Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Por que é necessário um trabalho teológico para enfrentar a violência e o abuso em meios religiosos

A ‘verdade’ fica à mercê de uma liderança majoritariamente masculina, que decide o que é ou não é válido para as mulheres

Foto: Pexels/Creative Commons/Pixabay
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De acordo com a 10ª Pesquisa Nacional sobre Violência Contra a Mulher, conduzida pelo Instituto DataSenado em parceria com o Observatório Mulheres contra a Violência (2023), cerca de três em cada dez mulheres brasileiras já vivenciaram violência doméstica perpetrada por homens. O estudo sugere que mulheres com menores níveis de renda têm mais probabilidade de sofrer violência doméstica.

Mais de 25,4 milhões de mulheres brasileiras já experimentaram violência doméstica em algum momento de suas vidas, com 22% relatando incidentes nos últimos 12 meses. A pesquisa constatou que a violência psicológica é a mais comum (89%), seguida pela moral (77%), pela física (76%), pela patrimonial (34%) e pela sexual (25%). Mulheres com renda mais baixa têm mais probabilidade de vivenciar violência física. A maioria dos agressores são maridos ou parceiros (52%), seguidos por ex-maridos, ex-namorados ou ex-parceiros (15%).

Além dessas formas de violência, é importante notar que a violência contra as mulheres dentro de contextos religiosos também é comum. Em 2019, em meio a vários relatos de líderes religiosos abusando de mulheres, manipulando-as através da fé, houve casos significativos.

O caso mais notável envolveu João de Deus, um “líder espiritual” brasileiro de 81 anos que, durante seus rituais de cura, abusou de mulheres e até mesmo de crianças. De acordo com informações do Ministério Público, o médium vinha agredindo sexualmente pacientes espirituais nos últimos 45 anos, com 319 mulheres se apresentando para denunciá-lo. Quando essa notícia veio à tona na mídia, outros casos envolvendo gurus espirituais, pastores e padres começaram a surgir.

No início de maio, um vídeo do pastor Lucinho Barreto, da Igreja Batista da Lagoinha em Belo Horizonte, circulou nas redes sociais, na pregação em um encontro para homens sobre paternidade. “Eu peguei minha filha um dia, dei beijo nela, falei que amava ela. Ela passava e eu dizia: ‘nossa, que mulherão. Ai, se eu te pego’. Um dia ela distraiu e eu dei um beijo na boca dela. E eu falei assim: ‘quando eu encontrar seu namorado, eu vou falar: ‘você é o segundo, eu já beijei'”, disse o pastor durante o culto.

Por nota, a Polícia Civil de Minas Gerais afirmou que a Delegacia Especializada em Proteção à Criança e ao Adolescente de Belo Horizonte irá apurar o caso. Após o ocorrido, o líder tentou se retratar, dizendo que era apenas um beijo “inocente e puro”, para ajudar a levantar a autoestima da filha. A filha de Lucinho, Emily Barreto, diz que a fala foi tirada de contexto e acrescenta que o pastor sempre foi um ótimo pai.

Entretanto, isso é um sinal de alerta para como as pautas relacionadas ao abuso e violência contra as mulheres têm sido trabalhadas nas igrejas. Outro caso recente é do pastor Jonas Felício Pimentel, da igreja evangélica Tabernáculo da Fé de Goiânia (GO). Durante uma pregação, ele afirmou que, em certos casos de abuso sexual infantil, a criança pode ser considerada culpada pelo crime. Segundo suas palavras: “existem situações que, quando ocorre um abuso de uma criança, a criança também é culpada porque ela permitiu. Mas isso é uma exceção, está dentro desses acontecimentos. Crianças também têm culpa, têm participação, mas não em todos os casos”.

Normalizar e culpabilizar a vítima da violência acometida é ser cúmplice de tamanha atrocidade. São grupos como estes que são ávidos contra a chamada “ideologia de gênero”, uma forte bandeira do fundamentalismo religioso no País  Essa noção surge no contexto católico, porém, encontra ampla divulgação nas mídias e redes sociais como uma forma de a direita se referir às pautas de gênero, sendo assim absorvido pelos setores evangélicos fundamentalistas. Para estes, qualquer questionamento e qualquer mudança acerca do papel das mulheres na sociedade, das noções de família, dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, da descriminalização e da legalização do aborto e da educação sexual das escolas é algo condenável e que deve ser combatido. Ou seja, a “verdade” fica à mercê de uma liderança majoritariamente masculina, que decide o que é ou não é válido para as mulheres.

As teologias presentes nas igrejas fundamentalistas são teologias de morte e violência às mulheres e às crianças. São discursos que violam seus corpos, sua autonomia, suas experiências e suas escolhas e as culpabilizam, mesmo sendo as vítimas. Como apontado nos dados acima, são parceiros, maridos, pastores, professores, familiares, amigos que são os violentadores, pessoas próximas e de confiança. Isso também surge na pesquisa de Valéria Vilhena: “40% das mulheres que sofrem violência doméstica são evangélicas”. Mulheres vulneráveis que vão buscar conforto em suas comunidades de fé, mas encontram discursos misóginos disfarçados de ortodoxia cristã.

É necessário um trabalho teológico e militante de enfrentamento à violência e ao abuso contra as mulheres em meio religioso. A teologia feminista é uma dessas ferramentas de luta ao pensar Deus a partir da experiência cotidiana das mulheres, desvelando os patriarcalismos e machismos da tradição e auxiliando essas mulheres a vivenciarem sua espiritualidade de maneira verdadeiramente livre. Grupos como Evangélicas pela Igualdade de Gênero e Rede de Mulheres Negras Evangélicas têm sido esses pontos de esperança em meio aos fundamentalismos de nosso tempo. Ambos promovem encontros de formação, acolhida, publicações, estão inseridos em comunidades de fé e atuam com a base.

Diante deste cenário, é imperativo que continuemos a luta contra a violência e o abuso, incluindo, de forma intencional, os contextos religiosos onde tais práticas podem ser perpetuadas e justificadas de forma equivocada a partir de visões de “Deus” ou teologias. É preciso desafiar as estruturas e doutrinas patriarcais e misóginas que subjugam as mulheres e as tornam vulneráveis à violência nas igrejas e na sociedade. Não podemos nos calar!  É hora de agir, de exigir mudanças e de construir comunidades de fé verdadeiramente inclusivas e igualitárias.

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