Diplomacia para Democracia

Reflexões sobre uma política externa brasileira independente

Diplomacia para Democracia

Política externa: repetir erros, nem pensar

Uma política externa nacionalista, democrática e popular sofrerá resistências

O chanceler Ernesto Araújo. Foto: Evaristo Sá/AFP Araújo, vamos acabar com tudo isso aí, talkey? (Foto: Evaristo Sá/AFP)
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O bolsonarismo tem pelo menos um mérito: representa tal grau de incivilidade reacionária que estimula, torna um imperativo ético, posicionamentos sobre os rumos do país. Favorece também, como citado por Lula ao rememorar Paulo Freire, o movimento de aproximação de divergentes para combate aos antagonistas. É notável como, mesmo diante das intimidações, de certo desalento geral e do estrangulamento financeiro, proliferaram iniciativas de resistência e reorganização do campo democrático, de discussões sobre bases e projetos para a reconstrução do Brasil.

No campo da política externa, o Instituto Diplomacia para Democracia lançou, ainda em 2020, o programa Renascença, com 10 objetivos gerais e 100 metas específicas. No ano seguinte, organizou extenso ciclo de conversas, em esforço de abrangência e extensão inéditas. Mais recentemente, em julho, editou duas coletâneas com diagnósticos e propostas para o pós-Bolsonaro. 

O Observatório de Política Externa Brasileira da UFABC, em pouco tempo de existência, já organizou três livros com importantes contribuições. A Cátedra José Bonifácio, na USP, liderada pelo embaixador Ricupero, vem construindo relevantes reflexões. O Observatório da Extrema Direita aprofundou análises fundamentais. A Associação Brasileira de Relações Internacionais marcou presença nos debates e em outros projetos. Nas últimas semanas, ao redor do bicentenário, muitos têm sido os encontros entre pensadores de uma diversidade de centros de estudos, de distintas regiões do país, que se alimentam de outras redes de debates criadas durante a pandemia. 

Além de boa macroeconomia, sem dogmas, será essencial aprender com equívocos ocorridos no ciclo dos governos Lula-Dilma

Poderíamos citar ainda esforços coletivos, não limitados a política externa, como os do Movimento Brasil Popular, ou trabalhos de associações de servidores públicos como o FONACATE e a AFIPEA. Tivemos ciclos de fundações partidárias e as muitas articulações internacionais, cada vez mais atuantes, dos povos indígenas, do movimento negro, de mulheres e de movimentos sociais. Além, é claro, das contribuições e esforços individuais, é notável a multiplicidade de exercícios sobre o Brasil e suas relações internacionais.

Passando da reflexão para a ação, neste momento, véspera de eleições, há tensão, mas prevalece a esperança de que a democracia sairá vitoriosa. Fundamental é ampliar esforços nesta reta final, mobilizar pessoas nas ruas e redes. Dialogar com a população para derrotarmos a extrema-direita é o objetivo prioritário. Todas as variáveis devem levar isto em conta, nossa energia precisa se concentrar nesta tarefa imediata e fundamental. Mesmo assim, é inevitável, e compreensível, que cresça a ansiedade e especulações sobre rumos do novo governo. Até porque não haverá tempo a perder. 

O que será feito de todo esse acúmulo de reflexões e propostas? Quais serão os perfis e projetos para o Brasil no turbulento ano que teremos em 2023? São definições difíceis, condicionadas ao quadro político resultante das eleições. Dependerão das conversas de Lula com Alckmin, de arranjos para um governo de coalizão, de consultas com a sociedade e movimentos sociais, com partidos, empresários e parceiros diversos.  

Mal organizados, Brasil e América Latina correm o risco de se tornarem campo de disputas entre EUA, China e outros atores

Tendo em vista o plano de governo, podemos antecipar algumas orientações gerais. Na economia, mantendo controle sobre a inflação, são esperadas retomada de investimentos públicos, medidas emergenciais de combate à fome e ao desemprego, suporte a pequenas e médias empresas e a pessoas físicas endividadas. Especula-se um ministro com perfil negociador e a reativação de instrumentos como os ministérios do planejamento e do desenvolvimento. 

Na política externa, Lula e Celso Amorim por si só já farão com que o Brasil volte a ser ouvido. Num mundo em crise, sem grandes lideranças, suas figuras experientes e altivas serão bem-vindas. Pode-se apostar em algumas direções: serão reafirmados princípios como a independência nacional, a cooperação para o progresso dos povos e a prevalência dos direitos humanos; não haverá alinhamentos automáticos com quaisquer polos de poder; prioridade será dada para a integração com América Latina e Caribe e aproximação com a África; o Brasil é potência ambiental e deverá retomar centralidade nos debates globais sobre biodiversidade e mudança do clima. 

Para que funcione, para que um novo projeto se sustente, além de boa macroeconomia, sem dogmas, será essencial aprender com equívocos ocorridos no ciclo dos governos Lula-Dilma. No duro jogo da política internacional, não há lugar para desatenção, não pode haver acomodação. Repetir erros, então, nem pensar. É preciso ter claro que um caminho nacionalista, democrático e popular sofrerá resistências, sendo alvo contínuo de sabotagens e tentativas de desestabilização por atores externos, mas também por forças internas.

Carreirismos, oportunismos, cooptações, vaidades, ambições… nos últimos anos, pudemos testemunhar como o vira-latismo, as mentes colonizadas, desgraçadamente, prevalecem entre setores importantes de grupos privilegiados, inclusive no aparelho de Estado. Um governo de reconstrução terá que montar um time coeso e confiável. Precaver-se em todos os sentidos, administrar pressões, ampliar a coordenação na Esplanada e entre postos no exterior, com o Judiciário e o setor de defesa, procurar apoio parlamentar, transparência nas articulações com o setor privado, diálogo com a sociedade e com movimentos sociais, zelar pelas opções políticas do governo, aumentar e diversificar quadros, reforçar a integração com os vizinhos, em instituições internacionais, mas também nas fronteiras, em parcerias com unidades federativas, em esforços com universidades e demais agências públicas. 

O mundo está ainda mais desigual, instável e perigoso. As organizações internacionais, em crise. A população, exigente e impaciente. Mal organizados, Brasil e América Latina correm o risco de se tornarem campo de disputas entre EUA, China e outros atores. Nossa atuação internacional, para além de coerente e eficaz, terá que ser sólida e consistente no tempo. Circunstâncias internas e externas jogarão contra. Os desafios serão enormes. Distraídos, perderemos.

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