Diálogos da Fé

Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões

Diálogos da Fé

Como a esquerda se comunicará com trabalhadores e trabalhadoras que buscam refúgio na religião?

O sentimento de pertencimento e acolhida, o lazer, o aporte econômico, a organização da vida e a espiritualidade mobilizam a muitos e muitas frequentar templos

Foto: iStock
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A minha trajetória de fé, dentro de uma igreja evangélica pentecostal, sempre esteve envolta a política. Eu me lembro, ainda criança, em 1999, estava em uma praça na Vila Formosa, Zona Leste de São Paulo, entregando panfletos, com boné, camiseta do candidato a vereador do PSDB, filho do pastor fundador da igreja, também pastor, cantando o slogan com a musiquinha que ainda permanece na minha memória. Nos cultos, pelo menos uma vez ao ano ia algum político do PSDB, seja no aniversário da igreja ou no aniversário dos pastores.

Eu cresci já em um momento que a igreja evangélica brasileira não se afastava do “mundo”, mas tinha o objetivo de influenciar e estar em todos os espaços “marcando a geração”. É o que hoje chamamos de “teologia do domínio”, ou seja, a ideia que o cristão deve combater o “inimigo” em todas as esferas, inclusive a pública, evangelizando e trazendo os valores cristãos para a sociedade. Uma ideia muito vinculada à “guerra espiritual”, o que faz todo o sentido quando lembro das músicas que cantava na igreja naquele período com letras bélicas instigando a guerra e a vitória de Deus sobre seus inimigos.

Entretanto, essa não foi a única experiência: vivi na pele a experiência de rede de apoio. Embora ainda pequena, sabia que era a igreja que ofertava cestas básicas, remédios, roupas e até brinquedos para a minha família, que na época enfrentava problemas financeiros. E foi por meio da igreja que meu pai arrumou emprego, que minha mãe fez um tratamento ginecológico. Com contradições? Muitas! Mas é importante pontuar que é esse contexto que faz com que muitas e muitas pessoas se sintam acolhidas nas igrejas evangélicas, além da experiência espiritual e mística que todos devem respeitar e considerar.

Não só eu, mas muitos companheiros e companheiras acadêmicos ou ativistas do mundo religioso têm insistido que “os evangélicos não são um bloco homogêneo”! E por que dizer que isto é importante? Porque a classe trabalhadora tem se tornado cada vez mais evangélica! Como a esquerda conseguirá se comunicar com os trabalhadores e trabalhadoras que buscam refúgio na religião se, por muitas vezes, seguem ignorando a fé como modo de sobrevivência concreto, subjetivo e espiritual do povo? E isso não quer dizer que o crescimento e expansão dos evangélicos não faz parte de um projeto de poder, mas, antes, devemos nos perguntar quais são as perguntas que têm sido respondidas nas igrejas evangélicas, mesmo fundamentalistas?

A religião é um elemento central para o povo, isso é inegável! O sentimento de pertencimento e acolhida, o lazer e cultura encontrado nas celebrações, o aporte econômico, a organização da vida cotidiana e claro, a espiritualidade mobilizam muitos e muitas frequentarem templos, não só aos domingos, dia do Senhor, e a participarem de outras atividades de suas comunidades durante a semana.

Engana-se quem pensa que a religião tem pouco a ver com política, pelo contrário, ela instiga e molda o que se entende por política entre os evangélicos. O que eu vivi nos anos 1990 enquanto criança e adolescente, com políticos indo à igreja, falando de púlpito e “coisa e tal”, não ficou no passado.

Logo no início deste ano aconteceu um evento na Igreja Batista da Lagoinha, em Orlando, EUA, chamado “Governe Conference” (transmitido pelo Youtube) que contou com a participação de diversos pastores e políticos bolsonaristas pregando inúmeras fake news e desinformação sobre a esquerda e movimentos populares. O que mais se repetia, nas palavras do pastor-apresentador André Valadão: “é guerra!”… talvez as musiquinhas cantadas na infância não eram apenas musiquinhas.

Meu questionamento aqui vai além das eleições deste ano, porque essa mentalidade fundamentalista e neofascista é um projeto que se enraíza. Como aprendi com os companheiros e companheiras do MST, na política não existem espaços vazios: quando não nos preocupamos, escutamos e dialogamos sobre a fé, deixamos espaço para a direita avançar. Este texto é um convite a todo campo popular a se perguntarem: Vocês sabem quem são os evangélicos? Vocês já ouviram suas histórias? Como e por que eles cresceram tanto nas últimas décadas? O que os evangélicos pensam sobre a esquerda brasileira?

Convido a todos e todas a lerem a cartilha Resistir com Fé: Evangélicos e Trabalho de Base”, fruto da pesquisa do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social acerca dos Evangélicos e a Política, coordenada por mim e Delana Corazza. Uma cartilha que não tem objetivo de encerrar o assunto para o campo popular e militantes em território, mas, sim, de abrir essas novas compreensões, deixando de lado nossos preconceitos com a fé evangélica e aprendendo a olhar além de nossas limitadas lentes, ir ao encontro de nosso companheiro e companheira de classe, que tem sua fé, mas que também sofre com os males das políticas neoliberais e excludentes tão presentes na atualidade. É preciso compreender que o projeto de uma religiosidade popular tem um propósito estratégico revolucionário, visto que a fé impulsiona a práticas de transformação! A fé pode e deve influenciar o projeto histórico emancipatório e para isso precisamos relembrar seu caráter profético, de denunciar os males de seu tempo e apontar novos horizontes justos!

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