Diálogos da Fé

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Ainda sobre orgulho – a crise da sociedade patriarcal 

Durante a crise, quando o velho ainda está morrendo e o novo ainda não pode nascer, é que surgem os fenômenos mórbidos mais variados

Foto: Sergio Lima / AFP
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“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer. Nesse interregno, se verificam os fenômenos mórbidos mais variados”. 

Antônio Gramsci

Quase um mês depois do Dia do Orgulho LGBT, apresento uma breve análise sobre os discursos de ódio disseminados por líderes evangélicos contra essa população. Inúmeras são as formas para avaliar esse fenômeno e para este ensaio eu gostaria de pensar que falas criminosas, como as do pastor André Valadão, se inserem em um cenário de “crise da sociedade patriarcal”. 

Tendo em vista as tentativas do patriarcado de se manter em operação, mesmo diante de tantas transformações sociais ao longo das últimas décadas, é possível afirmar que seu “desespero” venha de uma crise da sociedade patriarcal que já anuncia outros modos de vida opostos às violências de gênero e de sexualidade. Essa crise é o esgotamento de um regime que tem operado nas formas como nos compreendemos no mundo e como nos relacionamos. É o esgotamento de um regime de controle e determinação dos nossos corpos, afetos e desejos. 

A crise da sociedade patriarcal é, mas não somente, o esgotamento de um regime por meio do desnudamento das contradições de um modelo de sociedade baseado nas hierarquias que se organizam em binários: homem/mulher, cultura/natureza, branco/preto, heterossexual/homossexual, cisgênero/transgênero… a lista é sem fim. 

Antônio Gramsci, ao tratar do que chama de “crise orgânica”, afirma que “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer. Nesse interregno, se verificam os fenômenos mórbidos mais variados” (tradução do Prof. Álvaro Bianchi). Para Gramsci, a crise orgânica é uma crise estrutural de ordem societal, ou seja, opera na sociedade e “ocorre quando não há possibilidade de superação dentro dos seus próprios contornos”, como explica o Prof. Marcos Del Roio, em seu artigo “Crise orgânica, neoliberalismo e barbárie”. 

Da crise orgânica, ainda segundo Del Roio, por um lado, pode surgir uma nova estrutura, um novo bloco histórico, ou, por outro lado, pode haver uma desintegração e regressão sociocultural. E é justamente aí, durante a crise, quando o velho ainda está morrendo e o novo ainda não pode nascer, que Gramsci afirma que surgem os fenômenos mórbidos mais variados. 

E quais são eles? Bolsonarismo, neoconservadorismo e tantas outras formas de (des)organizações sociais, políticas e econômicas baseadas na negação, na interdição e na violação do Outro. Essas são aberrações que quase não conseguimos nomear, mas que sabemos onde se apoiam: no discurso. 

Segundo Timothy Fitzgerald, no livro Discourse on Civility and Barbarity, [Discurso sobelre Civilidade w Barbaridade] “palavras criam mundos, especialmente aquelas categorias que ordenam os discursos dominantes”. A violência linguística e, portanto, simbólica, que opera no desespero de um regime que prevê seu fim, lança mão de códigos que estão na superfície de nosso imaginário, como, por exemplo, casamento, família, Deus. 

Nesses modelos patriarcais baseados na moral cristã hegemônica, o patriarcado tem buscado oxigênio para seus últimos suspiros. O fôlego do patriarcado está nesses fenômenos mórbidos mais variados, que vão do discurso à prática inconteste do genocídio – tudo em defesa de relações baseadas no casamento heterossexual monogâmico, na família nuclear, na cisgeneridade, na branquitude e na riqueza. 

A violência (simbólica ou explícita) dessa estratégia está, dentre tantas coisas, no que Wendy Brown, em seu livro Nas ruínas do neoliberalismo chama de “liberdade desinibida” (ou liberdade violenta). Segundo ela, a liberdade desinibida “é sintoma de uma destituição ética, mesmo que frequentemente se disfarce de retidão religiosa ou de melancolia conservadora de um passado fantasmático”. 

A intelectual e transativista Helena Vieira afirma que a crise, o colapso, é a forma que o capitalismo encontrou para operar. Helena está acompanhando Wendy Brown, ao afirmar que, nos anos 1990, diante de um sentimento de que “a democracia havia vencido”, o capitalismo aciona uma nova forma de funcionar, que é o neoliberalismo, criando uma nova dinâmica de fluxos internacionais financeiros. 

Um exemplo de reforço do patriarcado em relação às formas que o capitalismo vai adquirindo diante das crises é o “capitalismo gore”. Capitalismo gore é um conceito criado pela filósofa mexicana Sayak Valencia, que observa a violência das fronteiras e do narcotráfico principalmente no México. Segundo a filósofa, os massacres se transformam em mercadoria, em um necrovalor econômico baseado na hipermasculinidade como forma de exercício do poder. 

A violência da hipermasculinidade patriarcal – que acha que pode livremente convocar as pessoas para matarem em nome de Deus – opera nos discursos, mas seus efeitos são materiais. Porém, a forma quase desesperada com a qual ela (a hipermasculinidade patriarcal) tem operado nos mostra que esse modelo está em crise. E sabe disso. 

Está em crise, porque nós, pessoas dissidentes sexuais e de gênero, estamos presentes no Congresso Nacional, estamos reorganizando o desmonte bolsonarista em relação às políticas públicas para pessoas LGBTIA+, estamos celebrando nossos corpos na maior Parada do Orgulho do mundo. 

E, não nos esqueçamos, nós também estamos nas igrejas, nessas mesmas igrejas que nos expulsaram, naquelas que têm passado pelo processo de inclusão da diversidade e, também, nas que nós, ousadamente, decidimos criar. Nós somos parte fundamental para a crise da sociedade patriarcal, e nem os “fenômenos mórbidos”, anunciados por Gramsci, nos amedrontarão. 

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