Colunas e blogs

Fazer política inspirada no Evangelho e a partir do povo

Em nome de Deus e da religião, muitos erros foram praticados ao longo do tempo

O batismo de Jesus
Apoie Siga-nos no

Fé e política podem e devem caminhar juntas. Fazemos esta afirmação sem pestanejar. E se alguém perguntar com que base o fazemos, remetemos imediatamente àqueles seres humanos – homens e mulheres -, que se entregaram por completo à luta por justiça social, liberdade e democracia tendo os ensinamentos de Jesus de Nazaré como fonte e alimento em suas jornadas.

Em dias atuais, infelizmente, acontecimentos diversos indicam estarmos diante de um recrudescimento do conservadorismo em terrenos nacionais e internacionais. No Brasil e em vários países da América Latina, isso está acontecendo tanto nas esferas culturais e sociais quanto no campo das formulações políticas. Em nosso território, a tentativa de impor uma Escola sem Partido, a aprovação das reformas da Previdência e Trabalhista e a tentativa de “silenciar” Judith Butler, filósofa americana pós-estruturalista e uma das principais teóricas da questão contemporânea do feminismo, da filosofia política e da ética, são claros e expressivos exemplos dessa contemporânea ordem conservadora.

Mas isso não é tudo. Essa mesma onda de conservadorismo chega ao extremo quando se trata de questões religiosas. Os recentes ataques desferidos contra o Papa, cardeais, bispos, padres, pastores e leigos que, sob a luz do Evangelho, defendem uma sociedade mais justa onde não haja tanto acúmulo de riquezas nas mãos de alguns enquanto milhões são condenados a viver em condições de extrema pobreza, atestam esta realidade. Grupos fundamentalistas e sectários se autoproclamam “guardiões da fé, da moral e dos bons costumes” e “saem à caça” daqueles que defendem a essência mais emancipadora do Evangelho. Tratar, por exemplo, de questões raciais, de gênero, de xenofobia e de injustiça social no âmbito da Igreja é algo inaceitável para tais grupos.

No campo da política, adotam uma postura radical contra todas as correntes de esquerda – bem como aqueles que nelas militam -, acusando-as de serem “fonte de formação de comunistas e desordeiros”. Envoltos por este pensamento e motivados por líderes inescrupulosos, ao mesmo tempo em que acusam aqueles que se identificam e militam em correntes políticas e sociais progressistas, assumem posições de defesa acirrada de homens e mulheres que repentinamente surgem como “salvadores da pátria, da família e dos bons costumes”. De Bíblia em punho, distorcem as palavras do Evangelho para justificar suas posições chegando até – por mais incrível que possa parecer -, a considerar tais pessoas como “enviados do Céu” e verdadeiros cristãos.

Mas o que é ser cristão? Em nosso entendimento, é ter Jesus Cristo como Deus que se fez homem, que se encarnou; é ter Jesus de Nazaré como referência máxima e absoluta de um amor ético-político que nos compromete com a vida e a dignidade humana em toda sua plenitude, o que significa dizer: colocar-se ao lado daqueles que são oprimidos, maltratados e condenados a viverem parcialmente e não plenamente como deseja o Cristo (Cf. Jo 10, 10).

Ser cristão é seguir os passos de Jesus Cristo Nazareno, e isso significa compartilhar, mergulhar numa inquietude que se posiciona contra tudo que seja injusto. Ser cristão, como aponta com suas belas palavras o Pastor Henrique Vieira “é chorar a dor do mundo e encontrar na dor do mundo o nosso próprio mundo de dor; é perceber o grito de Deus no rosto daqueles e daquelas que sofrem; é ter a utopia do Reino dos céus, mas entender que este Reino se sinaliza na terra concreta onde homens e mulheres vivem”.

O Cristianismo nasceu na periferia, entre os maltratados e abandonados pelos sistemas político e religioso que imperavam naquela época. O primeiro lhes impunham leis e determinações que os condenavam a uma vida de miséria. O segundo lhes obrigavam a aceitar a condição em que se encontravam como sendo vontade de Deus. Envoltos por esta realidade, a boa nova lhes é anunciada. Um meio para se libertarem dos opressores ou de instituições opressoras, uma nova porta se abre: Jesus Cristo. Modelo de pastor, não busca seus próprios interesses. Ao contrário: dá sua própria vida por todos. Porém, sua proposta provocou divisão: para uns, suas palavras eram loucura, enquanto que para outros eram sinal de libertação.

O que podemos inferir à luz do Evangelho é que na vida de Jesus há um conteúdo ético-político incontestável evidenciado por seu compromisso com os mais pobres, pela denúncia do acúmulo de riquezas, pela celebração da diversidade, por denunciar os líderes religiosos que impunham aos mais humildes normas e regras que eles mesmos não seguiam e pela denúncia do poder opressor e violento imposto pelo Estado.

 

Sendo Jesus Deus encarnado e expressão máxima do amor ao próximo, como pessoas que se colocam como cristãs podem se tornar defensoras daqueles que pregam a violência, o ódio, a tortura e o uso de armas letais como solução para os problemas sociais? E o pior, é que atribuem a eles características de “mitos” a serem seguidos, a ponto de dar-lhes poderes para executarem suas propostas, quando essas contrariam totalmente os ensinamentos do Cristo. Como podem aceitar um poder opressor e mentiroso que busca tirar dos mais pobres os direitos que lhes são devidos?

