Diálogos da Fé
Blog dedicado à discussão de assuntos do momento sob a ótica de diferentes crenças e religiões
Diálogos da Fé
“Deus, pátria, família”: o mote político que se mostra uma farsa
Enquanto isto, fica o desafio do arrependimento das lideranças religiosas que credenciaram tamanha iniquidade
Dias atrás, conhecemos detalhes da operação da Polícia Federal (PF) que investiga um possível esquema de aquisição patrimonial ilegal do ex-presidente da República Jair Bolsonaro. Segundo os agentes, enquanto estava no governo, ele teria praticado grave corrupção, ao se beneficiar com a venda de presentes de luxo oferecidos por governos estrangeiros, que deveriam integrar o acervo do Estado brasileiro. A PF classifica o esquema, como uma organização criminosa formada, primordialmente, por militares que atuavam no entorno do ex-presidente e de sua família.
Conhecida por nomes criativos, atribuídos às ações investigativas que realiza, a PF nomeou esta operação de “Lucas 12.2”, um versículo de um dos Evangelhos da Bíblia, que traz um dito de Jesus: “Pois não existe nada escondido que não venha a ser revelado, ou oculto que não venha a ser conhecido”.
A ironia toca diretamente em um ponto muito destacado, relacionado à figura em evidência nesta história: o uso que o ex-presidente e seu grupo de apoiadores fizeram do nome de Deus e da fé cristã. Isto ocorreu desde a campanha eleitoral em 2018, para captação de apoios e votos para a consolidação da política que governou o Brasil de 2019 a 2022.
Essa estreita relação da candidatura, e consequente, do governo com cristãos ultraconservadores tem vínculo com o avanço dos fundamentalismos político-religiosos não só no Brasil, mas também na América Latina, pelo menos nas últimas duas décadas. Isto se reflete no uso da religião e seus símbolos, como a fartura de textos da Bíblia no discurso de Bolsonaro.
O mote que orientou os quatro anos do militar no poder foi “Deus, Pátria, Família”, uma tríade que capturou emoções de religiosos e não-religiosos, revertidas em apoios às pautas de extrema-direita. Significativa parcela deste alcance foi concretizada entre pessoas ressentidas com os avanços nas pautas de direitos sexuais e reprodutivos, entre pessoas antipetistas e antiesquerda, e entre pessoas suscetíveis aos discursos de terror verbal sobre ameaças à existência das igrejas. Os apoios atuaram para consolidar a imagem de um governo religioso antigênero, anticomunista e anticorrupção.
Durante quatro anos desse governo, o país experimentou a necropolítica, com o estabelecimento de iniciativas e projetos de retirada de direitos das populações historicamente subalternizadas (mulheres, pessoas negras, indígenas, moradores das periferias, pessoas com deficiência, trabalhadores), de desmonte dos sistemas de educação e de saúde públicas, de exploração desenfreada dos recursos ambientais, de militarização e intensificação da truculência policial, de armamentismo e cultura da autodefesa e da vingança, em detrimento do direito à segurança pública, e formas diversas de negacionismo.
Entre as consequências mais terríveis desta política estão quase 700 mil mortos por covid-19 (números oficiais subnotificados), desmatamento e destruição de florestas e rios, crise humanitária e sanitária entre povos indígenas com altos números de mortos, portadores de doenças e subnutridos, entre muitas outras situações dramáticas. Tudo muito distante do que a fé cristã afirma ser o caminho de Deus, e tudo muito perto do que, de fato, significa destruição de famílias.
A busca de Bolsonaro pela reeleição lançou mão (ilegalmente) da máquina pública para alcançar votos, como nunca visto em outro processo eleitoral, e recorreu, até mesmo, a trapaças graves, como a obstaculização de estradas pela Polícia Rodoviária Federal, no dia das eleições, justamente em cidades em que o candidato da oposição foi vencedor no primeiro turno. Ainda fez acusações, sem provas, de falhas no sistema eletrônico de votação e de comprometimento deliberado das autoridades da Justiça Eleitoral em tais situações.
Com a ruína eleitoral, o extremismo se concretizou em atentados violentos e em uma articulação por um golpe de Estado, com a conivência de lideranças das Forças Armadas, que culminou na tentativa de tomada de Brasília por um exército de apoiadores, em 8 de janeiro de 2023. Identifica-se nenhum valor à Pátria ou atitude patriota, quando se toma o sentido mais fiel e rigoroso destas palavras. Mais uma vez, tudo muito distante do que se entende por pátria, e tudo muito perto do que, de fato, significa a destruição dela.
A derrota deste projeto de poder, nas urnas, em 2022, e na atuação contra o golpe de 8 de janeiro, representou a vitória das instituições do Estado, de partidos políticos e suas lideranças, e de movimentos sociais que atuaram em defesa da Constituição Brasileira e da democracia.
Como parte desta defesa, muita coisa está, agora, sendo revelada, tornando nítida a farsa do mote de campanha. Além de trazerem à tona as articulações do golpe, as investigações, agora, desvelam as ações de corrupção do ex-presidente, que envolvem pessoas do seu entorno.
“Deus, Pátria, Família” fica para a história como uma falácia eleitoral e uma farsa governamental, cujas muitas artimanhas ainda carecem de ser reveladas e a justiça plenamente realizada. Enquanto isto, fica o desafio do arrependimento das lideranças religiosas que credenciaram tamanha iniquidade e de reconstrução da trajetória cristã, extremamente comprometida no seu testemunho perante a sociedade brasileira.
Afinal, estas lideranças não devem se esquecer do contexto no qual a fala de Jesus, contida no texto de Lucas 12.2, escolhido para o título da operação da PF, se dá. Como diz o Evangelho, no versículo anterior (12.1): “Ajuntando-se, entretanto, muitos milhares de pessoas, de sorte que se atropelavam uns aos outros, [Jesus] começou a dizer aos seus discípulos: Acautelai-vos primeiramente do fermento dos fariseus, que é a hipocrisia”.
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