Fashion Revolution

Lucrativa e ligada ao desmatamento na Amazônia, a indústria do couro ainda foge de suas responsabilidades

Relatório Índice de Transparência na Moda Brasil 2023 destaca falta de transparências e os impactos do couro no meio ambiente

Tratamento de couro. Foto: Divulgação
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O couro não é um subproduto da pecuária e não está “reaproveitando” o que iria, invariavelmente, para o lixo. Isso é conversa para boi dormir. Escondida sob esse argumento, esta indústria que alcança lucro bilionário – US $ 1,1 bilhão, em 2021 – e exporta para 76 países ainda está em falta com suas responsabilidades.

Ainda falta, e muito, transparência e comprometimento ao setor. É o que destaca o Relatório Índice de Transparência na Moda Brasil 2023, do Instituto Fashion Revolution.

Publicado anualmente desde 2018, o ITMB analisa dados divulgados pelas 60 maiores marcas de moda que atuam no Brasil. Programado para ser lançado no final de novembro, o relatório traz destaque para o bem-estar animal e práticas no setor coureiro. “Acreditamos ser chave monitorar a transparência das maiores empresas de moda sobre como elas se relacionam com o bem estar dos animais quando estes são utilizados em sua produção”, explica Isabella Luglio, coordenadora do ITMB.

A análise é feita por dois indicadores: um sobre divulgação de políticas internas e outro sobre como essas políticas são colocadas em prática. “Apenas proibir o uso de qualquer fibra derivada de animais não é o suficiente para pontuar”, afirma Isabella, “estamos buscando por políticas com uma abordagem mais ampla como a das ‘Cinco Liberdades‘”.

Cálculos apontam que ao menos 1 hectare de terra no Brasil é desmatado para se produzir menos de 10 bolsas de couro

A falta de políticas a respeito do tema é um grande desafio. “Não utilizar matéria prima animal também não torna as empresas automaticamente veganas e não as exime de possuir um política sobre o tema”, reflete Isabella, “algumas marcas têm dificuldade de compreender isso”. O não uso do couro animal é, muitas vezes, uma escolha por preços mais baixos – dando preferência a substitutos sintéticos – do que por ideologia ou ativismo.

O reflexo do baixo comprometimento aparece nos números do relatório: enquanto a pontuação média geral da seção Política e Compromissos aumentou consideravelmente neste ano, em comparação com 2022, as políticas de sobre bem-estar animal pontuam entre uma das menos divulgadas.

Para a pesquisadora e comunicadora Claudia Castanheira, é importante que as empresas forneçam informações sobre suas políticas, pois “o tema do bem-estar animal está ligado, muitas vezes, a questões ambientais mais complexas, como o desmatamento da Amazônia por conta do couro”. Como aponta o relatório Under their skin: a report series on leather, toda a cadeia de abastecimento do couro, incluindo as explorações agrícolas, deve ser considerada ao analisar as implicações ambientais e éticas da sua utilização pela moda.

A indústria coureira também está ligada ao desmatamento da Amazônia

Essa ligação é, realmente, de carne e unha: ainda segundo o relatório, o couro representa até 26% do rendimento dos principais frigoríficos do mundo. Na lista dos principais produtores de pele natural e cru, o Brasil figura em 3º lugar. Já na dos principais produtores de couro curtido, ficamos em 2º lugar, perdendo apenas para a China.

Falta de transparência 

A indústria do couro, assim como a da carne, é longa, complexa e opaca. Segundo relatório de 2023 do IPAM, uma marca do setor é a reduzida integração entre a rastreabilidade da matéria-prima dos curtumes (pele), oriundas dos frigoríficos, e a rastreabilidade interna do seu produto (couro).

Rastreabilidade é definida pelo Grupo de Trabalho da Pecuária Sustentável (GTPS) como “processo de identificação de insumos e matérias primas de produtos da pecuária bovina de corte em todas as localidades percorridas da cadeia de valor da carne e do couro, desde a fazenda de origem, recepção, produção, transformação e distribuição”.

O documento também aponta que, de modo geral, no setor do couro, a rastreabilidade é feita por lotes, não couro a couro, por conta da dificuldade de receber informações individualizadas das fazendas. “A relação dos curtumes se dá, de modo geral, com os frigoríficos e não envolve os produtores rurais”, destaca.

Outros desafios levantados são: a falta de assistência a pequenos produtores rurais, o conservadorismo e desinteresse em investir em rastreabilidade e a regularização fundiária e ambiental das propriedades rurais no Brasil.

E como funciona uma ferramenta de rastreabilidade na indústria do couro? Uma das opções é o reconhecimento facial – ou, melhor, por focinho – que evita que o animal tenha pele ou orelha machucadas. O sistema opera por meio de blockchain e, assim, o pecuarista pode ter controle do rebanho e certidão de nascimento dos animais Puros de Origem (OP).

Com quantos hectares se faz uma bolsa de couro?

Você já se perguntou com quantos hectares se faz uma bolsa de couro? E uma bota de couro? Cálculos da organização CIRCUMFAUNA apontam que ao menos 1 hectare de terra no Brasil é desmatado para se produzir menos de 10 bolsas de couro. Já para 17 pares de botas, são necessários 1 hectare e meio.

Em relação às emissões de gases do efeito estufa (GEEs), uma bolsa de couro emite 100.5 kg de CO2e (dióxido de carbono equivalente), e para botas de couro, 66 kg de CO2e. É importante destacar que não é apenas o desmatamento que tem impacto ambiental, mas também a degradação dos solos, pelo pisoteamento dos bois. Como consequência, vem a erosão do solo, que tem impacto direto nos sistemas marinhos e de água doce.

Quando se pensa em bem-estar animal – e esse bem-estar nunca vai estar pleno em um cenário de subordinação e morte – é impossível não relacionar com o bem-estar do planeta e de nós, humanos. Apesar de pensarmos nessas três coisas de forma separada, elas estão interligadas entre si.

Como aponta o Collective Fashion Justice, “a exploração dos nossos semelhantes está frequentemente ligada à exploração humana; talvez não seja surpreendente, dado que a produção de materiais derivados de animais está enraizada na negação da autonomia corporal a estes indivíduos”. Proteger os animais é proteger o planeta, que por sua vez é proteger o meio ambiente, que, veja bem, também é proteger nossas vidas.

O futuro da moda é aquele que mantém uma ética total. Comecemos pela transparência. Se as cadeias de fornecimento forem transparentes, não haverá como esconder práticas ilegais.

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