Fashion Revolution

Transparência das empresas é o caminho para melhores condições de trabalho na moda

Você sabe quem fez a sua roupa? Quem costurou? Quem colocou o zíper na calça? Quais as condições de trabalho?

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“Quando precisou ser atendida na emergência de uma maternidade e, com dores, não pôde trabalhar, a mulher [que estava grávida] foi penalizada com restrição de alimentação: ela e suas três filhas receberam apenas chá como jantar em uma noite, somente o café da manhã no dia seguinte e, no terceiro dia, o jejum foi total”.

Este trecho do relatório do resgate de trabalhadores escravizados  em uma oficina de costura da maior marca plus size do Brasil é apenas uma amostra das graves violações que ocorrem na indústria da moda no Brasil. E do quanto ainda precisamos avançar. 

Há 21 anos a Repórter Brasil denuncia violações trabalhistas nas mais diferentes áreas, seja em plantações de laranja, na construção civil ou no setor têxtil, que merece nossa atenção por sua relevância na indústria nacional. O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial dos maiores produtores têxteis e é o quarto maior produtor de vestuário do mundo. No entanto, mesmo com o faturamento milionário do setor (que em 2019 foi de R$ 185,7 bilhões), já houve  casos de trabalho análogo à escravidão inclusive em marcas famosas, como Zara e Amissima

Em se tratando de grandes grifes já autuadas, são exceções as que criaram mecanismos efetivos de combate ao trabalho escravo. Muitas ainda se recusam a divulgar de onde vem o zíper da calça ou mesmo a calça por inteiro.

No Brasil, o trabalho análogo à escravo é definido pelo artigo 149 do Código Penal, e é caracterizado principalmente como um crime contra a dignidade humana. Segundo definição do Código Penal, para configurar exploração de trabalho análogo à escravo é preciso ser constatado que o trabalhador tenha que cumprir jornadas excessivas de trabalho ou que atue em ambientes insalubres, sem condições mínimas de saúde e segurança. Há quatro possibilidades de caracterização desse tipo de exploração trabalhista: trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívidas e/ou condições degradantes; sendo que esses elementos podem acontecer juntos ou isoladamente.

Um dos motivos que torna a indústria do vestuário suscetível a casos de trabalho escravo está na chamada “fast fashion”. Esse modelo impõe uma produção massiva por conta da troca constante de coleções, para acompanhar as tendências, e também exige preços baixos, para incentivar o consumo de massa. É um sistema no qual tudo é produzido, consumido e descartado em um curtíssimo espaço de tempo. E o crescimento dessa modalidade agravou problemas como a poluição do meio ambiente, a baixa qualidade dos produtos e o uso de trabalho escravo na produção.

O Monitor #11 da Repórter Brasil mostra que o modelo que predomina hoje no setor vem se consolidando desde a década de 1990, “quando se intensificaram a entrada de produtos asiáticos com preços mais atrativos, a rotatividade dos produtos nas prateleiras e o ritmo de produção”.

Com isso, ainda segundo o Monitor, “muitos fabricantes brasileiros se viram pressionados a reduzir os custos de produção para garantir a sobrevivência do negócio”, o que acabou fazendo com que as etapas de produção com mão de obra intensiva fossem terceirizadas “a pequenas oficinas com condições de trabalho precárias e, em alguns casos, configurando-se como trabalho escravo contemporâneo”. 

O cenário é tão grave que 41% dos consumidores já ouviram falar do envolvimento da indústria ou varejo têxtil e da moda com trabalho forçado, 38% com exploração e más condições de trabalho e remuneração dos trabalhadores, 31% com exploração de migrantes e refugiados e 28% com trabalho infantil, de acordo com uma pesquisa feita pela Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX). 

Violações como essas, aliadas a outras como servidão por dívidas, fazem parte do chamado “sweating system”. Segundo um artigo do auditor fiscal do Trabalho Renato Bignami, publicado no site do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho, nesse sistema, a produção de vestuários, calçados e outros produtos da moda é dividida entre pequenas, médias e microempresas, diminuindo o valor do trabalho e abrindo brecha para condições degradantes de trabalho e moradia. 

Nesse modo de produção, cada uma das chamadas “facções” fica responsável pela fabricação de uma parte da peça final. Essa terceirização e às vezes até quarteirização é implementada para baratear o produto, pela grande quantidade de peças a serem produzidas ou ainda pelo curto prazo de entrega.  

Além disso, um novo movimento vem sendo notado por quem trabalha com pessoas resgatadas de condições análogas à escravidão nesse setor: o grande número de trabalhadores se tornando microempreendedor individual e trabalhando para essas “facções” com jornadas de trabalho de 12 horas, ou mais, por dia – e com a ilusão de liberdade de serem donos do próprio negócio.

Como exemplo, podemos citar o relato de um boliviano resgatado de uma das maiores empresas de moda plus size do Brasil: “Trabalhávamos até às 3h da madrugada. E os patrões não pagavam os salários. Eu fiquei 3 meses sem receber”.

É necessário que as empresas desse setor sigam as recomendações dos órgãos responsáveis e das organizações da sociedade civil que atuam com o tema para que possam ampliar a transparência ao longo de toda a produção de suas peças, como sugere o Monitor da Moda 2021. Algumas dessas sugestões passam pelo sistema de monitoramento da cadeia produtiva das marcas, exigindo responsabilidade de seus fornecedores, com o pagamento de salários decentes e de um preço justo pelas peças. Há orientação também no sentido de se garantir condições de trabalho adequadas e respeito às legislações trabalhistas e ambientais; além da defesa de uma transparência para o público sobre seus fornecedores e mecanismos de monitoramento.

No entanto, precisamos fazer uma pergunta: você sabe quem fez a sua roupa? Quem costurou? Quem colocou o zíper na calça? Quais as condições de trabalho de quem fez a sua roupa? Quanto ganhou? Para a maior parte dos brasileiros, a resposta para essas perguntas é não. Cada vez mais, as marcas são cobradas por transparência no setor – um passo crucial para termos condições de trabalho justas na fabricação de uma roupa. 

Que o Índice de Transparência da Moda 2022 possa ser um instrumento de incentivo para que mais empresas e marcas divulguem os processos de produção de suas roupas com consciência, sustentabilidade e ética, e para que a sociedade brasileira possa buscar mais informações sobre as roupas que compra e veste. 

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