, Hamilton Mourão. Segundo, porque a agenda italiana do presidente brasileiro lhe importava mais, dando a medida de suas prioridades: receber a cidadania honorária em Anguillara Veneta e se encontrar com Matteo Salvini, líder da extrema-direita italiana – ou seja, desta vez sim, um par.

Bolsonaro e Salvini. Foto: AFP

A truculência bolsonaresca, com os préstimos da polícia italiana, repetiu-se no tratamento dado a manifestantes que foram a Pádua protestar contra a presença do presidente brasileiro, com direito a jatos d’água, bombas de gás e cacetadas. O cenário foi menos hostil na pequena comuna de Anguillara Veneta, onde houve protestos contra a concessão a Bolsonaro do título de cidadão honorário pelo governo de extrema-direita do vilarejo setentrional. Nos dois municípios italianos, além dos usuais gritos de “Mito! Mito!” entoados por sua claque, teve também de ouvir impropérios como “Salvini cretino, Bolsonaro assassino!”.

Apesar do papel constrangedor que desempenhou durante a cúpula do G20, Bolsonaro logrou produzir em solo italiano o tipo de espetáculo político que motiva sua base e a mantêm agitada: caminhar a pé pelas ruas “em meio ao povo” (sic), em Roma ou no vilarejo de seus antepassados, jantar com parentes distantes e curiosos para lhe conhecer, reunir apoiadores fanáticos, maltratar jornalistas e insuflar o espancamento tanto deles como de opositores. Para bolsonaristas isso tudo é um néctar dos deuses romanos.

Para tal séquito pouco importa que os resultados concretos da política externa bolsonarista sejam nulos ou, pior do que isso, negativos, assim como pouco importa que domesticamente suas políticas (ou a ausência delas) sejam desastrosas no trato da pandemia, da economia, do meio-ambiente, da educação, da cultura, da pobreza, da desigualdade ou de qualquer outra área relevante da qual se esperariam resultados de qualquer governo normal. O que interessa é a constante agitação, a guerra cultural e a provisão da ração diária de violência simbólica ou real.

A anormalidade do bolsonarismo – presente na liderança carismática que o encarna, no governo disfuncional que produz, no irracionalismo de base que o alimenta e no fanatismo de seus fiéis – pauta os critérios de avaliação que fazem seus adeptos desse movimento que ora ocupa o governo. É por isso que, apesar do tamanho do desastre que produz, a avaliação do presidente e sua gestão (sic) mantém um patamar firme, entre um terço e um quarto do eleitorado, abaixo do qual não parece ceder, aconteça o que acontecer.

Não é de políticas públicas efetivas e seus resultados que se trata, mas da continuada afirmação de identidades e mobilização de afetos – em especial os negativos, como o ódio. Bolsonaro assegura essa provisão à sua base tanto dentro do país, em suas motociatas, aglomerações e comícios, como no exterior, em espetáculos vexaminosos como seu surreal discurso na ONU, seu périplo pela Itália ou seu desprezo à COP-26. Por isso mesmo, não poderíamos imaginar que ele fosse capaz de, ou quisesse, entregar outra coisa.

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