Diálogos da Fé

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Religião nas eleições 2022: o saldo final e o que esperar do futuro

Ao novo governo emerge o desafio não apenas de conviver com esta nova realidade, mas aprender dela e considerar os múltiplos espaços de audição e de diálogo

Villar coordena grupos no Telegram que somam mais de 225 mil integrantes. Foto: Reprodução Redes Sociais
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Encerrado o pleito eleitoral 2022, uma reflexão desafiadora se impõe sobre o lugar da religião neste processo. Das tantas possibilidades de análise, acompanhando o que já vinha sendo indicado por colegas pesquisadores das diferentes áreas das ciências humanas e sociais, proponho neste artigo nos determos em elementos de destaque que provocam novas abordagens sobre o futuro próximo do cenário político do país.

A consolidação de uma direita cristã brasileira

Com os mesmos pilares que geraram nos anos 70, nos Estados Unidos, o movimento político denominado “Maioria Moral” [Moral Majority], 50 anos depois o Brasil experimenta, com o governo Bolsonaro e a campanha por sua reeleição, a consolidação de uma direita cristã. 

O antropólogo Ronaldo de Almeida, em artigo na Folha de S. Paulo, em 27 de outubro passado, desafia: “Em vez de religião na política, devemos falar em religião como política. Mais do que a forma religiosa da política, que separa forma e conteúdo, ou mais do que religião entrando na política, como se nunca tivesse estado nela, fazer religião tem sido fazer política”.

O trabalho pela ocupação mais ampla do Congresso Nacional e pela reeleição de Jair Bolsonaro (PL) para ampliação da força desta religião política foi intenso e lançou mão de discursos e posturas radicalizados, relacionados ao ultraconservadorismo da extrema-direita. Eles podem ser sistematizados nos seguintes elementos:

  1. Aplicação da Teologia do Domínio para justificar os sinais de Deus em um líder escolhido: o presidente da República Jair Bolsonaro; 
  2. Inversão de valores do Evangelho como igualdade, solidariedade, misericórdia e despojamento, classificando-os como sinônimo de comunismo – para, desta forma, afinar a religião à cultura do individualismo e à lógica neoliberal da inovação e do empreendedorismo;
  3. Ênfase no discurso nós versus eles, do enfrentamento de inimigos e do senso de pertença a um grupo eleito, que tem autoridade divina para combater e eliminar inimigos da fé. A expressão-chave deste fazer religioso-político é “anti”, se colocar contra, com negação de qualquer tipo de reflexão e diálogo que justifique “o outro lado”;
  4. Defesa radical das pautas pró-vida e pró-família como oposição aos direitos sexuais e reprodutivos conquistados no ambiente do Estado democrático. Para isto, há imposição de pânico moral e uso de desinformação sobre a ameaça da suposta “ideologia de gênero”;
  5. Assimilação do discurso armamentista e da linguagem da autodefesa e da vingança com interpretação ideológica da Bíblia;
  6. Guerra cultural contra o perigo comunista/socialista/marxista identificado em inimigos da pátria, da família, de Deus e das igrejas, interpretados como entrincheirados em partidos políticos de esquerda, em movimentos sociais e de direitos humanos, em sindicatos, entre professores e professoras em todos os níveis educacionais e na ciência em suas diferentes dimensões;
  7. Intensa ocupação das mídias sociais com a produção ostensiva de conteúdo comprovadamente falso e enganoso com base em terrorismo verbal (imposição de medo) referentes às ameaças daqueles que são compreendidos como inimigos da pátria, da família, de Deus, com forte ênfase ao perigo do fechamento de igrejas e do silenciamento dos cristãos sob uma possível vitória das esquerdas nas urnas;
  8. Ocupação das mídias religiosas institucionais e independentes para propagação deste conteúdo religioso-político e repercussão da desinformação publicada por perfis de influenciadores cristãos em mídias sociais;
  9. A Teologia do Domínio, com o discurso que estimula a postura “anti” e a guerra cultural, passa a ser aplicada dentro das próprias igrejas com ações de discriminação, exclusão, expurgos e perseguições a fiéis das igrejas e demais grupos religiosos identificados como não-alinhados, que revelam simpatia ou ativismo progressista, de esquerda, por direitos humanos. Para isso, se constrói uma noção de pecado e interdição que torna possível a desqualificação da fé destes opositores, bem como permite a intimidação e o assédio.

