Diálogos da Fé

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Diálogos da Fé

Ódio ao movimento LGBTI+? Deixem Deus fora disto!

Lideranças como a família Valadão ou políticos católicos e evangélicos não têm o monopólio da religião e da orientação da fé cristã

Créditos: Reprodução Redes Sociais
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Nos últimos dias, mais uma afirmação do pastor-empresário André Valadão gerou uma série de comentários e controvérsias nas mídias sociais. Desta vez não foram mentiras ou performances enganosas, mas uma manifestação contra o orgulho LGBTI+, celebrado em todo o mundo a cada mês de junho. 

No palco de um culto em sua igreja, em 4 de junho, com a frase “Deus odeia o orgulho”, decorada com as cores do movimento LGBTI+, o pastor fez uma pregação extremista, negadora do direito à diferença.

Em busca do apoio da plateia, Valadão primeiramente ancorou seus ataques no tema geral do orgulho: “Deus odeia o orgulho. Deus não tolera. Uma das palavras mais difíceis para Deus é orgulho. Deus odeia, ele repugna, qualquer atitude de orgulho. Só o uso da palavra orgulho Deus já abomina”. Em seguida, chegou ao ponto: a demonização das pessoas LGBTI+ e do movimento que a defende. “Qualquer movimento que carrega o termo orgulho, Deus abomina. (…) A figura do orgulho é Lúcifer. A figura da palavra orgulho é o anjo caído (…)”, vociferou.

Fazendo uso de uma antiga seleção de textos da Bíblia, Valadão desfilou palavras desqualificadoras e condenatórias a pessoas que carregam esta identidade: “Deus não destruiu a humanidade por causa de roubo, assassinatos ou idolatria. Deus destruiu a humanidade por causa da imoralidade sexual. (…) Não sou eu que estou dizendo, é a Bíblia que diz (…)”.

O pastor ainda acusou a população evangélica de ser tolerante e a instou a uma reação contra o movimento LGBTI+: “A minha preocupação aqui é porque (…) 57% das famílias evangélicas hoje trata com normalidade a prática do pecado da homossexualidade”.

Este discurso se soma a outros. Valadão e a irmã Ana Paula têm sido alvo de frequentes denúncias em diferentes foros judiciais por manifestações públicas que expressam ódio a pessoas homoafetivas. 

Alguém pode argumentar: “mas ele está denunciado um pecado, está orientando a igreja a não cair em pecado”. De fato, isto está no escopo do direito à liberdade de crença. Um grupo religioso pode classificar pecados e orientar em relação a eles. Grupos religiosos têm doutrinas que orientam costumes, comportamentos, no plano pessoal de seus fiéis. Católicos entendem o casamento como um sacramento e orientam à não separação conjugal; adventistas entendem ser o sábado um dia sagrado e orientam a não realização de atividades neste dia para dedicá-lo a Deus; os mesmos adventistas e, também, judeus e muçulmanos têm restrições alimentarem relacionados à impureza de certos itens e à purificação do corpo; entre muitos outros exemplos. 

No entanto, o pastor abusa deste direito ao usar da palavra, não para orientar fiéis, mas para condenar pessoas que têm identidade diferente do que o grupo religioso entende ser “o certo”, classificando-as como “seguidoras do diabo”, “causadoras da destruição da humanidade por Deus”, portanto, “inimigas de Deus”. Mais ainda: insta seguidores a reações contrárias ao grupo humano que é alvo do ataque. 

Valadão, com suas palavras, discrimina pessoas homoafetivas, negando-lhes a humanidade, desconsiderando outras interpretações socioculturais, políticas e religiosas sobre seu direito de ser e de existir. E, como ponto de partida, manipula o discurso religioso, afirmando que Deus as odeia. (Será que quem odeia não é o próprio pastor?)

Com isso, o líder explicita o que caracteriza um discurso de ódio: usa de palavras que diminuem, humilham, ofendem, desrespeitam o Outro Diferente, com o objetivo de desumanizá-lo para segregá-lo e, por fim, eliminar sua existência. 