Ao que tudo indica, trata-se de interpretações “livres” dos ensinamentos de Jesus Cristo. E isso vem de longe. Basta lembrarmos que nos primeiros séculos o Cristianismo era uma religião predominantemente popular muito forte entre o povo, sobremaneira os mais pobres. Contudo, no século IV, ao tornar-se a religião oficial do Império Romano, a religião do Estado, interpretações sobre a vida de Jesus e seus ensinamentos; sobre poder, sociedade e relações humanas feitas pelos homens que ocupavam o poder político e religioso, passam a ser consideradas e estabelecidas como verdades a serem seguidas. Em nome de Deus e da religião, muitos erros foram praticados ao longo do tempo.

Hoje, parece que a história tende a se repetir, mas desta vez com agravantes, tendo em vista a utilização de práticas políticas atuais que se assemelham ideologicamente ao fascismo clássico da Itália, que se tornou um regime totalitário possuidor de uma política autoritária e nacionalista que governou o país entre 1922 e 1943. De acordo com Chip Berlet (LYONS, Matthew N. Right-Wing Populism in America: Too Close for Comfort. New York-Guilford Press, 2000), “o fascismo é uma corrente política complexa que parasita outras ideologias, possui muitas tensões internas e contradições e possui um aspecto camaleônico que se apropria de símbolos históricos, ícones, slogans, tradições, mitos e heróis da sociedade que deseja mobilizar”. Estaremos nós diante de um Neofascismo? Ou estamos assistindo a uma tentativa em escala internacional de resgate do fascismo clássico? Deixamos a resposta com você.

O mais impressionante, contudo, é o avanço do fascismo (ou neofascismo) dentro de Igrejas de confissão cristã. Líderes religiosos estão trabalhando arduamente para convencer seus seguidores de que política e religião não podem caminhar juntas. Mas fazem isso somente em relação às políticas e aos políticos progressistas e reconhecidos como sendo de esquerda.

Detentores de uma incoerência brutal, pousam para fotos ao lado de políticos de extrema direita e defensores de ideias totalmente contrárias ao Cristianismo, ao mesmo tempo em que condenam aqueles que se colocam ao lado dos pobres e oprimidos. Ainda mais: utilizam a Bíblia e a religião como instrumento de alienação dos menos esclarecidos, formando verdadeiros exércitos de seguidores.

Em nosso entendimento, não vemos o menor problema na participação de cristãos e cristãs na política de seu país. Fé e política se relacionam de modo inevitável. O problema, isto sim, é outro: a instrumentalização da religião como meio para alcançar objetivos políticos pessoais ou corporativistas. Isso é antidemocrático, antilaico, absolutista e violento. Um retrato do que vemos hoje em nosso País.

Por outro lado, a fé pode nos impulsionar a lutar pelo bem comum e por justiça social como fizeram, por exemplo, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns, Reverendo Jaime Wright, Pastor Martin Luther King, Irmã Dorothy e Margarida Maria Alves, que jamais defenderam ou praticaram qualquer tipo de violência, mas não aceitaram a imposição de um regime de exceção.

“Deus acima de tudo”, foi o slogan utilizado durante a campanha do atual presidente brasileiro. Esta é uma expressão fascista, pois não se refere ao Deus verdadeiro que se encarnou e se fez homem. É, isso sim, uma interpretação que se acomoda aos interesses pessoais daquele que pretende chegar ao poder. Trata-se de sua projeção pessoal de Deus que lhe permite impor à sociedade uma moral distorcida e autoritária. Este “Deus acima de tudo” na forma como foi utilizado, está muito mais para “Bolsonaro acima de tudo”. Deus, aqui, só aparece como um instrumento a ser utilizado para que a vontade e as crenças do atual presidente pudessem ser impostas e aceitas pela sociedade.

Não foram poucos os religiosos e religiosas que apoiaram Jair Bolsonaro e suas ideias fascistas, numa total contradição ao que prega e ensina Jesus Cristo. Muitos deles citavam passagens bíblicas – mormente do Antigo Testamento -, como justificativa para sua postura política e religiosa, interpretando as passagens citadas fora do contexto em que foram escritas.

Em nosso entendimento, todo texto bíblico estudado deve ser lido dentro do contexto em que foi escrito na sua época, para daí buscar o entendimento e seu verdadeiro significado. Fazer uma leitura descontextualizada da Bíblia e dar a ela interpretações pessoais e tendenciosas é algo que pode levar à prática de erros graves.

Hoje assistimos aterrorizados pessoas de diferentes formações políticas e religiosas defendendo cegamente às imposições e atrocidades fascistas cometidas por governos de extrema direita presentes em diversos países.

O fascismo político foi levado para dentro da religião e dela está tentando fazer uso. Não podemos nos calar e assistir passivamente a esta tentativa.

O nosso Deus está no meio de nós e não acima de tudo ou de todos. E o nosso coração está em Deus na medida em que entendemos que Ele é amor pleno, misericordioso e compassivo.

Sigamos firmes com fé, esperança e amor onde quer que estejamos, inclusive no meio político, pois como nos ensina nosso querido Papa Francisco, “fazer política inspirada no Evangelho a partir do povo em movimento pode se tornar uma maneira poderosa de sanar nossas frágeis democracias e de abrir o espaço para reinventar novas instâncias representativas de origem popular. E quando faltarem as forças para lutar pelo povo, possamos nos recordar que é precisamente na debilidade que a fortaleza de Deus pode fazer seu melhor trabalho”.

Assim seja!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo