Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Por que há fiéis e líderes de igrejas que apoiam guerras e não propagam a paz?

A instrumentalização da fé cristã por políticos extremistas fortaleceu a noção de identificar inimigos entre pessoas e grupos religiosos e políticos de que discordam

Créditos: Mohammed ABED / AFP
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Desde 7 de outubro passado, temos sido inundados por notícias, discursos, imagens impactantes sobre o conflito bélico entre o braço armado do partido palestino islâmico Hamas e o Estado de Israel. Esta ampla exposição de um confronto, marcado por tragédias humanas de proporções imensas, se sobrepôs a outra guerra que se estende há mais de um ano, entre Rússia e Ucrânia, e que também mobilizou muito da atenção da população em geral no Brasil.

As mídias sociais tornam públicas emoções e posições de muita gente sobre as situações expostas. Entre comentários e discussões, emerge a pergunta que consta no título deste artigo. Ela nasce da observação das expressões frequentes, registradas por expressivo número de fiéis e lideranças cristãs, evangélicas e católicas, em suas postagens, que “tomam um lado” nos conflitos armados – estes do exterior e aqueles mesmos vividos no Brasil. Fazem a defesa retórica, com o uso de argumentos religiosos, e “torcem” por sua vitória e pela destruição do inimigo em disputa.

É fato que há muitos cristãos e cristãs espalhados pelo Brasil que compartilham e testemunham a promoção da paz, contra toda violência que ameace vidas humanas e o meio ambiente, em especial as guerras. Manifestações importantes são publicizadas por estas lideranças e fiéis evangélicos e católicos, pedindo paz com justiça diante das guerras que testemunhamos pelo noticiário e estão distantes de nós – cerca de 21, segundo a organização Local de Conflito Armado e Projeto de Dados de Eventos/ACLED) – até as mais próximas, como a guerra às drogas nas periferias das cidades do Brasil, a guerra no campo e nas florestas, com disputas de terras produtivas e áreas indígenas e execução de defensores da justiça nestes casos.

Porém, o incômodo do questionamento sobre o porquê do apoio de cristãos às guerras e à destruição armada, expresso tão fortemente em mídias sociais, pode ser justificado. Afinal, a Bíblia está recheada de textos que ressaltam o apelo por paz. Ela exalta o shalom que procede do Deus da Vida. Não a paz que se sente, mas a paz que se vive, em todas as relações: familiares, do trabalho, políticas, religiosas, ecológicas.

Um dos anúncios da chegada do Deus Conosco, o Messias, fala dele como “Príncipe da Paz”, que torna possível que as “armas se transformem em arados e podadeiras” (livro de Miqueias) e as “botas sujas de sangue sejam queimadas” (livro de Isaías). O nascimento de Jesus é um anúncio de paz na terra entre todas as pessoas de boa vontade (livro de Lucas). Imagens fantásticas! Mas há outra magnífica imagem nos escritos bíblicos, com um ensino que não podemos desprezar. É uma das sentenças mais belas e vem do Salmo 85: “A justiça e a paz se beijam”. O poeta faz uma afirmação significativa: justiça e paz são unidas por um laço. Só há justiça quando há paz e vice-versa. Do contrário, se vive uma falsa paz.

É neste sentido que podemos buscar compreender o porquê do que pode ser classificado como uma incoerência daqueles cristãos e cristãs que torcem pela permanência dos conflitos e por “um lado” e não proclamam a paz em seu testemunho público.

Em primeiro lugar, é importante recuperar a memória da vertente cristã da guerra espiritual contra inimigos da fé, que existe desde o tempo das Cruzadas, promovidas no contexto da Igreja Romana. De lá, emergiu a compreensão em ramos evangélicos que prega que os crentes travam guerras constantes contra os inimigos de Deus (ateus, outras religiões, poderes políticos), com armas religiosas da oração, do jejum, da consagração por meio do culto. Com a instrumentalização da fé cristã por políticos extremistas em tempos mais recentes, foi fortalecida a noção de se identificar inimigos entre pessoas e grupos religiosos e políticos de que discordam.

Estamos assistindo, neste momento, no Brasil, à concretização de tal ideologia nas ações de grupos religiosos extremistas que promovem e apoiam violência religiosa, com a destruição de terreiros de candomblé e umbanda, a propagação de discursos de ódio e perseguição a discordantes fora e dentro das igrejas, o apoio a que agentes do Estado executem pessoas e grupos classificados como criminosos, ao armamentismo e a que haja eliminação de oponentes por meio do uso de armas de fogo.

Esta pregação é oferecida nos púlpitos das igrejas e também nas canções cantadas nos cultos e eventos gospel, programas nas mídias tradicionais e conteúdo das mídias digitais. Está presente tanto em espaços pentecostais quanto nas igrejas protestantes históricas em busca de “avivamento”.

São muitos anos de pessoas em igrejas aprendendo a nomear e combater como inimigos os que têm posições e práticas diferentes das assumidas por certos grupos cristãos que recebem estas pregações. São muitos anos proclamando “O nosso General é Cristo” e “Pisa na cabeça do inimigo”. Tudo isto promove o esquecimento da mensagem bíblica da paz e da reconciliação justas.

Embalam estas compreensões dois elementos ideológicos importantes, mobilizadores, em especial, em torno das guerras Rússia x Ucrânia e Israel x Palestina. Um deles é o anticomunismo, um imaginário presente historicamente na cultura brasileira, reavivado nos discursos de grupos de extrema-direita desde as manifestações de 2013. O outro é o sionismo cristão, marcado pelo apoio irrestrito a qualquer política e ação do atual Estado de Israel na ocupação de territórios, a partir da equivocada compreensão de que é o Israel da Bíblia.

É por isso que neste tempo em que vidas inocentes perecem por políticas injustas, seja em terras longínquas ou na esquina mais próxima, fica o chamado urgente por uma mudança de atitude, uma conversão!

Um caminho de superação deste quadro preocupante e desolador pode ser um desafio àqueles cristãos e cristãs já mencionados acima, ardorosos defensores da paz, e àqueles que, de alguma forma, não compartilham destas práticas violentas e destes discursos bélicos. Não são poucos! O desafio diz respeito à própria leitura da Bíblia, tão cara, especialmente, aos evangélicos, com ênfase desde a amplitude inclusiva da criação de Deus (Gênesis) até as ações amorosas e misericordiosas de Jesus diante das diferenças (Evangelhos), contextualizando de forma crítica os discursos violentos também contidos nas Escrituras, tão usados para justificar brutalidades e discriminações.

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