Um olhar preliminar para levantar parlamentares com identidade religiosa cristã, eleitos para a Câmara Federal, mostra o predomínio desta nova direita. Dos cerca de 71% dos eleitos que manifestaram em campanha identidade religiosa cristã – seja por vinculação notória, seja por autoidentificação ou uso de linguagem e de relacionamento com igrejas – 50% são identificados com a direita, 34,5% com a esquerda (com ampla maioria de católicos) e 15.5% com o centro, sendo a maior parte com tendência à direita.

As candidaturas cristãs de direita mobilizaram amplamente a pauta moral (pró-vida, pró-família, anti-direitos sexuais e reprodutivos) com discursos anti-esquerdas e apologia às armas e à militarização.

Este quadro se soma à expressiva quantidade de votos que Jair Bolsonaro alcançou no segundo turno da disputa para Presidência, boa parte depositada por evangélicos e católicos, segundo as pesquisas eleitorais. Isto indica o quanto o discurso da direita cristã sobre política, o Brasil, Deus e a fé tem sido bem-sucedido. Mais do que votos, a direita cristã conquistou “corações e mentes”.

A radicalização do discurso de campanha pró-Bolsonaro nas igrejas no segundo turno, com o discurso de desqualificação extrema e guerra às esquerdas, levou até mesmo a ataques para além dos discursos de mídias sociais. Houve episódios presenciais de ataques a padres, a pastores, interrupções de missas e impedimentos a eventos promovidos por cristãos progressistas. O caso do evento paralelo promovido pelo grupo extremista católico liderado pelo Centro Dom Bosco, durante as celebrações do tradicional Dia de Nossa Senhora Aparecida, em 12 outubro passado, com vaias ao arcebispo que fazia um sermão na Basílica expressa o clima que se formou. 

Os efeitos desta radicalização se dão nos desdobramentos do desfecho das eleições, pós-derrota de Jair Bolsonaro. No momento em que este artigo é redigido, lideranças cristãs se dividem. Um expressivo grupo se expõe entre chorar a derrota do “escolhido de Deus”, encontrar nova teologia que explique o fracasso das profecias, animar o rebanho para os novos tempos sem um protagonista no poder e manifestar indignação com os, possíveis 30% irmãos da fé que se colocaram em oposição a ele. 

Outro grupo leva a radicalização adiante, a guerra espiritual a ser travada em etapa mais profunda, com a contestação dos resultados, a participação em atos de desestabilização do processo pós-eleitoral, com bloqueio de rodovias e chamado ao enfrentamento pela “deseleição” de Lula com intervenção militar.

O futuro se mostra mais desafiador diante do novo governo. O Brasil sempre marcado por uma incrível pluralidade religiosa, agora tem isto evidenciado pela força de uma direita cristã, que tem ao redor de si uma articulação inter-religiosa ultraconservadora que fala às demandas mais profundas da população e mexe com sentimentos e imaginários.

As pautas de direitos seguirão ameaçadas e esta proposta religiosa continuará atuando de forma política com apelo a medos, à intolerância, à guerra, à imposição da insegurança com o presente e o futuro. 

Ao novo governo emerge o desafio não apenas de conviver com esta nova realidade, mas aprender dela e considerar os múltiplos espaços de audição e de diálogo. Acima de tudo, considerar o lugar relevante que a religião tem na vida da população e reforçar quem já diz isto há muito tempo e tem buscado, nos espaços religiosos progressistas e ecumênicos, construir pontes com este vigor que vem das bases e pode ser acionado na defesa da democracia, dos direitos e do bem-viver.

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