Vale ressaltar que o ódio é sempre uma reação a uma dada realidade: ocorre quando a existência do Outro Diferente provoca, incomoda. Quando este Outro se empodera, ganha força no espaço público, nasce o ressentimento e o ódio passa a se desenvolver, gerando atitudes de discriminação, ataque, violência verbal, simbólica e física.

Pessoas como os irmãos Valadão passaram a se sentir à vontade para expressar o ódio a pessoas LGBTI+ a partir de 2010, quando políticos das Bancadas Evangélica e Católica passaram a reivindicar no espaço público o mandato da defesa da sua concepção ideológica de família e da moral cristã. Com isso, atuam contra plataformas dos movimentos feministas e de homossexuais e de ativistas em a favor dos direitos humanos. 

No entanto, sabemos que a condenação religiosa de pessoas LGBTI+ não é exclusividade da família Valadão e de políticos cristãos. Ela é marca histórica da visão de mundo fortemente presente entre evangélicos e católicos, que hoje ganha dimensão política. Ademais, está ancorada numa leitura da Bíblia, que não é literal como se apregoa, mas que é oportunista: seleciona textos de forma descontextualizada e instrumentalizada, para justificar o argumento de que pessoas LGBTI+ contrariam os preceitos cristãos.  

A relação com a política dá-se pela intensificação da oposição aos direitos LGBTI+ no Brasil. Os avanços nas conquistas de direitos desta população, em especial por conta de políticas a partir dos anos 2000, e em ações no âmbito do Judiciário, garantiram a estes cidadãos e cidadãs um tratamento digno em várias questões fundamentais para a vida. 

Estas conquistas incomodaram os defensores da cultura patriarcal heteronormativa e provocaram forte reacionarismo da parte de lideranças religiosas católicas e evangélicas e de políticos das bancadas religiosas. É um ressentimento branco e masculino, de indivíduos e grupos que se sentem enfraquecidos por elementos produzidos pela democracia, pela ascensão da visibilidade de mulheres e de LGBTI+ nas ações pelos direitos de gênero. Também por serem mais amplamente confrontados quando expõem suas posições machistas, homofóbicas ou racistas. 

Este reacionarismo ressentido foi base para uma campanha ideológica que classifica negativamente, com o termo “ideologia de gênero”, todas as ações que reconhecem a homoafetividade como algo justo nas relações humanas, como parte das transformações que a organização das famílias pode viver. 

A moralidade ressentida impede que cristãos e cristãs sejam coerentes com a própria fé cristã, que é baseada na misericórdia, na paz, no amor inclusivo e incondicional. Assim, não reconhecem a LGBTfobia e todas as formas de intolerância que geram violência, como uma afronta aos preceitos da fé. 

É preciso ressaltar, no entanto, que tal atitude não é unanimidade. É crescente o número de lideranças, denominações e organizações cristãs que acompanham os avanços sociais e reconhecem pessoas homoafetivas como membros com plenos direitos. Movimentos como o “Jesus Cura a Homofobia” e “Evangélicxs pela diversidade”, se espalham pelo país. Ainda neste contexto emergem as chamadas igrejas inclusivas, como espaço para a população LGBTI+ e suas famílias, quase todas lideradas por pastores e pastoras homoafetivas. O recém-lançado livro “Semente de Vida”, de Gut Simon, Bob Luiz Botelho, Tânia Afonso e Ana Ester (Editora Recriar, 2023) oferece um excelente retrato deste novo momento.

Isto deixa nítido que lideranças como a família Valadão ou políticos católicos e evangélicos não têm o monopólio da religião e da orientação da fé cristã. Pelo contrário, tentam, mas não conseguem controlar as mudanças permanentes que o mundo vive. Afinal, podem manipular os textos bíblicos conforme o seu ressentimento, mas não podem apagar a expressão mais forte da encarnação de Deus, contida nos Evangelhos – a vida e as ações de Jesus contra todo o farisaísmo condenatório da existência do Outro Diferente daquele contexto. 

Também não podem cancelar os registros no Livro Sagrado que explicitam o que, de fato, o “Deus que é Todo Amor” odeia: “Há seis coisas que o Senhor odeia, sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que traça planos perversos, pés que se apressam para fazer o mal, a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos” (Provérbios 6.16-19).

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