Diálogos da Fé

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“Deus, pátria, família”: o mote político que se mostra uma farsa

Enquanto isto, fica o desafio do arrependimento das lideranças religiosas que credenciaram tamanha iniquidade

Foto: Carolina Antunes/PR
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Dias atrás, conhecemos detalhes da operação da Polícia Federal (PF) que investiga um possível esquema de aquisição patrimonial ilegal do ex-presidente da República Jair Bolsonaro. Segundo os agentes, enquanto estava no governo, ele teria praticado grave corrupção, ao se beneficiar com a venda de presentes de luxo oferecidos por governos estrangeiros, que deveriam integrar o acervo do Estado brasileiro. A PF classifica o esquema, como uma organização criminosa formada, primordialmente, por militares que atuavam no entorno do ex-presidente e de sua família.

Conhecida por nomes criativos, atribuídos às ações investigativas que realiza, a PF nomeou esta operação de “Lucas 12.2”, um versículo de um dos Evangelhos da Bíblia, que traz um dito de Jesus: “Pois não existe nada escondido que não venha a ser revelado, ou oculto que não venha a ser conhecido”.

A ironia toca diretamente em um ponto muito destacado, relacionado à figura em evidência nesta história: o uso que o ex-presidente e seu grupo de apoiadores fizeram do nome de Deus e da fé cristã. Isto ocorreu desde a campanha eleitoral em 2018, para captação de apoios e votos para a consolidação da política que governou o Brasil de 2019 a 2022.

Essa estreita relação da candidatura, e consequente, do governo com cristãos ultraconservadores tem vínculo com o avanço dos fundamentalismos político-religiosos não só no Brasil, mas também na América Latina, pelo menos nas últimas duas décadas. Isto se reflete no uso da religião e seus símbolos, como a fartura de textos da Bíblia no discurso de Bolsonaro.

O mote que orientou os quatro anos do militar no poder foi “Deus, Pátria, Família”, uma tríade que capturou emoções de religiosos e não-religiosos, revertidas em apoios às pautas de extrema-direita. Significativa parcela deste alcance foi concretizada entre pessoas ressentidas com os avanços nas pautas de direitos sexuais e reprodutivos, entre pessoas antipetistas e antiesquerda, e entre pessoas suscetíveis aos discursos de terror verbal sobre ameaças à existência das igrejas. Os apoios atuaram para consolidar a imagem de um governo religioso antigênero, anticomunista e anticorrupção.

Durante quatro anos desse governo, o país experimentou a necropolítica, com o estabelecimento de iniciativas e projetos de retirada de direitos das populações historicamente subalternizadas (mulheres, pessoas negras, indígenas, moradores das periferias, pessoas com deficiência, trabalhadores), de desmonte dos sistemas de educação e de saúde públicas, de exploração desenfreada dos recursos ambientais, de militarização e intensificação da truculência policial, de armamentismo e cultura da autodefesa e da vingança, em detrimento do direito à segurança pública, e formas diversas de negacionismo.

Entre as consequências mais terríveis desta política estão quase 700 mil mortos por covid-19 (números oficiais subnotificados), desmatamento e destruição de florestas e rios, crise humanitária e sanitária entre povos indígenas com altos números de mortos, portadores de doenças e subnutridos, entre muitas outras situações dramáticas. Tudo muito distante do que a fé cristã afirma ser o caminho de Deus, e tudo muito perto do que, de fato, significa destruição de famílias.

A busca de Bolsonaro pela reeleição lançou mão (ilegalmente) da máquina pública para alcançar votos, como nunca visto em outro processo eleitoral, e recorreu, até mesmo, a trapaças graves, como a obstaculização de estradas pela Polícia Rodoviária Federal, no dia das eleições, justamente em cidades em que o candidato da oposição foi vencedor no primeiro turno. Ainda fez acusações, sem provas, de falhas no sistema eletrônico de votação e de comprometimento deliberado das autoridades da Justiça Eleitoral em tais situações.

Com a ruína eleitoral, o extremismo se concretizou em atentados violentos e em uma articulação por um golpe de Estado, com a conivência de lideranças das Forças Armadas, que culminou na tentativa de tomada de Brasília por um exército de apoiadores, em 8 de janeiro de 2023. Identifica-se nenhum valor à Pátria ou atitude patriota, quando se toma o sentido mais fiel e rigoroso destas palavras. Mais uma vez, tudo muito distante do que se entende por pátria, e tudo muito perto do que, de fato, significa a destruição dela.

A derrota deste projeto de poder, nas urnas, em 2022, e na atuação contra o golpe de 8 de janeiro, representou a vitória das instituições do Estado, de partidos políticos e suas lideranças, e de movimentos sociais que atuaram em defesa da Constituição Brasileira e da democracia.

Como parte desta defesa, muita coisa está, agora, sendo revelada, tornando nítida a farsa do mote de campanha. Além de trazerem à tona as articulações do golpe, as investigações, agora, desvelam as ações de corrupção do ex-presidente, que envolvem pessoas do seu entorno.

“Deus, Pátria, Família” fica para a história como uma falácia eleitoral e uma farsa governamental, cujas muitas artimanhas ainda carecem de ser reveladas e a justiça plenamente realizada. Enquanto isto, fica o desafio do arrependimento das lideranças religiosas que credenciaram tamanha iniquidade e de reconstrução da trajetória cristã, extremamente comprometida no seu testemunho perante a sociedade brasileira.

Afinal, estas lideranças não devem se esquecer do contexto no qual a fala de Jesus, contida no texto de Lucas 12.2, escolhido para o título da operação da PF, se dá. Como diz o Evangelho, no versículo anterior (12.1): “Ajuntando-se, entretanto, muitos milhares de pessoas, de sorte que se atropelavam uns aos outros, [Jesus] começou a dizer aos seus discípulos: Acautelai-vos primeiramente do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”.

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